Um editor revela que leu poucos livros. Faz sentido? Se o tema das publicações é depressão e o editor chama-se Luiz Schwarcz, a resposta é sim. “Não consigo ler sobre o assunto, ele já é demais presente em minha vida”, conta o fundador da Companhia das Letras. Ele decidiu expor, com franqueza e sem autocomiseração, episódios de sua vida, entre eles os resultantes de uma personalidade assumidamente bipolar, no livro “O ar que me falta – História de uma curta infância e de uma longa depressão”.
“Apenas posso dizer que meu livro não é só sobre depressão, ele trata de história, do Holocausto, de estratégias de sobrevivência, trata do complexo amoroso e de conflitos que permeiam uma família; enfim, acho que tentei imprimir um tom generoso para a narrativa, espero ter conseguido”, afirma o editor, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas.
“Apenas posso dizer que meu livro não é só sobre depressão, ele trata de história, do Holocausto, de estratégias de sobrevivência, trata do complexo amoroso e de conflitos que permeiam uma família; enfim, acho que tentei imprimir um tom generoso para a narrativa, espero ter conseguido”, afirma o editor, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas.
Nas 200 páginas, Schwarcz denomina a depressão uma “velha senhora, que chega sorrateira” e que o faz viver “apenas em função do momento, com um julgamento sempre absoluto e no presente”. A infância do paulistano, nascido em 1956, foi permeada por medos e silêncios, num estado de espírito que descreve como de “angústia constante”.
Ele afirma que se impôs limites de até onde poderia avançar na exposição de familiares como o pai, húngaro, que escapou de um trem a caminho de um campo de concentração nazista antes de se mudar para o Brasil. “Fiquei na corda bamba entre um relato confessional forte e o cuidado com os outros membros da família: o livro tem o que devia ter e não tem o que não podia ter.” Ao lado, uma entrevista com Schwarcz, que teve dois companheiros durante a escrita do livro: Beethoven e Puccini. “Decidi que só escreveria ao som das músicas dos dois compositores e isso tornou o trabalho, ao mesmo tempo, mais profundo e prazeroso.”
Ele afirma que se impôs limites de até onde poderia avançar na exposição de familiares como o pai, húngaro, que escapou de um trem a caminho de um campo de concentração nazista antes de se mudar para o Brasil. “Fiquei na corda bamba entre um relato confessional forte e o cuidado com os outros membros da família: o livro tem o que devia ter e não tem o que não podia ter.” Ao lado, uma entrevista com Schwarcz, que teve dois companheiros durante a escrita do livro: Beethoven e Puccini. “Decidi que só escreveria ao som das músicas dos dois compositores e isso tornou o trabalho, ao mesmo tempo, mais profundo e prazeroso.”
“Este livro foi construído sobre uma longa história de silêncios”, você afirma na introdução. Por que romper o silêncio?
Talvez por que o silêncio tenha sido tão longo que o que eu mais queria era encontrar uma forma de rompê-lo. Também porque o silêncio está no centro de três gerações em minha família – do silêncio do meu avô e dos judeus sem voz em campos de concentração, passando pelo silêncio cheio de culpa do meu pai, por não ter acompanhado meu avô e ter fugido do trem que os levava a Bergen Belsen, e o meu silêncio, pelo peso do passado que foi minha maior herança, e que se ampliou pela depressão que enfrentei.
Em “O ar que me falta”, você narra um episódio em que ficou “assustado com o esforço que precisava fazer para que o ar entrasse em meus pulmões”, e da dificuldade que teve com “o ato de respirar”. E o livro foi lançado durante uma pandemia, na qual centenas de brasileiros morreram por falta de oxigênio. Como essa coincidência o impactou?
Sim, essa coincidência foi desagradável e me tirou o chão por alguns momentos. Eu comecei a escrever antes da pandemia e antes do caso George Floyd. Dei o título logo de cara, e a falta de ar funcionava como um gancho do presente para o passado e vice-versa. Cheguei a pensar que teria que trocar o título e até propus na editora mudarmos para “Três silêncios”, mas não era o título correto. Pois o livro parte de mim, mesmo tendo meu pai e avô muito em cena.
O que acredita que irá mudar no mercado editorial com a pandemia?
O mercado editorial vai mudar como tudo, haverá um reforço dos hábitos de compra on-line, mas tenho certeza de que as livrarias de rua continuarão fortes, pois o serviço que elas prestam é diferenciado. E as empresas editoras trabalharão parcialmente em home office.
“Quem tem depressão vive apenas em função do momento.” E, quando o momento do país é particularmente trágico e desencantado, como são impactados os que têm depressão?
