A poesia de Ana Martins Marques não permite outro movimento se não o de adentrar-se. É de tamanha força que nos traga que, quando se dá conta, já se está em outro lugar. Toda a artesania com as palavras a coloca no lugar de uma das mais destacadas poetas contemporâneas, o que se confirma pelo novo livro, “Risque esta palavra”, e na reedição da estreia, “A vida submarina”, ambos lançamentos da Companhia das Letras.
“Risque esta palavra” inclui o poema “História” em que ela, então com 39 anos, escreve a respeito da passagem do tempo. A poeta se mostra uma observadora do cotidiano, mas de um ponto de vista reflexivo. Do olhar atento às coisas ordinárias deriva para questões mais profundas, como a religião. Não se refere às crenças já institucionalizadas, mas a uma forma de ritualizar a vida, nas liturgias que se estabelecem no dia a dia. Debruça-se no entendimento da morte, mas essa como uma permanente interlocutora da vida.
Ana Martins Marques também escreve a respeito dos lugares. Os territórios físicos, como a terra natal, como no poema “Minas à beira-mar”, ou uma visão de Alter do Chão, um dos destinos turísticos do Pará. Ela, porém, amplia a noção de lugares, mostrando nós mesmos, nosso corpo humano, como territórios atravessados pelo tempo.
Em “A vida submarina”, os poemas vêm organizados em pequenas séries; aliás, uma maneira de organizar os temas que a interessam. Numa delas, ‘barcos de papel’, a poeta apresenta a questão que perpassa toda a sua poesia, a reflexão sobre os limites entre a prosa e a poesia. Embora não escreva em prosa, o tema é recorrente. “Embora os que leem prosa em geral/se arrisquem mais/porque chegam quase à beira do abismo/cuidado ao chegar à borda do poema”, diz, no poema “Margem”.
Em “Risque esta palavra”, os poemas “Prosa (I)” e “Prosa (II)” apresentam a poesia como esse espaço de experimentação. A maneira como ela coloca a própria poesia como essa instância de reflexão sobre a linguagem a coloca na tradição de grandes nomes da poesia brasileira – e uma referência incontornável é outro mineiro, Carlos Drummond de Andrade. Não se pode deixar de notar o mar, uma presença recorrente nos poemas. Em “A vida submarina”, no poema “Três cidades e um braço de mar”, os pontos de partida são Belo Horizonte, Paris e Buenos Aires. “Mesmo entre montanhas/na tarde rarefeita estende-se/um braço de mar.” A relação entre o oceano e a montanha aparece nesse poema e em “Minas à beira-mar”. Além da ausência do litoral, Ana também pontua os efeitos da mineração nas montanhas de Minas, como fez Drummond no século 20. A seguir, a entrevista concedida por e-mail por Ana Martins Marques ao Estado de Minas.
A palavra é fósforo? Quando você diz 'risque esta palavra' é uma alusão à palavra como lume?
Sabe que eu não tinha me dado conta dessa relação do título com a imagem do fósforo, que aparece na última parte do livro, até recentemente, quando a poeta Marília Garcia me chamou a atenção para ela? Certamente, o fósforo é uma boa imagem para falar de poemas: ele brilha brevemente, ilumina um pequeno pedaço do mundo, e então se extingue. Pode provocar um incêndio ou só uma pequena chama. Alguns poetas, aliás, já fizeram essa relação: José Paulo Paes tem um poema dedicado ao fósforo, Murilo Mendes também. Lembro-me ainda de um poema de Ron Padgett que aparece no filme “Paterson”, de Jim Jarmusch.
Você brinca com o hábito de fumar: o cigarro como lápis, a fumaça como pensamento. Você parou de fumar? Como a interrupção interferiu em sua criação?
A seção que encerra o livro traz vários poemas sobre cigarro, sobre o ato de fumar e de parar de fumar. Esses poemas começaram a ser escritos, de fato, quando parei de fumar, há uns três anos. Sempre gostei da ideia das séries, de poemas que vão puxando os fios de uma imagem ou tema, desdobrando-o, multiplicando os pontos de vista. E o cigarro é, sem dúvida, um objeto bastante literário, entre outras coisas porque nos coloca de certo modo em contato com o fogo, mas também porque é um prazer perigoso, que nos coloca em relação com a morte.
Como é o seu processo criativo? Primeiro vêm os temas ou a experimentação das palavras guia a escrita?
De fato, o poema para mim tem a ver com uma atenção para a materialidade das palavras, seu peso, sua velocidade, o ritmo, o corte, as relações de vizinhança e de atrito entre as palavras. O ensaísta Jean-Christophe Bailly fala que a poesia é sempre “uma agitação da linguagem”. Mas isso não significa que, ao escrever um poema, o poeta parta necessariamente de uma questão formal. Na verdade, nos poemas, não é fácil separar o que diz respeito ao tema do que diz respeito à forma.
