Imagine um mundo que teve grande parte da população morta por uma febre, a cidade está em ruínas, os sobreviventes são escravizados por milícias e obrigados a comer cachorro e ratos famintos capturados para um execrável cardápio e as mulheres são confinadas em rebanhos como escravas sexuais. E em meio a essa terrível distopia está um protagonista sem nome, com uma doença terminal causada pelo alcoolismo e à caça obsessiva por um desconhecido que estuprou sua filha, que abandonou o pai exatamente por causa desse desejo de vingança. Mas é essa promessa que o mantém vivo, mesmo quando também é escravizado para trabalhos forçados na demolição de um cemitério, única área não contaminada onde é possível cultivar alimentos.
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Confira poemas de 'Tangente do cobre', de Alexandre PilatiConfira livros de destaque lançados no BrasilO que leva um país a um genocídio?A analogia do Brasil atual com a obra de Terron e seu protagonista é inevitável. “Aqui (Brasil) é sempre essa oscilação entre a promessa e o retrocesso”, diz o autor em entrevista ao Pensar. Esse também é o dilema do protagonista, que tem futuro incerto e mal vive o presente por causa da promessa de vingança que fez a si mesmo, enquanto vai purgando a culpa do passado, quando tentou matar a mãe de sua filha. “O futuro do Brasil está no passado, nas dívidas sociais históricas a serem saldadas, na condenação de torturadores e militares. Sem isso, novas ideias de futuro não vão surgir”, afirma o escritor.
Nenhum leitor fica incólume após a leitura de um livro de Terron, embora as páginas da ficção não firam seu corpo e sua dignidade, ao contrário do risco do Brasil real, violento e preconceituoso. “Não deixa de ser curioso que seja assim, já que no Brasil você pode sair com sua família para ir a um chá de bebê e ser assassinado com oitenta tiros, como aconteceu com Evaldo Rosa, no Rio. Já os leitores do meu livro permanecem intactos ao terminá-lo, talvez com a consciência mais aguçada de nossa realidade; ao menos, é o que espero”, diz o autor.
Terron não dá nome ao protagonista, já um claro indicativo da dificuldade de identidade desse homem atormentado que não consegue viver o presente porque busca a vingança num futuro que nunca chega. E sob a repulsa da própria filha, que, apesar de ser a vítima, não concorda com a conduta do pai: “A única resposta para o que sofri deve ser da Justiça. Um ato de violência não vai conduzir toda a humanidade para a barbárie, mas um só ato de violência causa uma reação em cadeia que pode ser interrompida, que deve ser interrompida. Não escolhi ser a vítima. Mas posso escolher não ser o carrasco”.
Entretanto, nem a realidade nem alucinações abalam a obsessão do pai. Afinal, o rato está ali sempre à espreita, à deriva, para observá-lo, seja boiando sobre um chinelo na enxurrada do temporal, seja no caótico navio naufragado do qual ele é escravo.
O OPOSTO DA MORTE É O AMOR
Embora Terron manifeste profunda descrença no Brasil e em suas tramas ficcionais, nessa nova tragédia literária parece haver outra luz no fim do túnel do apocalipse além da reação da filha ao rejeitar o comportamento vingativo do pai. Essa nova esperança está no fim de “O riso dos ratos”, na reflexão do pai atormentado no cativeiro ao lembrar que chamava a filha de “meu amor' quando ela era pequena: “Agora sentia falta de pronunciar aquela palavra, de sentir a palavra se formando na boca, de dizê-la, embora soubesse que chamaria a atenção dos feitores; assim mesmo ele desejou pronunciar aquela palavra redonda e macia, que culminava nas arestas do erre, porque agora sabia que oposto da morte não era a vida, mas o amor.
Para quem vive, a vida não passa de abstração. Tinha vivido o suficiente para saber que o amor é o aspecto concreto da existência, o único que permite à consciência entender a vida como algo palpável, e a palavra amor, ao ser pronunciada, tornava-se por extensão a própria vida”.
Para quem vive, a vida não passa de abstração. Tinha vivido o suficiente para saber que o amor é o aspecto concreto da existência, o único que permite à consciência entender a vida como algo palpável, e a palavra amor, ao ser pronunciada, tornava-se por extensão a própria vida”.
Será então que o amor pode salvar os humanos? Terron responde com idealismo irônico: “Estou com Mario Levrero, que ao ouvir uma pergunta parecida, citou aqueles versos de Pound: 'Cantemos o amor e o ócio, que nada mais merece existir'. É preciso deixar o amor fazer o que só ele sabe fazer, que alguém crie o Gabinete do Ócio e do Amor”.
DIVERSIDADE TEMÁTICA
Joca Reiners Terron tem se destacado como um dos principais escritores brasileiros da atualidade por causa da diversidade de temas, estilo, linguagem e ousadia de suas obras, desde a primeira, “Não há nada lá” (2001), um curioso delírio literário que entrelaça a vida de personalidades famosas. A mais surpreendente é “Noite dentro da noite” (2017), em que mescla metalinguagem, polifonia e atemporalidade na vida de um menino que perde a memória durante uma brincadeira na escola. O contexto da amnésia leva o protagonista já adulto em busca do passado, a uma viagem ao horror do nazismo e também da ditadura militar brasileira nos anos 1970. A complexa trama, além desses fatos históricos, inclui até elementos místicos e uma flor-vampiro. Um livro raro e surpreendente.
Outra obra curiosa é “A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves” (2013), uma incrível narrativa policial e fantástica envolvendo um zoológico aberto. De novo, apresenta o tema da identidade, agora de uma das protagonistas, a “criatura” sem nome, portadora de doença rara e vítima de preconceito e violência.
Méritos também para “Do fundo do poço se vê a lua” (2010), vencedor do prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional. Mais uma vez, a questão da identidade do protagonista e as incertezas sobre passado, presente e futuro são realidade que permeia a vida de dois gêmeos idênticos separados após a morte do pai e que trilham destinos diferentes. Com uma trama lastreada em São Paulo e no Cairo, Terron aborda o difícil tema da transexualidade do protagonista Wilson/Cleópatra, cuja mudança radical de vida surge da fantasia cinematográfica da rainha egípcia interpretada pela atriz Elizabeth Taylor, com uma narrativa literalmente fantástica, ao melhor estilo Brás Cubas.
“O riso dos ratos”
• Joca Reiners Terron
• Todavia
• 208 páginas
• R$ 62,90
• R$ 39,90 (e-book)
TRECHO DO LIVRO
“A chuva arremetia como estilhaços de vidro nas feridas das costas dos homens e mulheres, o sol não passava de lembrança. Demoliam túmulos, jazigos e mausoléus com marretas e picaretas. Por um instante reteve a pá que usava para remover o entulho. (…) Do alto dos blocos de cimento, o feitor estalou a chibata e um dos três agulhões de aço das pontas lhe triscou o ombro, deixando um talho fino e profundo. Ele encheu a pá com pressa e a despejou na carroça à espera, que logo partiu, puxada por um magricelo que bufava e gemia à beira do desfalecimento. Atravancada pelos pedregulhos da trilha, a carroça se perdeu no terreno onde homens trabalhavam como vermes num cadáver de véspera.”