Não dá para considerar a existência de um tipo “o deprimido”. Cada depressão é um caso particular. Os que sofrem com crises de ansiedade tendem a piorar muito com cenários claustrofóbicos socialmente. Os com forte melancolia podem se largar ainda mais. Mas há pessoas que, mesmo com depressão, encontram no desafio uma saída. A tendência maior, eu acho, é o surgimento de um número grande de novos casos, um possível agravamento de outros, mas não dá para generalizar, quando se fala de depressão.
Ao se referir às recaídas, você cita que “a depressão volta sem enredo específico, como uma reação química pura. Na maioria das vezes, inexplicavelmente, a velha senhora chega sorrateira.” Essa “velha senhora” surgiu durante a escrita ou a edição deste livro? O que fez, e o que faz, para afugentá-la?
Ela surgiu sim, mas como uma enorme falta de confiança com a qual eu tive que lidar, mas que me incomodou. Não sabia se o que estava fazendo estava bom, e qualquer sinal, paranoico, que eu achava ser de desaprovação eu jogava minha capacidade de escrever num lixo imaginário. E assim foi quando o livro saiu. Foi mais duro durante a escrita, pois as reações positivas foram rápidas, depois da publicação. Os editores da Companhia fizeram um trabalho excelente, pois meu texto sai com um certo descuido nos detalhes. E o debate que travamos também foi profícuo. Dois deles queriam que eu eliminasse as partes mais íntimas, ou violentas. Fiz bem de me manter firme.
“O ar que me falta” também é um livro de “quase-memória” sobre um grande personagem, o seu pai, que lembra, em certos momentos, o pai descrito-imaginado por Carlos Heitor Cony no romance de 1995 e maior êxito do escritor carioca. O que foi mais difícil no processo de transformar lembranças familiares em palavras?
Muito boa lembrança. Mas Cony era um mestre e “Quase memória” é sua obra-prima. No meu caso não há o mesmo talento literário e o texto é pura não ficção. Passei ao papel de algum lugar na minha mente onde todas essas histórias já estavam escritas, até pelo tempo que passava sozinho como criança, e depois da depressão. Minha cabeça não para. O silêncio é só exterior. Assim, o processo foi natural. Eu não poli minha escrita. Ela é simples, quase de um não autor. O fato de eu ter que me colocar profissionalmente entre o autor e o leitor deve ter ajudado muito.
É curioso que seja na música, e não nos livros, que você procure uma forma de reduzir os efeitos da depressão. O que você encontra na música que não acha na literatura?
É claro que quando leio um livro de Thomas Bernhard, Carlos Drummond de Andrade, W. G. Sebald ou Guimarães Rosa eu me encho de felicidade e crença no ser humano. Mas no meu dia a dia eu leio sem parar, coisas boas e outras menos. A música e a arte por buscar uma expressão sem palavras me atraem muito, pois se ligam a uma tradição na minha vida de achar que as palavras não dão conta do coração dos homens. Mas isso é apenas parcialmente verdade. Na literatura de alto nível isso se dá também. Disse no livro que gosto de autores que não dizem tudo. Borges e os grandes contistas, por exemplo. Tem que sempre haver um silêncio para acalmar o filho único viciado no som do silencio.
“No futuro, sempre há mais espaço para ilusões.” Há espaço para sonhar com um país com mais leitores no futuro ou é apenas uma ilusão?
Acho que dá, quando acabarmos com esse pesadelo que invadiu nossa vida e que tenta destruir qualquer sinal de futuro. Bolsonaro é a pulsão de morte no poder. Com ele não há futuro algum.
TRECHO DO LIVRO
“Eu percebi no divã, com a ajuda da psicanálise, que precisava empreender e criar minha editora. Depois de fundada a empresa e do sucesso prematuro, passei a faltar às sessões. Não conseguia ir aos três encontros se- manais que um trabalho psicanalítico profundo requer. Eu tinha muito mais compromissos do que previra, mas também me sentia embriagado pelo impacto inicial que a Companhia das Letras causara. Imprudente, abandonei a análise. Tempos depois, encontrei Maria Elena (Salles, psicanalista) num voo e ela me perguntou se eu pensava em voltar (...).
(...) A análise foi uma das experiências mais importantes da minha vida, e nessa segunda rodada durou pouco mais de dez anos. Mesmo com o acerto da medicação, sem a análise eu não teria saído completamente da crise. A parte que resta até hoje, e que vira e mexe aparece, ou que não me permite parar de tomar remédios, é basicamente química. Não sei como estaria se não houvesse passado por esse processo de autoconhecimento, durante o qual muitas vezes mirava o fundo do abismo e em outras vislumbrava, com mecanismos que encontrava dentro de mim, a redenção. É como nos sentimos levando a sério um tratamento analítico, depois de conhecer processo tão destrutivo. Sem a psicanálise, eu não teria instrumentos pessoais para lidar com os resquícios químicos da depressão.”
“O ar que me falta – História de uma curta infância e de uma longa depressão”
De Luiz Schwarcz
Companhia das Letras
200 páginas
R$ 59,90