Jornal Estado de Minas

PINTURA

O sagrado trabalho de Van Gogh, em 'A salvação pela pintura'

Antes de dar início a esta resenha sobre o livro “Van Gogh: A salvação pela pintura” (Todavia), do crítico e historiador da arte Rodrigo Naves, peço licença para contar alguns casos pessoais relacionados ao artista.





Cena 1: há muitos anos, tive um parente que desmaiou de emoção em sala de museu ao se deparar com pinturas de Vicente van Gogh ((1853-1890) só conhecidas por ele em reproduções.  

Cena 2: quando experimentei ser professora, exibi a imagem da única tela vendida em vida pelo pintor, “A vinha vermelha” (1888). Uma aluna se levantou e, no que me pareceu ser espécie de transe, começou a gritar: “Quero, quero: é o belo em fúria”. 

Cena 3: recentemente, havia acabado de assistir, por sistema streaming, ao filme “No portal da eternidade” (2018), dirigido pelo pintor Julian Schnabel, que trata dos derradeiros anos de Van Gogh, quando em telefonema recebi o convite para fazer o texto em processo.

Relato os três episódios para avisar que aceitei a incumbência com imensa curiosidade. Como muito já se refletiu sobre Van Gogh, de antemão, achei corajoso alguém escrever sobre artista campeão em termos de bibliografia, – desde teses, ensaios, artigos, biografias, filmes, até excessivas mensagens simplificadas nas mídias digitais. Que novidades seriam apresentadas por Naves?  

Atraiu-me também o efeito da extemporaneidade. No sentido de que, imersa nas poéticas do contemporâneo, intranquila neste tempo de emergência democrática, de crise sanitária, de luto coletivo e de abandono de sentidos, qual seria a reverberação em mim ao ler obra sobre artista do e de passado tão revirado.





Rodrigo Naves apresenta elegância textual, dialoga com autores canônicos da história da arte, a exemplo de Giulio Carlo Argan e Meyer Schapiro, para se posicionar com a assertividade característica de críticos formados sob os ideais da modernidade e, assim, estabelecer a tese central de seu livro. Em resumo: toda a pintura de Van Gogh está relacionada à formação protestante que o moldou. 

Como realça o título do livro, a salvação para ele se encontrava na pintura, trabalho, inclusive, manual, árduo, constante, exigente, quase condenação. Não se trata de uma pintura de teor religioso ou espiritual. É a forma de fazer, o vigor aplicado ao trabalho que orienta a produção do artista, em consonância com os preceitos calvinistas, religião em que seu pai foi pastor e ele mesmo tentara ser assistente de pároco.


Eis a principal diferença do livro de Naves em relação a outros tantos escritos sobre o artista das paisagens tostadas, dos interiores em desalinho, das flores em desassossego intenso, como nos falam a série dos icônicos girassóis. O artista que nos apresentou um frenesi de criação capaz ainda hoje de provocar as reações como a do primo da cena 1.





Para a grande parte dos teóricos, além da genialidade, exaltações mentais vivenciadas pelo pintor foram decisivas para concretizar pinturas em que o emprego da cor se torna ainda hoje pouco ortodoxo; as pinceladas interrompidas de forma violenta são visíveis; o empaste, o acúmulo de tinta, é espesso e as formas se distorcem.   

Pintura que exprime violenta premência ou, como bem resumiu a aluna da cena 2: o belo em fúria. Furor normalmente associado à expressão de possíveis estados alterados de consciência, embora Naves considere ser lenda muito do falado sobre loucura, alcoolismo e delírios. Narrativa que se tornou exagerada e hegemônica a partir do filme “Sede de viver”, de Vincent Minelli, estrelado por Kirk Douglas em 1956, baseado na novela de idêntico nome assinada por Irving Stone.

O crítico rebaixa, portanto, o impacto desses episódios de “fúria e desolação” para refletir sobre a formação evangélica do artista. “A dimensão dilacerada e tortuosa da obra de Van Gogh pode ser mais bem compreendida pelas singularidades de seu cristianismo do que por todas as doenças mentais que lhe têm sido atribuídas”, defende. 

Como argumento para a sustentação da tese, Naves parte da noção de trabalho, o labor, a prática do fazer. Diz que a aparência do trabalho nas pinturas de Van Gogh mantém estreito contato com a noção de trabalho do cristianismo proposto pelos calvinistas. 





Refere-se com ênfase ao trabalho que resulta no impasto (prefere usar a palavra original italiana) e na estranha espacialidade obtida em muitas pinturas, aspecto pouco analisado por outros autores. Também observa que a manutenção constante de uma tensão entre figuração e matéria apresentada nas telas seria demonstração dessa influência.  


Ao ler tal associação, relembrei livro clássico da sociologia, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, de Max Weber, em que o autor discursa sobre a interiorização de uma imposição ao trabalho, perseguida de forma obstinada pelos cristãos da Reforma Protestante, dentro de uma ética esperança de salvação espiritual. Por tal lógica, em Van Gogh, a consciência exagerada do ofício estava vinculada à ideia de predestinação religiosa, à espera da salvação que não se cumpria. 

Em seu texto, que também é uma defesa suavemente apaixonada da pintura, Naves recorre às cartas que o artista escreveu à família, em especial ao irmão Theo, para demonstrar a coerência entre o que defende e o que Van Gogh fazia. Raros modernistas explicaram tanto e tão bem aquilo que desejavam fazer e conseguiam concretizar como Van Gogh. Por isso, entende o teórico brasileiro, as cartas são documentos que minimizam o efeito de muitas leituras que reforçam a mente atormentada do pintor. Ele sabia o que perseguia.

É relevante a contribuição de Naves para a história da arte ao estabelecer a conexão do trabalho pictórico com a disciplina do labor religioso. Ainda mais se ampliamos para lê-lo como o esforço incessante de Van Gogh por uma educação dos sentidos, na busca por apreender o mundo sensível – o pintor dizia que preferia pintar olhos de pessoas a pintar catedrais, “pois tem alguma coisa nos olhos que não tem na catedral”.





Mas tendo a ser mais flexível. Penso que em Van Gogh se comunicaram diferentes experiências radicais que terminaram por impactar a sua arte. Desde a formação cristã calvinista, a carência de vínculos sexuais-amorosos, a precariedade financeira, as crises psiquiátricas, e, algo pouco mencionado por Naves, o amor devotado à natureza, este último lido quase como substituto do sentido de divino

Regresso à cena 3 do início do texto. No filme de Julian Schnabel, com roteiro de Jean-Claude Carrière e Willem Dafoe no papel de Van Gogh, uma cena quase despretensiosa me impactou. Nela, o artista explica a um padre (Mads Mikkelsen) que pinta com suas qualidades e seus defeitos. Cita, então, trecho bíblico para explicar que rejeita o visível e se dedica ao invisível. Percurso semelhante se dá no livro de Naves, que recusa o muito comentado e busca tatear o invisível para ampliar o entendimento da rede que ajudou a definir a pintura de Van Gogh.

Graça Ramos tem doutorado em história da arte pela Universidade de Barcelona


• “Van Gogh: a salvação pela pintura”
• Rodrigo Naves
• Editora Todavia
• 100 páginas
• R$ 62

audima