Quase um século depois de sua morte, mais um dos fantásticos enredos de Franz Kafka (1883-1924) salta das páginas atormentadas que o consagraram e ganham vida em uma batalha judicial do século 21. Alemanha, Israel e a cidadã Eva Hoffe, habitante de Jerusalém, guerrearam em tribunal israelense pelo espólio de Max Brod (1884-1968), escritor de língua alemã nascido em Praga e de origem judaica. Miravam a herança de Brod, não pela produção deste em vida, mas porque aquele espólio continha o legado de Kafka, escritor tcheco em língua alemã, de origem judaica.
Foi assim que Kafka, para quem a literatura foi algo “sagrado, absoluto e incorruptível” – e que jamais se sentiu vinculado à causa sionista ou à literatura alemã ou a eventuais “dividendos” de seu trabalho – foi empurrado, impotente e à revelia, ao banco dos réus. Em um típico processo em que alegações infundadas, o absurdo, o abusivo se impõem e se naturalizam, o universal espólio literário foi alvejado por interesses políticos de estados e interesses econômicos de terceiros.
A qual dos três estranhos ao autor, pertenceria a obra dele? Tal é o realismo fantástico. Eva Hoffe, filha de Esther Hoffe, amante e ex-secretária de Max Brod, que jamais conheceu Kafka, mas, pelos acasos da vida, teve depositadas em sua bagagem as malas de manuscritos do gênio da literatura moderna. Embora berço de gigantes da literatura, a Alemanha, neste caso, também aspirou possível “redenção” pelos atos do nazismo, que inclusive exterminaram parte da família judia de Kafka. Já o estado de Israel, que até então não demonstrara interesse pela obra do autor, quis tê-la a pretexto de recuperar um “ativo cultural do povo judeu”, numa tentativa de legitimar, sob a narrativa do sionismo, a força desproporcional e desumana com que se impõe sobre os habitantes da Faixa de Gaza.
Esse é o enredo de “O último processo de Kafka” (Arquipélago), narrado pelo jornalista Benjamin Balint, que acompanhou toda a disputa judicial, entrevistando representantes das partes e envolvidos. Benjamin Balint abre a narrativa situando Eva Hoffe, de 82 anos, em 27 de junho de 2016, à espera da audiência na Suprema Corte de Israel, onde, após oito anos de trâmites processuais, em que se evidenciaram “dilemas legais, éticos e políticos”, seria anunciado o veredito. Para reviver o primeiro processo pós-morte de Kafka – outros virão, como intui a obra do autor –, Balint detalha os argumentos e ideologias argumentativas da disputa, que colocara os direitos de propriedade de Hoffe sobre o espólio de Max Brod, contra os interesses de Israel, representado pela Biblioteca Nacional e os interesses da Alemanha, através do Arquivo de Literatura Alemã em Marbach.
De tal julgamento, emerge com força o fantasma de uma velha polêmica, sobre a qual inúmeras vezes Kafka se pronunciou, conforme correspondência à sua namorada Felice Bauer, em 1916: “E, por acaso, você poderia me dizer o que eu realmente sou? Serei eu um cavaleiro circense sobre dois cavalos? Ai, não sou nenhum cavaleiro, estou é prostrado no chão”. Tal foi a reflexão do autor, quando a arte da narrativa de “A metamorfose” foi apontada, por um lado, como “algo de fundamentalmente alemão”; e pelo amigo e sionista Max Brod, como “documentos mais tipicamente judeus de nosso tempo”.
Em que pese não haver dúvidas sobre a judaicidade de Kafka, ela jamais implicou pertencimento ou adesão do autor ao sionismo. Tal assertiva fica clara em “Diários (1909-1923)”, recém-lançado pela editoria Todavia, que reúne todos os 13 cadernos com os escritos cotidianos de Kafka. Traduzido por Sergio Tellaroli, trata-se da primeira compilação publicada no Brasil com todos os diários resgatados por Max Brod. Em 1914, Kafka registra: “O que eu tenho em comum com os judeus? Pouco tenho em comum comigo mesmo e deveria, bem quietinho, me postar a um canto, satisfeito por poder respirar”.
Não apenas a trajetória de vida de Kafka, mas sobretudo a obra dele, versa sobre o não pertencimento, a não vinculação a coisa alguma, o retorno que jamais se concretiza. A dor de sua escrita – o Schmerz kafkiano – está envolta em niilismo, em prostração face ao absurdo de compreensão intangível, o desespero e a melancolia com que enfrenta a sua rotina. Em derradeira anotação em seu diário, em 12 de junho de 1923 (pouco menos de um ano antes de morrer), Kafka desabafa: “Cada vez mais angustiado ao escrever. É compreensível. Cada palavra revirada na mão dos espíritos — esse movimento da mão é seu gesto característico — transforma-se numa lança voltada contra quem fala. Sobretudo uma observação como esta. E assim até o infinito. O único consolo seria: vai acontecer, queira você ou não. E o que você quer ajuda pouquíssimo. Mais do que consolo é: também você dispõe de armas.”
