Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Joca Reiners Terron: 'Minha obsessão é sobreviver'

É o fim do mundo como nós conhecemos e os personagens dos romances de Joca Reiners Terron não estão se sentindo muito bem. Talvez o escritor também não esteja. Nem nós, leitores dos assombrosos – e aterradores – “Noite dentro da noite” (2017), “A morte e o meteoro” (2019) e o recém-lançado “O riso dos ratos” (Todavia). Três grandes livros em seis anos, a reação possível de Terron ao estado das coisas no Brasil. É muito.



Mas não é tudo. “Tenho um livro inédito que escrevi em 2018 e gostaria de publicar, ‘Mapa desbotado pelo sol’, uma espécie de novela pós-apocalíptica em versos. O fim do mundo chegou aos meus poemas”, reconhece o cuiabano de 53 anos, radicado em São Paulo, atualmente vivendo no Ceará.

O narrador do nosso apocalipse vive de aulas on-line (“Têm colocado comida na mesa e me empenho muitíssimo nelas”) e preencheu dois cadernos com as sentenças incisivas de “O riso dos ratos”, um livro sobre obsessão e vingança. “Escrever assim, além de doloroso para quem sofre de tendinite como eu, é lento”, reconhece, antes de comparar: “Às vezes, se parece com desenhar. Gostaria que esse aspecto gestual tivesse permanecido na escrita”.

Desencantado com a situação política atual (“Agora temos a treva em pleno coração do Estado”), Terron acredita que a saída passa por um olhar atento ao que ficou para trás. “O futuro do Brasil está no passado, nas dívidas sociais históricas a serem saldadas, na condenação de torturadores e militares. Sem isso, novas ideias de futuro não vão surgir”, aposta, lembrando a condição do país, em permanente oscilação entre a promessa e o retrocesso.

Ele também aponta o que não gosta na literatura contemporânea nacional (“A linguagem contaminada pelas palavras de ordem do discurso político do nível do Twitter e do Facebook”) e revela a sua maior obsessão: sobreviver. “Este país não é cruel somente com seus artistas, mas com seu povo em geral. Das coisas que algum dia tive a ilusão de saber fazer, escrever é a única que me restou. A literatura é minha ideia fixa”, ressalta. A seguir, a íntegra da entrevista, com algumas perguntas elaboradas a partir de citações de passagens de “O riso dos ratos”.




 
 

De onde veio “O riso dos ratos”? 
Brotou de um diário escrito durante três meses de abstinência alcoólica que enfrentei em 2012. No final, a causa da abstinência se revelou falsa, mas permaneceu o susto que originou o livro. Só que a voz em primeira pessoa do diário que relatava aquele percalço era irônica demais, encontrava graça na desgraça, não combinava com o tom exigido pela narrativa. Depois de publicar “A morte e o meteoro”, decidi dar mais uma chance ao livro, e o escrevi a mão em dois cadernos. Escrever assim, além de doloroso para quem sofre de tendinite como eu, é lento. Às vezes se parece com desenhar. Gostaria que esse aspecto gestual tivesse permanecido na escrita.

Consegue enxergar semelhanças entre “O riso dos ratos” e seus romances anteriores?
Às vezes, me iludo que meus livros são todos diferentes entre si, e a busca dessa voz narrativa é parte da ilusão. Talvez a voz seja sempre a mesma, no fim das contas, e todos os livros não passem de um só livro, marcado pelas mesmas obsessões, traumas e neuroses de sempre.

“Nos bares, apartamentos e prédios, a brutalidade, como a violência, era a base de tudo”, você escreve no livro. O que é mais brutal: o Brasil real ou a ficção de “O riso dos ratos”?
Pela reação que o livro tem arrancado dos primeiros leitores, aparentemente o livro é mais brutal. Não deixa de ser curioso que seja assim, já que no Brasil você pode sair com sua família para ir a um chá de bebê e ser assassinado com oitenta tiros, como aconteceu com Evaldo Rosa, no Rio. Já os leitores do meu livro permanecem intactos ao terminá-lo, talvez com a consciência mais aguçada de nossa realidade; ao menos, é o que espero. De todo modo, “O riso dos ratos” faz parte do Brasil, pertence à realidade brasileira. Não poderia ser diferente, pois nasceu dela.





