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Estado de Minas PRIMEIRA LEITURA

Leia poemas do novo livro de Adriana Lisboa

'O vivo', lançamento da editora mineira Relicário, reúne as poesias mais recentes da escritora carioca, autora de 'Sinfonia em branco' e 'Deriva'


18/06/2021 04:00 - atualizado 18/06/2021 09:17


paraquedas colorido

(…) o cosmos onde a gente pode despencar
em paraquedas coloridos.
(Ailton Krenak)

todo o caleidoscópio da vida
do fim ao início
(pense no tempo como
um acompanhamento)
o caco de asteroide em que tropeço
no torrão de multiverso que habito
poeira de poeira
— tudo sorri enquanto
despenco
num paraquedas colorido


Se houver tempo, devolve a poesia aos répteis
(Edimilson de Almeida Pereira)

se houver tempo
devolve a poesia aos répteis
deixa que ela se estenda ao sol
e infle os pulmões sob as costelas
rústica algo quebradiça
mas a bem da verdade inocentada
desses e de outros adjetivos
se houver tempo
devolve os répteis aos répteis
as matas à sua filigrana
o pântano às suas poças
os mares à sua luz
devolve o humano ao seu
um tanto quanto
ave réptil anfíbio (parentes
há quatrocentos milhões de anos)
capaz de se espraiar pelo tempo
de vida
que ainda houver
e saber que ela também se passa
de graça e à toa
enquanto estranhos fantasmas
degolam-se uns aos outros
no subsolo dos distritos financeiros
e sempre chegam tarde para o jantar

cachorro

a ciência ainda especula
se você distingue bem entre o verde
e o vermelho e o amarelo
e conta que no fundo dos seus olhos
há pigmentos que refletem e amplificam a luz
cento e trinta vezes mais
do que o olho humano
e que diante da tevê o que vê
é uma sucessão de slides
já que enxerga mais quadros
por segundo do que as pessoas

mas quando toco a ponta
do meu nariz no seu
e os nossos olhares se entrançam
não há ciência
talvez não haja nem mesmo história
o que vê a mulher
no cachorro e o que vê
na mulher o cachorro
por trás dos olhos do cérebro da memória
um fundo de mistério mais velho que nós
dois
bichos que refletem
e amplificam a luz


obrigada por perguntar

a saudade
não é da ordem do tempo
mas sim do espaço
não se trata de querer
rever revisitar reencontrar
(reiteração de verbos
num infinitivo infinito)
mas de algo da equipe do corpo
seu acervo de cheiro e ruído
seu buquê de seiva e voz

a saudade é da ordem do espaço
vago
da ordem da fome que come
e não passa
de um frio por dentro do osso
ainda que a cara e a vida
pendurem na parede o certificado
honoris causa:
comigo tudo bem
obrigada por perguntar

reflexões à porta

as pontas dos dedos
uma camada de tinta as fibras da madeira
a serra elétrica e a lixa grossa
o marceneiro os calos das suas mãos
a canção que ele assobiava
ao lixar a porta
quem compôs essa canção
a longa viagem de ônibus
que inspirou a canção e a cidade
para trás para sempre
o motorista do ônibus e suas dores
nas costas e sua camisa limpa e a garrafa
térmica de café que preparou antes de sair
ainda de madrugada
antes de beijar o filho adormecido
e fechar cuidadoso a porta de casa
tocando por um instante
com as pontas dos dedos
a suave camada de tinta
sobre as fibras da madeira
eixo do mundo
dentro e fora
tudo imenso e uma coisa só

um peixe lê drummond

ficou aberto o livro
do lado do aquário
de modo que o peixe lê
sobre a forja do governo
e os soldados de espingarda
à caça de eleições e passarinhos
(mas há os tiros que são só
pelos tiros mesmo)
ficou aberto o livro
e o peixe lê
sobre coisas que não
lhe dizem respeito
nem à temperatura controlada
da água onde respira
nem à comida que todos os dias
deus chacoalha na superfície
do seu pequeno mundo

saem bolhas
em vez de palavras
quando ele arrisca um comentário
e constrangido o peixe se cala (ou
muda de assunto)

a indústria matadeira grassa
mas por enquanto
ainda não ameaça o seu aquário

Sobre a autora

Nascida no Rio de Janeiro, em 1970, Adriana Lisboa é romancista, contista e poeta. Entre outros títulos, lançou os romances “Sinfonia em branco”, “Um beijo de colombina”, “Rakushisha”, “Azul corvo”, “Hanói”, “Todos os santos” e os livros de poesia “Parte da paisagem”, “Pequena música” e “Deriva”, este último pela editora mineira Relicário, que lança agora “O vivo”.

“O Vivo”
Adriana Lisboa
Relicário Edições
84 páginas
Lançamento no dia 1º de julho, às 19h, com a autora, a poeta Claudia Roquette-Pinto e a professora de literatura da UFF Stefania Chiarelli no canal do YouTube da Relicário.
R$ 45,90
Pré-venda a partir de hoje, 18/06, no site da editora: relicarioedicoes.com


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