Jornal Estado de Minas

VERSÃO DE UM CLÁSSICO

Adaptação leva jovens leitores a uma viagem de aventuras com Dom Quixote

“ – Meu amigo, nunca esqueça sua origem humilde de camponês, não tenha vergonha, mas sim orgulho dela. Assim todos terão também. Dê mais atenção aos pobres que aos ricos. Trate todos bem, de maneira igual, dos criados aos nobres. E, Sancho, o conselho mais importante: seja justo –. Depois dos bons conselhos, o escudeiro quis se levantar para agradecer, mas Dom Quixote continuou: – Agora, os conselhos de higiene: tome banho todos os dias, corte as unhas uma vez por semana, ande bem-vestido... nem tão elegante, nem tão desleixado. Coma pouco de dia e ceie menos ainda: esse é o segredo da saúde. 'Que o alimento seja seu remédio', já dizia Hipócrates. Beba pouco. Não se esqueça: Deus ajuda quem cedo madrugada. E nada de preguiça.”




Essa é uma passagem da parceria entre o personagem mais célebre da literatura mundial, já no fim da vida, narrada em “As aventuras de Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança”, adaptação infantojuvenil da obra-prima de Miguel de Cervantes (1547-1616) feita pela escritora carioca Luciana Sandroni, que acaba de ser lançada.

Como se sabe, depois de muito ler histórias de cavalaria, o solitário e entediado Alonso Quixano, que vive em sua propriedade numa aldeia na região da Mancha, na Espanha recém-saída da Idade Média, em companhia da governanta e de uma sobrinha, tem um surto de insanidade. Numa madrugada, sem distinguir mais realidade e fantasia, ele se transforma em Dom Quixote.

“Sairei pelo mundo para proteger os fracos e oprimidos! Ah, nesse mundo há tantas injustiças por desfazer!”, diz o novo herói, que improvisa escudo e espada, monta num cavalo magrelo, que recebe o nome de Rocinante, e vai pelo mundo em busca de aventuras como cavaleiro andante para acabar com a injustiças, na companhia de um vizinho, Sancho, a quem convence ser seu escudeiro em troca de ganhar uma ilha para governar. Tudo em nome de seu amor platônico por Dulcineia.





Entre os primeiros inimigos, os mais famosos do romance, estão dezenas de moinhos transformados em terríveis monstros pela imaginação de Dom Quixote. Os aparelhos mecânicos eram uma grande novidade na época. “Os moinhos de vento era enormes, visíveis a distância e mais barulhentos do que qualquer outra coisa produzida pelo homem. Capazes de mover moendas e outras máquinas pesadas com a força dos gigantes, foram os primeiros precursores da civilização mecânica e os perfeitos adversários para alguém como Dom Quixote, que insistia em viver no passado”, avalia o escritor Martin Puchner, autor de “O mundo da escrita – Como a literatura transformou a civilização” (Companhia das Letras/2019). Segundo ele, Dom Quixote foi tão popular quando lançado “que a pessoas começaram a se vestir como ele”.

Escrito há quatro séculos (a primeira parte em 1605 e a segunda em 1615), Dom Quixote é considerado o primeiro romance moderno e já apontado inúmeras vezes como o maior romance de todos os tempos. É uma fabulosa sátira à literatura popularíssima da época, os romances de cavalaria, nos quais os heróis com poderes ilimitados enfrentavam mundos e criaturas sobrenaturais para salvar donzelas indefesas. Dom Quixote, entretanto, ao contrário dos heróis medievais, é humano, demasiado humano.

Cervantes teve uma vida épica como soldado, lutou em guerras, ficou com a mão mutilada, foi prisioneiro de guerra e tornado escravo pelos turcos por cinco anos, após ser capturado em alto-mar. Viu sua obra ser plagiada e usurpada e morreu pobre, sem reconhecimento de sua genialidade. Essa vida aventurosa está refletida em suas obras, principalmente em Dom Quixote e seu ferrenho idealismo para tornar o mundo mais justo.





'HÁ ALGO DE PODRE NESTE CASTELO'

A adaptação de Luciana Sandroni, em 123 páginas retiradas das mais de 1,2 mil da obra original, com belas ilustrações de Ana Matsusaki, capta bem o espírito literário original para iniciar os jovens leitores na saga de Dom Quixote de forma divertida e, o mais importante, com boas reflexões sobre justiça, solidariedade, lealdade e humanismo. Em sua loucura, que contagia Sancho, Dom Quixote é justo e sensato.

Mas será que é loucura lutar por justiça? É tão impossível e incomoda tanto assim o resto do mundo. “Dom Quixote, como apontam os especialistas, é louco na ação, mas seus comentários são sempre profundos, sensatos. Acredito que o livro passa uma esperança de lutar contra as injustiças, pelos mais pobres, pensar nos outros. Penso que Cervantes quis dizer com a “loucura” uma forma de rebeldia contra as injustiças do mundo”, diz Luciana Sandroni em entrevista ao Pensar.

Talvez seja a luta por justiça uma loucura que incomoda. Dom Quixote conversa com Sancho: “– Se ao defender os pobres e os necessitados, sou preso, é porque há algo de podre neste castelo. Já suspeitava disso, não é, Sancho? Sei que a coragem e a luta por justiça incomodam. Sempre foi assim: a virtude é mais perseguida pelos maus do que defendida pelos bons. Mas o mal não durará para sempre! Os bons tempos voltarão!’ Os amigos, emocionados, bateram palmas e gritaram vivas. O herói, confiante, foi levado pelos guardas”.