Teatro de absurdos
Como se fosse um documentário, em “O último processo de Kafka”, Balint entremeia o embate no tribunal israelense com a história de vida das personagens da trama, em particular, como Kafka conheceu Max Brod, a quem legou todos os seus manuscritos publicados e não publicados. Da disputa, anota-se a ironia de ser Kafka, após a sua morte, o sujeito impotente, esquartejado por razões que lhe são alheias, em novo e atual teatro dos absurdos, tal qual tantos narrados com maestria e angústia.
Franz Kafka fez da ocultação de seu talento a vocação de sua vida. Ao legar os seus manuscritos ao amigo Brod, Kafka dera-lhe instruções explícitas para que todos fossem incendiados após a sua morte. Em sua desmedida convicção em relação ao que considerava a incompletude de sua obra, o próprio Kafka queimara em vida muito do que escrevera. A Dora Diamant, namorada por quem se apaixonara em 1923, Kafka também pedira que incendiasse os seus textos, ato que representaria uma simbólica libertação de sua alma daqueles fantasmas, personagens característicos de toda a obra. Assim Benjamin Balint narra os dilemas enfrentados por Dora Diamant, com quem Kafka viveu em Berlim em seus últimos meses de vida: “Respeitei seu desejo e, quando ele caiu doente, queimei coisas dele diante de seus olhos”. Dora Diamant manteve alguns dos manuscritos de Kafka, até que foram confiscados pela Gestapo em 1933
Sem jamais suspeitar que se tornaria um dos maiores escritores de todos os tempos, Franz Kafka morreu vítima de tuberculose em 1924, um mês antes de seu aniversário de 41 anos. Até então, publicara muito pouco em revistas literárias da época. “Contemplação” (1912), a primeira obra, abarca um conjunto de 18 textos – alguns datados de 1903, quando tinha 20 anos – já marcados pela força dessa literatura em sua naturalização do absurdo. De 1913, “O foguista”, que integraria o primeiro capítulo do romance “América” (cujo nome, segundo estudiosos, seria “O desaparecido”), foi lançado como peça autônoma. Dessa época, o conto “A metamorfose” se tornaria uma de suas obras mais célebres.
A “traição” de um desejo
Sem cumprir o pedido de Kafka, Brod não queimou as obras. Ao contrário, lançou, entre 1925 e 1927, “O processo”, “O castelo” e “América”. Em 1935, foi a vez de as obras escolhidas. Embora sob a custódia de Brod alguns dos escritos de Kafka tenham terminado na Bodleian Library, em Oxford, ele manteve, até a sua morte, em 1968, muitos textos guardados, prenunciando nesse ato, para Kafka, novo e inimaginável enredo. Por um lado, foi de fato pela traição de Brod ao desejo do amigo, que as obras se tornaram mundialmente conhecidas. A intrincada construção dos personagens em sua relação com aparatos estatais totalitários, em seu irracional poder sobre a insignificância dos indivíduos, foram fantasmas de recorrentes julgamentos na obra de Kafka. A literatura kafkiana descreveu décadas antes o drama de cidadãos europeus sob o fascismo e o nazismo, a vulnerabilidade do indivíduo diante do totalitarismo e dos efeitos desumanos de burocracias sem rosto.
O próprio Brod fugiu em 1939 de Praga para a Palestina, onde viria a conhecer o casal Esther e Otto Hoffe. Esta se tornaria sua secretária e amante. Foi a Esther que Brod legou os manuscritos, e esta, após comercializar alguns, manteve a maior parte deles armazenados em cofres fora de Israel, até sua morte em 2007, aos 101 anos. Contudo, conforme relato de Balint, em 1988, Esther Hoffe vendeu o manuscrito de “O processo” por uma pequena fortuna, daí depreendendo que era possível obter lucro com o legado universal de Kafka. Coube às filhas, Eva e Ruth a herança de Esther. Eva Hoffe, que morreria aos 85 anos, dois anos depois do veredito, teve a vida consumida pelo legado.
O que desejou Kafka? Nas palavras de Balint: “Em sua biografia de Kafka, Max Brod relata uma conversa na qual o amigo sugeriu que os seres humanos talvez não sejam nada mais do que pensamentos niilistas na mente de Deus. ‘Então existe alguma esperança?’, Brod perguntou. ‘Há esperança de sobra’, Kafka respondeu, ‘uma quantidade infinita de esperança — só que não para nós.’ Vendo a pequena figura de Eva se distanciar, fiquei imaginando se Kafka — com sua ‘paixão por se fazer insignificante’, como definiu o escritor judeu de língua alemã Elias Canetti — não teria calafrios diante da possessividade desnudada pelo julgamento. Será que ele nos lembraria que podemos ser intoxicados por aquilo que possuímos, mas ainda mais intoxicados por aquilo que não possuímos?”