O poema é mais ou menos como aquele modo de dobrar as meias, fazendo uma espécie de bola, em que a forma e o conteúdo, o objeto guardado e o invólucro, são uma coisa só. Os poemas surgem para mim de muitas formas: às vezes de uma imagem, às vezes de uma palavra escutada na rua, às vezes de outros poemas. Às vezes, o tema vem antes, às vezes são as palavras que “puxam” o assunto. De qualquer modo, parece próprio da poesia poder se voltar para qualquer objeto, mesmo os que parecem mais insignificantes.
O poema é mais ou menos como aquele modo de dobrar as meias, fazendo uma espécie de bola, em que a forma e o conteúdo, o objeto guardado e o invólucro, são uma coisa só. Os poemas surgem para mim de muitas formas: às vezes de uma imagem, às vezes de uma palavra escutada na rua, às vezes de outros poemas. Às vezes, o tema vem antes, às vezes são as palavras que “puxam” o assunto. De qualquer modo, parece próprio da poesia poder se voltar para qualquer objeto, mesmo os que parecem mais insignificantes.
Em “História”, que está na contracapa de “Risque esta palavra”, os primeiros versos descrevem a passagem do tempo em cada parte de nosso corpo. É um poema de grande impacto. Como surgiu?
Publiquei esse poema pela primeira vez no Facebook, em 2016, no dia do meu aniversário. Ele era original, portanto, um “poema de circunstância”, feito como um agradecimento pelos votos de feliz aniversário. “História” é possivelmente meu poema que teve maior repercussão, e acho que isso tem a ver com o fato de que, embora seja um poema vinculado a uma circunstância pessoal específica, ele faz uma operação de conectar a história pessoal a outras histórias, não só de outras pessoas, mas das coisas, dos lugares e mesmo da língua. Acho interessante pensar no quanto, mesmo nos momentos mais banais, estamos conectados e nos relacionamos com diferentes camadas de tempo, com coisas, corpos, imagens, lugares que estão em diferentes temporalidades.
Você resolve a nossa relação com a incompletude de nós, mineiros, em relação ao mar? Tão bonita a imagem das montanhas esvaziarem-se de si. Dizem que elas nos limitam, mas na poesia, não. Elas também podem recuar.
Acho que o meu fascínio pelo mar certamente tem relação com o fato de que, por viver longe do litoral, o mar nunca se tornou para mim totalmente familiar, sempre se manteve de certo modo enigmático, desconhecido. O poema que você menciona, “Minas à beira-mar”, nasceu da leitura de um poema da Ingeborg Bachmann, que por sua vez se relaciona com uma passagem de “O conto de inverno”, de Shakespeare, em que se fala sobre o desembarque de um navio na Boêmia. Acontece que a Boêmia não faz fronteira com o mar. Ingeborg retoma a imagem num de seus poemas mais conhecidos, em que diz algo como “se a Boêmia fica à beira-mar, volto a acreditar em mares”.
Desde que li esse poema, numa oficina do poeta Carlito Azevedo, fiquei muito impressionada com ele, e acabei associando-o com o meu pai dizendo (mas isso eu posso ter inventado!), sempre que saíamos em viagem e passávamos pelos “mares de morros” que caracterizam a paisagem de parte de Minas Gerais, que, há milhões de anos, aquelas montanhas tinham sido o fundo do mar. Ao mesmo tempo, a imagem das montanhas “esvaziando-se” de si, como o mar quando recua, é uma referência à mineração e à visão, sempre para mim muito impressionante e terrível, das montanhas ocas, quase reduzidas a uma fachada, como se vê nas áreas de mineração.
Desde que li esse poema, numa oficina do poeta Carlito Azevedo, fiquei muito impressionada com ele, e acabei associando-o com o meu pai dizendo (mas isso eu posso ter inventado!), sempre que saíamos em viagem e passávamos pelos “mares de morros” que caracterizam a paisagem de parte de Minas Gerais, que, há milhões de anos, aquelas montanhas tinham sido o fundo do mar. Ao mesmo tempo, a imagem das montanhas “esvaziando-se” de si, como o mar quando recua, é uma referência à mineração e à visão, sempre para mim muito impressionante e terrível, das montanhas ocas, quase reduzidas a uma fachada, como se vê nas áreas de mineração.
O poema “Língua” me fascinou, por todos os sentidos que você dá à palavra língua e todas as formas que ela pode se mover e se flexionar... E como não somos traduzidos, mas lidos pela língua. Uma inversão que ainda não tinha pensado sobre... Como é brincar com a “língua” e colocá-la a serviço da poesia?