Dom Quixote, então, foi detido pela guarda real, colocado numa jaula e mandado de volta para casa depois de mais uma investida sobre pessoas comuns como perigosos inimigos imaginários. Mas, em outro lampejo (será de loucura ou de lucidez?), ele persiste no diálogo com a governanta? “– Meu patrão, o senhor não vai sossegar, não é? - perguntou a governanta. – Não minha amiga. Não posso viver alheio a tantas injustiças. Os tiranos estão à solta.

Tenho que endireitar o que está torto. Nasci para isso (…) Quero sair por esse mundo, socorrer os órfãos e as viúvas, dar comida aos que têm fome e água aos têm sede. Se ficar aqui deitado nessa cama... não sei o que será de mim.” Lendo Dom Quixote (a extensa obra original, na qual Cervantes intercala outras inquietantes histórias, como “A novela do curioso impertinente”, ou a boa adaptação de Luciana Sandroni), percebe-se a atualidade da obra. Afinal, a plena justiça dos homens ainda é precária e ainda está pendurada na bandeira do idealismo.

Entrevista
LUCIANA SANDRONI
Escritora

'Parece que ele fala ao nosso tempo'

Por que adaptar “Dom Quixote” para o leitor infantojuvenil? 
Na verdade, fui convidada pelas editoras da Brinque Book, Suzana Sanson e Anna Rennhack, para fazer a adaptação. Mas acredito que tenha sido porque “Dom Quixote”, um clássico, é um personagem que agrada a todos, adulto ou criança. O livro tem a capacidade de divertir e, ao mesmo tempo, fazer pensar. É uma obra que surpreende o leitor pela atualidade, embora seja um texto de mais de 400 anos. Parece que ele fala ao nosso tempo.





Uma adaptação não desestimula o leitor a ler depois a obra original ou é o contrário, exatamente por isso ele vai querer conhecê-la com mais detalhes? 
Na minha opinião é o contrário, a adaptação de um clássico pode despertar, mais tarde, a curiosidade do leitor para a obra original. Assim como a adaptação, seja para a TV, o cinema, o teatro, sempre desperta interesse pelo livro original. É interessante mostrar para o jovem leitor e para as crianças que os escritores contemporâneos também se “alimentam” dos clássicos.

Você concorda com a recente e polêmica declaração do youtuber Felipe Neto de que “forçar adolescentes a ler clássicos do romantismo e realismo é um desserviço das escolas para a literatura” e que isso “gera jovens que acham literatura um saco”? Viria daí a necessidade de adaptações?
Acredito que “forçar” a ler não é o desejado. Penso que o bom professor deve despertar o interesse do aluno para a leitura, seja a adaptação de um livro clássico ou de um autor contemporâneo, e existem muitos hoje no Brasil. Ele fará de tudo para estimular o interesse do aluno nessa viagem fantástica que é a leitura. Não é fácil, mas deve ser prazerosa. Se a escola não incluir no seu currículo livros de Monteiro Lobato, Machado de Assis, Drummond, Manuel Bandeira, quem vai falar? No Brasil, a maioria dos alunos chega aos livros por intermédio da escola.

O livro é caro, não há uma política pública de incentivo à leitura... Nesse governo, então, nem se fala... Então, o professor tem essa responsabilidade. Mas acredito que se ele suscitar sua paixão pelos livros, os alunos vão, de alguma maneira se interessar. Se não for agora, quem sabe mais tarde vão se interessar?
 
Além das várias aventuras de Ludi, você tem uma obra sensacional, “Joaquim e Maria e a estátua de Machado de Assis”, na qual a estátua de Machado de Assis na ABL ganha vida e acompanha de dois estudantes pelo Rio. Essa iniciativa veio da ideia de apresentar Machado ao público jovem? E que retorno neste sentido a obra obteve?
Tive essa ideia para homenagear os 100 anos da morte do Machado em 2008. Acho que sempre tem essa ideia, de apresentar a obra para os jovens, mas acho que a vontade maior era de cativar o leitor com uma aventura na qual Machado leva dois adolescentes pelo Rio de Janeiro atual. Nesta tentativa de mostrar uma face deste escritor genial, procurei inseri-lo na cidade em que ele nasceu, e seus romances aconteceram na cidade com uma vida intensa de grandes edifícios, de tráfego congestionado que assustaram o escritor.





Dom Quixote é idealista e ingênuo e acredita que pode fazer um mundo mais justo em defesa dos pobres e oprimidos. Mas diante de tanta injustiça desde que o mundo é mundo, é ingenuidade e “loucura” ainda hoje acreditar em justiça para todos, visto que parece um ideal inalcançável?
Miguel de Cervantes escreveu “Dom Quixote” numa época em que os livros de cavalaria andante ainda faziam sucesso, tempo de novelas heroicas narrando a saga medieval. Seu sentimento de justiça de defesa dos pobres e seu amor por Dulcineia vinham desses livros. Porém, Dom Quixote, como apontam os especialistas, é louco na ação, mas seus comentários são sempre profundos, sensatos. Acredito que o livro passa uma esperança de lutar contra as injustiças, pelos mais pobres, pensar nos outros. Penso que Cervantes quis dizer com a “loucura” foi uma forma de rebeldia contra as injustiças do mundo.

É a conquista de ideais que dá sentido à vida humana, inclusive para suportar a certeza da finitude, como faz Dom Quixote?
Ao ler “Dom Quixote”, entendemos que o sentido da vida humana é a solidariedade, o amor – não só o amor romântico, mas também o amor pelo próximo. E a luta pelos ideais humanistas.

“AS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE E SEU FIEL ESCUDEIRO SANCHO PANÇA”
Miguel de Cervantes
Adaptação de Luciana Sandroni
Editora Escarlate
123 páginas
R$ 44,90

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