“O último processo de Kafka”
• Benjamin Balint
• Editora Arquipélago
• 272 páginas
• R$ 57,90
“Diários (1909-1923)”
• Frank Kafka
• Editora Todavia
• 576 páginas
• R$ 99,00
• E-book: R$ 29,90
Impressões e sentimentos
Impressões diversas de Kafka constam em “Diários” (1909-1923), lançado pela Todavia (2021). Constam desde passagens mundanas do autor sobre a vida cultural em Praga, a impressões de viagens, livros, sentimentos conflituosos com o pai, o relacionamento com as três irmãs Ottilie, Valerie e Gabriele. Depressivo pelo tipo de trabalho que exercia para sobreviver – era um reticente funcionário de uma companhia de seguros contra acidentes – de poucos mas leais amigos, insatisfeito com a aparência, achava-se baixo e franzino, Kafka detestava o seu trabalho e vivia para a literatura, que considerava a sua verdadeira vocação. “Tudo que não é literatura me entedia e eu detesto”, escreveu.
Trecho de “Diários”, de Franz Kafka
“Ao toque, minha orelha se apresentava fresca, áspera, fria, seivosa como uma folha. Com toda a certeza, escrevo isso em desespero com meu corpo e com meu futuro nesse corpo. Quando o desespero se mostra tão definido, tão vinculado a seu objeto, tão contido como se por um soldado que, dando cobertura à retirada, se deixa dilacerar, então ele não é desespero de fato. O desespero de fato sempre atinge e supera de imediato sua meta, (o acréscimo dessa vírgula mostra que apenas a primeira oração estava correta).”
Entrevista / Benjamin Balint
“A traição de Max Brod oi um gesto de amor”
Como avalia o ato de Max Brod, que, traindo o desejo expresso por Franz Kafka, não queimou os seus manuscritos que lhe foram legados, e, contrariamente, construiu a sua trajetória de vida e conquistou fama, divulgando-os?
Talvez seja este um recurso de um gênio: dá determinadas instruções a uma pessoa, que pelo seu modo de vida, sabe seja improvável que vá cumprir essas instruções. Eu acredito que, em seu íntimo, Kafka sabia que Max Brod não seria capaz de queimar os seus manuscritos. Então, por um lado, Kafka faz o seu último pedido ao amigo; mas, por outro, eu acredito que sabia que, em última análise, os seus textos sobreviveriam. Tem também essa questão que eu me coloco, que é o fato de Max Brod estar motivado por amor em seu ato de traição ao pedido de Kafka, por dedicação à memória de seu amigo mais próximo. Então, é realmente uma traição como um gesto de amor. Depois de sua derrota na corte, Eva Hoffen mencionou certa vez, durante uma entrevista, a escritora austríaca Ingeborg Bachmann (aparentemente por causa de um cigarro, o quarto dela se incendiou em 1973 e Bachmann viria a óbito três semanas depois). Imaginei uma cena de pesadelo: depois de sua derrota final em Jerusalém, Eva retornaria à sua casa na rua Spinoza, em Jerusalém, e realizaria o último desejo do testamento de Kafka, de 1924, queimando o que restava dos manuscritos em posse dela. Se eu estivesse escrevendo um romance, talvez esta seria a maneira que eu o concluiria. Seria este o reconhecimento tardio de que Kafka não pertence a ninguém. Mas, felizmente, ela não fez isso. Então, a traição está na origem de toda essa história, porque foi como o “pecado original”. Ninguém nunca deu permissão legal a Max Brod para fazer o que ele fez ou para publicar o material. E ninguém nunca questionou legalmente isso.
Como essa batalha legal em torno dos textos de Franz Kafka está relacionada politicamente à causa sionista?
Está relacionada fundamentalmente em diversas formas. A primeira forma é que não é coincidência o fato de os manuscritos de Franz Kafka, escritor de língua alemã, nascido em Praga e de origem judaica, tenham vindo parar aqui. A questão é que Max Brod não conseguiu nenhum outro refúgio durante a Shoah (em hebraico referência ao holocausto) e, se não tivesse vindo para cá, provavelmente teria morrido e os manuscritos de Kafka destruídos. Em 1939, Max Brod tentou escapar para vários lugares: para a América do Sul, para a Universidade de Princeton (EUA) e todas as tentativas de refúgio fracassaram. Por isso, não é coincidência que o sionismo de forma tão concreta seja responsável por esse resgate. Mas de uma forma mais profunda, no coração desse julgamento em Jerusalém, é a questão que todos têm conhecimento de que Franz Kafka não era sionista, embora tenha estudado hebraico. A questão é por que o legado de uma pessoa como Kafka, que morreu em 1924, e nunca pisou neste lugar – nunca teve uma relação forte com este lugar – por que o Estado de Israel propôs a ação de que o seu legado pertenceria a Jerusalém como uma categoria de herança cultural judaica? Assim o sionismo foi introduzido neste julgamento. E sionismo pode ser definido enquanto um movimento político para garantir a reunião dos exílios, que abriu as fronteiras para refugiados durante a Segunda Guerra Mundial. Mas o sionismo também pode ser definido em um sentido cultural, que acredito ser mais interessante, que significa dizer que a cultura da diáspora também deveria ser reunido, por assim dizer. Então, esse julgamento é um exemplo de sionismo cultural.
