Jornal Estado de Minas

POESIA

Leia poemas de Ana Martins Marques

(de “Risque esta palavra”)

Finados

Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingança:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol.




Tuas camisas nos armários
agora apenas vestem a si mesmas.
Seria preciso usá-las, levá-las para passear, manchá-las de café, tinta, graxa, 
desodorante, suor.
Uma ofensa à morte
um desafio.
Quem sabe tudo o que morreu
com quem morreu?
Um livro nunca escrito
um novo amor
um pensamento que permanecerá
impensado.
Quem sabe o que essa morte
trouxe à vida?
As casas
coloridas
estão alegres sem motivo.



Parar de fumar

o que fazer agora
com as mãos
cegas?

o cigarro é parente
do lápis

eram, afinal, gestos para nada
como na dança

(e fico à espera de alguém que coreografe o ato
de acender um cigarro numa praia cheia de vento)

as cariátides
as gárgulas
seriam mais felizes
se fumassem

só amamos de fato
o que serve para nada

mas as mãos mais do que nós
sabem o que fazem – 
são desde cedo adestradas
no adeus

só sinto falta de fabricar
minha própria nuvem

e de esperar-te em alguma esquina
fumando em pé
como um farol

Relâmpagos

O pensamento
é um pornógrafo
e quase só de palavras
se faz o amor

e no entanto não se embaraça
o pensamento com os cabelos
como os meus cabelos
se embaraçavam nos seus

e não se misturam as palavras
com as palavras como na boca
a saliva se mistura
com a saliva

nem as línguas que falamos
deixam gosto na língua

ou eu teria ainda na minha
o sal da sua

nem anoitece na memória
aos poucos como anoitecia
naquele quarto estreito
já fui um ser de duas cabeças
e ancas
já tive quatro pernas duas bocas
tive quatro braços e mãos
e vinte dedos das mãos
e dois sexos e dois corações
pulsando
simultâneos

já tive só palavras rápidas
como relâmpagos
atravessando a pele

o que foi feito das palavras
que trocamos?

o que foi feito desse ser
desajustado para o mundo?

o que ficou além da cicatriz
dos relâmpagos?

Lembrete

Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um céu inestrelado
templos brancos como ossos
repousam entre oliveiras
quase igualmente antigas

uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua trança pesada

um pequeno lama
cabeceia de sono

e há leões e laranjas
falcões e hangares
anêmonas e zinco

um bando de antílopes
atravessa um pedaço de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais

em silêncio um homem prepara
menos comida do que ontem

um a um
partem os barcos
de passeio

chove intensamente
sobre teleféricos

uma mulher vê
a cidade acender-se
à medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas

arrumam-se armários
roupas de pessoas mortas
envelhecem corpos jovens

envelhecem também
os automóveis
e as máquinas agrícolas

com uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que então serão deixados
afogando-se na areia

alguém conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita

pensar que devemos estar
à altura
disso

(de “A vida submarina”)

Navios

Dão voltas e voltas os navios
que não têm mais do que partir:
não há mais continentes por conquistar.




Velas, bússolas, mapas
restam também
Sem utilidade:
nenhuma direção é nova
ou desconhecida,
até a dor encontrou sua medida.

Mesa

mais importante que ter uma memória é ter uma mesa
mais importante que já ter amado um dia é ter
uma mesa sólida
uma mesa que é como uma cama diurna
com seu coração de árvore, de floresta
é importante em matéria de amor
não meter os pés pelas mãos
mas mais importante é ter uma mesa
porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia
os que ainda não caíram de vez

Álbum

Nunca estivemos juntos em uma fotografia.
Era sempre eu, os olhos baixos,
o sorriso desajeitado,
ou tu, o olhar distante, quase antigo,
sempre mais bonito do que és.
Assim não temos com que nos acusar.
De alguma forma, porém,
meu embaraço te revela, como me revela
tua beleza inexata.
Por via das dúvidas
achei melhor queimar. 

audima