“O futuro, antes aberto à imaginação, agora era previsível.” E o futuro do Brasil? E o da literatura no Brasil?
O bolsonarismo anda louco para botar um ponto final no futuro do Brasil. O título ufanista de Stefan Zweig, “O Brasil é o país do futuro” etc., como sabemos, serviu de epíteto para muita mistificação. Aqui é sempre essa oscilação entre a promessa e o retrocesso. Costumeiramente, os bairros pobres, o Centro decadente, as periferias das grandes cidades e as franjas do país estão sob a treva do descalabro, são zonas fora da lei. Mas agora temos a treva em pleno coração do Estado. Diante desse quadro, fica difícil falar em literatura, algo tão frágil e ao mesmo tempo enraizado em hábitos antigos, algo que para mim sempre existirá, ainda que à revelia do mercado. O futuro do Brasil está no passado, nas dívidas sociais históricas a serem saldadas, na condenação de torturadores e militares. Sem isso, novas ideias de futuro não vão surgir.

“O sol iluminava a cidade como uma ideia fixa.” E quais são as suas ideias fixas?
Desde 2001, quando abandonei meu último emprego, minha obsessão é sobreviver. Para isso, já traduzi livros de línguas que ignoro e cumpri todo papel humilhante que um escritor possa suportar: certa vez, estava lançando um livro supercaro em uma feira em Santa Catarina e, ao chegar, descobri que a plateia era composta de adultos da zona rural que estavam em processo de alfabetização. Me senti absolutamente constrangido pela situação, que contornei fazendo uma conversa sobre como a leitura tinha se tornado tão importante para mim e cancelando qualquer venda de livros.

A situação é exemplar dos abismos sociais que nos cercam e aprisionam, e de como a vida de escritor num país que despreza a educação se confunde com a de um bicho em extinção. Este país não é cruel somente com seus artistas, mas com seu povo em geral. Das coisas que algum dia tive a ilusão de saber fazer, escrever é a única que me restou. A literatura é minha ideia fixa.





Apocalipse (“A morte e o meteoro” e “O riso dos ratos”) e tragédias pessoais dos protagonistas (“O riso dos ratos”, “Do fundo do poço se vê a lua”, “Noite dentro da noite” e “A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves”) permeiam suas obras. Por que tantas distopias e descalabros? 
Uma vez, algum leitor me definiu na internet como “um Thomas Pynchon sentimental” ou algo assim. Sinto, porém, que não sou tão bom escritor quanto Pynchon, nem tão sentimental quanto gostaria, já que meus livros não vendem quase nada. Suponho que se fosse cafona como grande parte da literatura brasileira isso refletiria nas vendas. Devo concluir que o tal leitor estava equivocado? Ou devo entender que ali ele me fornecia gratuitamente a fórmula do sucesso? Não sei dizer.

Diante de uma realidade tão difícil, como pode reagir o escritor?
Com uma cotovelada, no meu caso, uma cotovelada em forma de narrativa ficcional, que, temo, nem é tão grossa assim (o livro tem pouco mais de 200 páginas) a ponto de se configurar como uma arma que sirva para me proteger.

No firmamento, acendendo uma a uma, as estrelas velavam por todos nós, os mortos aqui embaixo.” Há chance de ressurreição para os mortos aqui embaixo?
Nenhuma. Mas em alguns casos ainda dá tempo de tomar um sorvete ou fumar um cigarro.





Algumas mulheres, em suas obras, são vítimas de abusos e malvistas (a índia prostituída em “A morte e o meteoro”, escravas sexuais em “O riso dos ratos”, a mãe “rata” de “Noite dentro da noite”, a velha assassina e a criatura rejeitada em “A tristeza extraordinária” e a transexual decapitada em “Do fundo do poço se vê a lua”). Não há futuro para elas também?
Até onde sei, as mulheres ainda pertencem à humanidade, o que é péssima notícia para elas, visto que nos encontramos no que parece ser um período particularmente sensível do Antropoceno. Quanto às personagens, elas não são malvistas nem bem-vistas, simplesmente são, e no ato de ser estão sujeitas a situações boas e ruins, assim como os personagens masculinos e todo o bestiário que costuma aparecer nos meus livros. Talvez “O riso dos ratos” seja um romance sobre as chances de futuro segundo as mulheres, já que elas protagonizam algumas das situações mais corajosas do romance.