A matéria do poema é a língua, e a poesia lida com a língua com grande liberdade. Mas qualquer um que já se pôs a escrever sabe que a língua não se dobra facilmente, que não somos só nós que fazemos a língua dizer, ela também nos força a dizer. Roland Barthes cita o linguista Roman Jakobson para dizer que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que pelo que ele obriga a dizer. O poema “Língua” tem a ver com isso, com o quanto a língua, em especial a materna, de algum modo, digamos, nos escreve. “Língua” é um poema dividido em duas partes, ou dois movimentos, e a segunda parte de certo modo relativiza ou desdobra a primeira, sugerindo a possibilidade de pensar tanto a tradução quanto a poesia como formas de escapulir dessa tirania das línguas.
Como você equilibra a escrita entre a prosa e a poesia?
Escrevo basicamente poesia, nunca escrevi prosa de ficção. Escrevi ensaios, ou algo próximo disso, na época em que fiz mestrado e doutorado na UFMG. Embora a fronteira entre a prosa e a poesia seja evidentemente porosa, permeável, acho que, pelo menos para mim, a escrita da poesia e a escrita da prosa mobilizam o tempo e a atenção de modos bem diferentes. Nesse novo livro, há dois poemas, “Prosa (I)” e “Prosa (II)”, que tratam de algum modo dessa relação entre a prosa e a poesia, que o Valéry certa vez definiu como a diferença entre caminhar e dançar.
Depoimento
Andréa Sirihal Werkema, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
“Na poesia de Ana Martins Marques, o que sempre mais me fascina é a conversa interminável sobre a poesia em si, assunto de tantos de seus poemas, mesmo que venham “disfarçados” de poemas de amor, ou de poemas sobre os objetos que cercam nossa insistente e banal existência. Metapoesia, diríamos em sala de aula para nossos alunos que se arriscam na leitura dessa outra voz, outra língua que é, em termos próprios, a poesia em si. Mas Ana faz de sua poesia autorreflexiva um lugar que se alterna entre a frágil suavidade e a promessa de humor, mas há a perda, há a solidão, há a casa vazia. Poesia que pode ser amarga, e que visita sempre o silêncio; que é sucinta, mas deixa no ar tanta coisa a ser dita – sempre o interdito –, vício mineiro, de poetas mineiros, a quem Ana Martins Marques se junta em diálogo e pertencimento.
Vários poetas, mulheres e homens, perpassam também sua poesia, outro traço que me fascina, porque assume essa outra feição que para mim é a mais poética, junto à metapoesia: a convivência com outros poetas, a conversa de palavras escritas, as visitações e os convites para que os poetas venham falar um pouco de novo aqui, na página do livro da poeta mineira. Enfim, não é fácil falar de uma poesia que tematiza nossa vida em suas pequenas histórias, os gestos que passam despercebidos, mas que fazem da poesia de Ana Martins Marques solidez e leveza, voz fundamental nesses dias amargos que vivemos.”
Vários poetas, mulheres e homens, perpassam também sua poesia, outro traço que me fascina, porque assume essa outra feição que para mim é a mais poética, junto à metapoesia: a convivência com outros poetas, a conversa de palavras escritas, as visitações e os convites para que os poetas venham falar um pouco de novo aqui, na página do livro da poeta mineira. Enfim, não é fácil falar de uma poesia que tematiza nossa vida em suas pequenas histórias, os gestos que passam despercebidos, mas que fazem da poesia de Ana Martins Marques solidez e leveza, voz fundamental nesses dias amargos que vivemos.”
Depoimento
Andréa Soares Santos, professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG
“A poesia da Ana revela um olhar atento e inventivo sobre as coisas, os objetos do cotidiano, o que faz com que a poesia dela produza imagens que geram articulação muito especial, muito típico da poesia dela, entre o concreto das coisas, dos objetos, e o abstrato dos pensamentos, dos sentimentos, das percepções, a obra dela revela uma capacidade de testar, por meio da escrita do poema, os limites da linguagem como representação. A linguagem da poesia dela tem um equilíbrio muito sutil, muito calculado, talvez, e delicado também, capaz de percepções elaboradas em linguagem que considero transparente. A Ana é uma das vozes mais importantes no panorama da poesia brasileira contemporânea.
Interessante que seja uma voz feminina, embora não reconheça que a Ana reivindique essa questão da representatividade. A poesia da Ana não é desse lugar. Mas acho importante dizer que é uma poesia escrita por uma mulher nascida em Minas Gerais. Traz a raiz mineira de forma bem amadurecida. É bom que parta daqui.”
Interessante que seja uma voz feminina, embora não reconheça que a Ana reivindique essa questão da representatividade. A poesia da Ana não é desse lugar. Mas acho importante dizer que é uma poesia escrita por uma mulher nascida em Minas Gerais. Traz a raiz mineira de forma bem amadurecida. É bom que parta daqui.”