Jornal Estado de Minas

COLETÂNEA

Histórias curtas de Bernardo Kucinski: contos de vidro e corte

Quando nasci, ainda era ditadura no Brasil. Bem mais tarde, fui saber que era o ano em que começaram as primeiras manifestações pelas Diretas já, uma lufada de esperança pelo fim da barbárie. Lembro-me do entusiasmo na escola durante a primeira campanha eleitoral para presidente, depois de décadas de um regime de exceção. A professora propôs uma atividade em sala de aula simulando todas as etapas do pleito, desde a escolha dos candidatos até a contagem das cédulas depositadas nas urnas.



Foi divertido, mas sempre me perguntei sobre os anos que antecederam aquele evento, algo nunca ensinado nas aulas. Não sabia do golpe contra o presidente João Goulart, da censura à imprensa, da perseguição, tortura e morte de opositores, dos exilados, da corrupção e do endividamento externo, do genocídio negro e indígena, dos movimentos de resistência. Sabia, no entanto, das consequências de se viver em um lugar de privação de direitos e liberdade, onde pessoas desfilam armadas na porta de casa, sobrevive-se com pouco e a presença do Estado aprofunda ainda mais a repressão e as desigualdades. Era como se ainda fosse ditadura no Brasil.

Essa é uma das temáticas mais presentes em “A cicatriz e outras histórias”, reunião de contos de B. Kucinski, assinatura literária do escritor, jornalista e professor aposentado da USP Bernardo Kucinski, preso e exilado pela sua militância contra a ditadura civil-militar. Com a publicação de “K. – relato de uma busca” (2011), sobre a angústia de um pai em face do desaparecimento da filha durante a ditadura, Kucinski se tornou em um dos escritores mais proeminentes da literatura brasileira contemporânea.

A história é inspirada no caso da irmã do autor, Ana Rosa Kucinski, professora de química da USP, presa em 1974 pelos militares e jamais encontrada. Assim, em sua obra, realidade e ficção se misturam, não para confundir o leitor, mas para fazê-lo refletir criticamente sobre os horrores que narra. Afinal, como diz o filósofo francês Jacques Rancière, “o real precisa ser ficcionalizado para ser pensado”.





A coletânea traz narrativas curtas escritas entre 2010 e 2020, organizadas, segundo o autor, “por afinidade temática ou formal”, em seções intituladas “Histórias dos anos de chumbo”, “Instantâneos”, “Outras histórias”, “Kafkianas”, “Judaicas” e “Você vai voltar pra mim”. Apesar da referência evidente no título da primeira seção, os textos sobre a ditadura civil-militar e suas consequências também atravessam as demais, como a última, que intitula o conto e o livro homônimo, publicado em 2014. Contudo, o autor também retrata uma diversidade de outros temas, como conflitos familiares (“Tempos modernos” e “O sal da discórdia”), crimes ambientais (“A tartaruga”) e desigualdades sociais e econômicas (“Ordem e progresso” e “Pequena história da mais-valia”). Na seção “Judaicas”, por exemplo, os contos expõem questões de identidade, trauma e memória dos judeus, elementos que também atravessam a biografia do autor, filho de imigrantes poloneses e descendente de judeus mortos na Shoah.

Mecanismos de silenciamento 


As duas epígrafes de Julio Cortázar, extraídas de “Rayuela” e de “Las babas del diablo”, evidenciam o impasse do ficcionista diante da matéria a ser narrada. Como descrever o indizível, o que não tem nome, o que nos assombra como a queda no abismo? Como falar das dores que ainda latejam nas entranhas, apertam a nossa garganta e nos estremecem com seu cheiro de morte? Por isso, os mecanismos de silenciamento, seja pelos traumas do passado ou pelas violências do presente, aparecem em grande parte das narrativas. Com uma linguagem direta, enxuta e com períodos breves, o texto de Kucinski é cortante e, em alguns momentos, pela quase ausência de conectivos, parece buscar fôlego, como em “Os irmãos bolivianos”.

O domínio narrativo do escritor da forma moderna do gênero, como bem ressalta, no prefácio, Fabíola Padilha, está na “perícia com que controla, sem jamais deixar que arrefeça, a carga tensional da narrativa”. Além da influência de Cortázar, nas epígrafes e na vitória por nocaute, como este definiu o conto, o escritor paulista também aprendeu bem a lição de outro argentino, Ricardo Piglia, para quem “um conto sempre conta duas histórias”. Em Kucinski, elas não se conciliam, mas nos atingem, no desfecho da narrativa, feito lâmina que nos fere e só sentimos no instante seguinte, com o atraso do sangue e da abertura do corte. Em alguns contos, o impacto se torna ainda maior pela perversa ironia construída desde o título, como “A madre” e “Você vai voltar pra mim”, exemplares do mal da natureza humana e também das consequências de uma sociedade que cultua a violência e a morte em suas dimensões estética e política. Um dos legados da nossa miséria.