Judith Butler é crítica à ideia de que a escrita de Kafka seja reivindicada como um ativo cultural do povo judeu e, sobretudo, crítica ao fato de que a alegação judicial deste caso tenha do pressuposto de que o Estado de Israel represente o povo judeu – o que não distingue judeus sionistas e judeus da diáspora, para os quais a Palestina não seja um lugar de retorno inevitável. Além disso, em Israel vivem judeus e não judeus, principalmente árabes palestinos. Como avalia a crítica de Butler?
Acho que, nesse sentido, Butler está correta. Israel é um estado que tem pessoas de diferentes religiões e de diferentes etnias; mas por outro lado, é um lugar que ofereceu refúgio a pessoas judias, como Max Brod, que não tinham para onde ir. Mas Butler também levanta um ponto interessante: o uso da herança cultural pelo nacionalismo político, de nações que querem se legitimar pelo uso de referências culturais. Acho que ela está correta. Mas eu diria que a Alemanha tinha tanto interesse nesse caso quanto Israel. No artigo dela, Butler não fala muito sobre os alemães. Quando estive na Alemanha, estava pesquisando isso e descobri que é claro, os alemães tinham igual interesse e incluir Kafka, inclusive e precisamente por ser de origem judia, no acervo da literatura moderna alemã. Então, está dentro da política alemã do pós-guerra, de tentar obscurecer o que aconteceu. É isso que faz este caso tão interessante.
Quais foram os principais argumentos ideológicos utilizados pelas partes durante o julgamento?
Eu estava acompanhando na Suprema Corte o julgamento e houve todos os tipos de argumentos e suposições ideológicas de ambas as partes – de Israel e da Alemanha. A suposição de Israel é de que um escritor judeu da diáspora pertence a Israel, mesmo que nunca tenha visitado. Os alemães supunham que “nós alemães representamos a cultural universal como tal”. Antes da conclusão do julgamento, entrevistando certa vez o chefe do Arquivo Alemão de Literatura de Marbach, quis saber por que importa tanto saber onde estão fisicamente os manuscritos originais de Kafka, se tudo será digitalizado e disponibilizado on line. Mas o que me foi dito é que nesse caso, importaria muito: se os originais terminassem em Israel, Kafka seria lido de uma forma reduzida, como apenas um escritor judeu; mas se os originais fossem guardados em Marbach, Kafka seria lido de uma forma universal. Claro que ironizei essa suposição, de que a Alemanha de alguma forma represente a cultura europeia ou universal dessa maneira.
A imersão na literatura de Kafka não deixa dúvidas de que ele nunca pretendeu “pertencer” a nada; nem a si mesmo. No diário dele, em 1914, escreveu: “O que tenho em comum com os judeus? Eu quase não tenho nada em comum comigo mesmo e deveria ficar quieto num canto, feliz por ser capaz de respirar”. Esse embate judicial seria contraditório com o modo de vida dele?
Sim, eu chamei o livro de “O último julgamento de Kafka”, em referência ao romance dele não concluído, “O julgamento”. Você está correta, há muitas ironias nesse caso. Kafka era ambivalente e se recusava a essa ideia de pertencimento. Então, se recusava à ideia do pertencimento “judeu”, o pertencimento à causa “sionista”; mas também se recusava ao pertencimento “alemão”. Quase não viveu na Alemanha, não era cidadão alemão. Eu gostaria de falar um pouco sobre (Felix) Pollak, que é um caso similar, de um dos maiores poetas do pós-guerra de língua alemã. Ele não era alemão e nunca viveu na Alemanha. Então, alguns dos grandes escritores em língua alemã não eram alemães e nunca viveram na Alemanha, vieram de outras províncias da Áustria, do Império Austríaco. Então sim, essa é a grande ironia desse caso: Kafka recusava os dois tipos de pertencimento. E ele teve algo como uma premonição de que seria disputado. Então, cada lado, nesse caso, quis anexar uma espécie de marca nacional ao nome de Kafka. E essa reivindicação é limitada.