Apesar da realidade desesperadora, o protagonista de “O riso dos ratos” tem um momento de esperança quando reflete: “Tinha vivido o suficiente para saber que o amor é o aspecto concreto da existência, seu elemento mais visível, o único que permite à consciência entender a vida como algo palpável, e a palavra amor, ao ser pronunciada, tornava-se por extensão a própria vida”. O que o amor pode fazer nos dias de hoje?
Estou com Mario Levrero, que ao ouvir uma pergunta parecida citou aqueles versos de Pound: “Cantemos o amor e o ócio, que nada mais merece existir”. É preciso deixar o amor fazer o que só ele sabe fazer, que alguém crie o Gabinete do Ócio e do Amor.

Seus livros vão muito além do realismo. Extrapolam a linearidade pela metalinguagem, polifonia, atemporalidade e elementos de outras culturas. É uma opção racional ou instintiva? O que acha da literatura que tenta reproduzir a realidade?
Trabalho com o que li e aprendi, ou mesmo que li, entendi errado e distorço às vezes sem querer, pois a memória é falha e a imaginação preenche os lapsos do que é esquecido. Sempre exploro alguma ideia relativa ao tempo, intuída de antemão. Como a ordem dos capítulos de “O riso dos ratos”, que emula etapas da história brasileira desde a invasão colonial só que ao contrário, do presente para o passado. Todos os aspectos mencionados por você pertencem à realidade, portanto só posso supor que faço uma literatura realista, mas não era minha intenção, desculpe. Os últimos mestres do realismo, como Flaubert e Machado de Assis, entenderam que, como convenção, haviam chegado ao limite. Por isso se encarregaram eles mesmos de dinamitar a ponte, escrevendo “Bouvard e Pécuchet” e “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Qualquer ficção que ignore esses passos me soa a retrocesso.





Em sua conta no Twitter, você opinou sobre uso da “narração como libelo”, num processo de edulcoração do comportamento e achatamento da experiência humana por “trair o que a literatura tem de mais essencial: sua capacidade de refletir contrários, ou de ser pura linguagem”. Poderia explicar melhor a sua crítica à “sociologia disfarçada de literatura?”
Percebo uma onda meio caga-regra na ficção, entre alunos, mas também entre autores publicados, cuja linguagem tem sido contaminada pelas palavras de ordem do discurso político do nível do Twitter e do Facebook. O fenômeno tem gerado uma literatura conteudista repleta de personagens inequivocamente “bons” e “maus”, ou de protagonistas beatos. A literatura é o lugar onde podemos encontrar o monstro e aprender algo desse encontro. Quando encontramos o monstro na próxima esquina, nem sempre é possível escapar dele a ponto de que o aprendizado decorrente da experiência possa nos ser útil.

Você sempre defendeu uma integração maior do Brasil com a literatura produzida nos países vizinhos. Acredita que, nos últimos anos, estamos ainda mais distantes? O que acha do fato de escritores argentinos contemporâneos como Mariana Enriquez serem indicados a prêmios internacionais como o Booker Prize e o Brasil não conseguir o mesmo reconhecimento?
A língua espanhola é uma commodity mais valorizada que a língua portuguesa. Como país imperialista que é, a Espanha não admite ceder sua língua às ex-colônias, premiando e subsidiando autores hispano-americanos. Isso cria um fenômeno de duplo sentido, pois o mercado é mais amplo, e as variantes linguísticas terminam sendo beneficiadas. Nesse sentido, Portugal não nos interessa. A única premiação literária que beneficia autores lusófonos de onde quer que sejam é o Oceanos, iniciativa brasileira. Depois de levar todo o nosso ouro, nossos colonizadores se tornaram mesquinhos: querem a língua portuguesa só para eles. Pois que fiquem com a deles, e nós com a nossa.

Você passou um tempo da pandemia na cidade de São Paulo, outro no litoral cearense. O que mudou na sua percepção? Do lugar onde está agora, o que consegue enxergar?
O rosto da Egípcia do Crato, seus olhos castanho-derretidos detrás de sua cabeça heroica que tanto amo, vejo o céu alaranjado de nuvens e no horizonte a lâmina prateada do mar, ao fundo ouço pássaros que talvez cantem “bem-te-vi”, mas que prefiro entender como “e agora, pra onde ir?”.

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