* Rodrigo Jorge Ribeiro Neves é professor, crítico literário e doutor em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
 

TRECHO do livro


“Com o desaparecimento do César, papai nunca mais foi o mesmo. Alguma coisa se quebrou dentro dele. Deixou de convidar os amigos para os domingos na chácara. Costumava chamar um monte deles, era o seu prazer, ter os amigos em volta. Hoje penso que papai começou a morrer naqueles dias. Continuou a viver, mas de alma morte; disfarçava para nos poupar, fingia que vivia. A síncope foi só o desfecho.
Assim que papai se foi, a família começou a desmanchar.”
(“Não vamos falar do César”)

“Vivemos tempos estranhos, em que se sucedem assassinatos sem que alguém seja levado a julgamento. As famílias burguesas pretendem que não é com elas, que existe lei, que polícia as protege. Porém, esses tempos já se foram e nada parece obstar o curso demoníaco da matança e da impunidade. Assim é a história que lhes vou contar. Um assassinato, talvez um duplo, embora os corpos jamais tenham sido encontrados. Dela tomei conhecimento de uma maneira insólita e que me comoveu.”
(“Claroscuro”)

ENTREVISTA

 
Bernardo Kucinski

“A criação artística nasce da comoção e inconformismo perante a miséria humana”

Quais critérios utilizou para dividir os contos em diferentes partes? O que une esses contos?
Essa antologia reúne toda minha produção publicável como contista. É isso que os une. Foi pensada como uma espécie de despedida, um registro definitivo. Tanto assim que incluí os contos já publicados pela Cosac Naify na antologia “Você vai voltar pra mim”, que sumiu das livrarias depois do fechamento daquela editora. Por que despedida? Pode ser paranoia, mas a pandemia aí está abreviando vidas e eu já passei dos 83 anos... Já estou no cheque especial. Quanto à organização dos contos, primeiro pensei na ordem cronológica de criação de cada conto.

Daria uma ideia da minha evolução como contista. Depois, ao conversar com meus editores, achamos que, para o leitor, seria mais útil agrupar por afinidade temática ou formal, já que se trata de uma antologia heterogênea com mais de 100 contos, que será lida aos poucos, um ou dois contos hoje, outros dois ou três amanhã. A rigor, a ordem cronológica só interessa a estudiosos da literatura. Ainda assim, mantivemos, dentro de cada bloco, a ordem cronologia de criação dos contos

Embora o tema da ditadura civil-militar esteja presente, de forma explícita, em parte dos seus contos, em outros percebe-se certo desamparo da experiência humana no cotidiano, mas que também é indissociável de condições políticas e sociais, como em “A aposta”. Como enxerga essas relações na concepção de suas histórias?
Interessante você citar “A aposta”. Foi meu primeiríssimo conto, o que me fez ficcionista. Surgiu de uma observação do cotidiano que me espantava: os lixeiros sempre correndo atrás do caminhão de lixo. A forma mimetiza uma reportagem sobre uma sucessão de suicídios ocorridos no curso de medicina da USP, escrita por um aluno para o jornal laboratorial na época em que eu lecionava na ECA/USP. O aluno adotou a primeira pessoa: “Ontem, eu me matei ...”.”



“A aposta” foi escrita de uma tacada só, sem que eu precisasse corrigir, burilar, nada. Isso acontece com a maioria dos meus contos, os melhores. O que remete para a sua pergunta sobre a relação entre o desamparo da experiência humana no cotidiano e as condições políticas e sociais, e minha resposta é que seja essa relação ou a frequente ausência de afeto em laços familiares, observada por um crítico literário em muitos dos meus contos, surgem espontaneamente no ato de escrever, sem que eu disso tenha consciência.

No mês passado foi noticiado que, em decisão inédita, a Justiça de SP condenou um agente da ditadura civil-militar por crime político. Apesar de tardia, a medida é histórica, ainda mais no momento que vivemos, sob um governo de militares e de revisionistas do golpe de 1964. Mas, além de punir os crimes da ditadura, é preciso fazer o trabalho de memória, para que, efetivamente, possamos combater a barbárie e fortalecer a democracia. Nesse sentido, para o senhor qual seria o papel da literatura?
A ditadura marcou a minha geração. Eu a cobri como jornalista e a sofri como pessoa. Porém, em tese, não creio que o ficcionista se proponha a desempenhar uma determinada função social ou política ou ideológica ou de persuasão; muito menos substituir historiadores ou jornalistas. Penso que o ficcionista é sujeito de um impulso criativo que o domina, mesmo quando ele parte de um projeto pré-delineado. Dito isso, obviamente, suas convicções, sentimentos e visões de mundo e mesmo necessidades pessoais de remissão ou catarse vão marcar o que ele escreve.

Em tempos de ascensão do obscurantismo, do culto à violência e de desprezo pelas minorias, qual é a importância da literatura?
“Quando ouço falar em arte, saco meu revólver” é a frase famosa atribuída a um general fascista. Os fascistas odeiam a arte, e isso diz tudo. Penso que a expressão ou sublimação pela arte é o que há de mais humano nos humanos, daí sua incompatibilidade com o desumano com o anti-humano. Penso que a criação artística seja literatura, cinema, música ou artes plásticas, nasce da comoção e inconformismo perante a miséria humana, ou do deslumbramento perante o belo, ou da perplexidade perante o insondável; pode nascer de tudo isso, raramente nasce do ódio.





De onde vêm as histórias que você conta?
Muitos contos de “Você vai voltar pra mim” nasceram de testemunhos à Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, que acompanhei. Porém a maioria nasce de um fragmento isolado de informação. Soube que um pai quis enterrar o filho desaparecido político e, na ausência do corpo, colocou no caixão um par de sapatos do filho.

Dessa única informação nasceu o conto “O velório”, todo ele imaginado. Alguns poucos, como “A beata Vavá”, “O exílio de Pompeu” e “O crime do marinheiro” nasceram de relatos mais longos. Levo comigo uma caderneta de anotações e anoto frases ou o relato de um fato. Em 10 anos, enchi cerca de 90 cadernetas. Até que veio a pandemia e tudo parou. É raro nascer uma história da observação direta, como foi o caso de “A aposta”.

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