Estudo para sonho
nas tardes de sábado
as cidades ficam irmãs
ombreiam-se de Quito a Calcutá
Uagadugu ou São Paulo.
todas (ou quase todas)
nos cedem, estufas silentes,
o quente conforto
de um abraço-mundo
onde as árvores põem
as sombras e dispersam-se
por momentos preciosos
as unhas de ameaça do futuro.
podemos talvez engatinhar
atrás de uma brisa de ilusão
ou preguiça, nariz à janela
ou pés no chão popular da praça
(encare às quinze e trinta e um
de uma tarde de sábado
quem mora na rua bem
dentro do ouro sujo dos olhos
e ouça de sua boca fechada
os estilhaços de vida, flores
e sonhos viajarem
até você em murmúrio motor).
pois o dinheiro tropeça
em suas próprias pernas
golpeado por uma luz
que sangra sonho.
luz que ao ampliar-se
deita-nos em um colo
imenso, triste e bom:
dispensa-se a dor
apagam-se energias.
são uterinas as cidades
quando as tardes de sábado
deixam supor que estamos
sob um manto de amor.
De noite eu rondo a cidade
três ou dois pipocos
e apenas isso basta
para uma cara na calçada
outra cara achatada na calçada
a sirene é a última lembrança
de algo sublime dentro do trevor
quando a tropa vira a esquina
há quem diga que é o cobre um clarim que urra
enquanto um cão que não late nem morde
cheira o sangue e uiva imitando as sereias azedas
a tropa que dobra a esquina enquanto
a noite toda se transforma em cortejo fúnebre
até a tua soleira
sem tambor ou música
outra cara achatada na calçada
três ou dois pipocos
e apenas isso basta
Baleia
naquela beira da cerca
está posto no chão
o olhar da cachorra ferida
naquela seca do chão
está disposto o sangue
duro da cadela ferida
aquele olhar define
pelos erros de todos
a cachorra que morre
entre a cerca e a seca
em miúdo manso desespero
sua força sua vida sua esperança
todas presas no cadeado do instante
imóvel longo lento instante
em que o ar e o existir divorciam-se
para todos os séculos vindouros
a cadela ainda aprecia a coceira
de quando a carne se torna areia
e matéria para osso e abutre
o pôr do sol também é fato grandioso
para o raso de seus olhos
onde se intui certa evidência de sonho
a cadela morre sem volta
a cachorra leva no colo a boca
sem dentes que ontem nos sorriu
através da infâmia que é uma criança sem casa
Caracol
livros que li
esta casca
de peles e palavras
esta casa
de danças e dilema
que me fiz
patuá de afetos
que me protege
por dentro de mim
Selo
espalho algumas palavras
sobre teu corpo
para tentar legar
aos que virão
mil anos depois de nós
a beleza tua
que orienta
a independência deste instante
mas desesperam frágeis
as palavras porque
não chegam a ti
não te recompõem
não te ultrapassam
são mínimas
diante do que inundas
e nessa insuficiência
tornam-se as palavras
mais humanas e reais
afeitas ao tempo
assimiladas à possibilidade
que emprenha
o que tem morte
e sabe de finais
pelo que não digo
pelo que me falta
pelo que desejo
abraço-te outra vez
e por um inusitado acontecer
tua beleza segue
reverberando para além
de cada conceito e de cada som
penetra sólida e calada
os desvãos
da vida
feito o riso rosa do sol
que colore nossa esperança
sob os milímetros doces da luz
tua beleza entretanto
deste longe sonho
sempre volta
e grava nas retinas tristes
do tempo o selo
que nos deixa mais vivos
através da teia
que a ti me ata
sob a forma do amor
que só se diz de todo
com as palavras
que a humanidade livre
ainda inventará
Sobre o autor
Alexandre Pilati é poeta, ensaísta, crítico literário e professor de literatura brasileira na Universidade de Brasília (UnB). É autor de “sqs 120m2 com dce” (NTC, 2004); “prafóra” (7Letras, 2007); “e outros nem tanto assim” (7Letras, 2015) e “Autofonia” (Penalux, 2018). Os poemas acima são de “Tangente do cobre”, quinto livro de poemas do autor, recém-lançado pela Editora Laranja Original