Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Daniel Galera: 'Futuros propostos pela modernidade não passam de miragens'

Assim que concluiu o lançamento de “Meia-noite e vinte”, em 2016, o escritor Daniel Galera enfrentou algo inédito para ele até então: um bloqueio criativo. Questões pessoais, como a paternidade – ele se tornou pai de uma menina em 2017 – e a avalanche de informação causada pelas redes sociais, somadas a problemas macro, como os rumos políticos do país e o agravamento da crise climática deixaram o autor de “Barba ensopada de sangue” (mais de 40 mil exemplares vendidos desde o lançamento, em 2012) sem conseguir avançar em uma linha de ficção. Continuou se dedicando a traduções - já verteu para o português obras de escritores como David Foster Wallace, Zadie Smith, Irvine Welsh e Jack London. 





Para superar a trava, o escritor nascido em São Paulo e radicado em Porto Alegre apostou em uma volta às origens. Além de uma newsletter, onde expôs toda a dificuldade criativa que enfrentava, Galera começou o que acreditava ser não um romance, e sim um livro de contos, assim como a sua estreia, “Dentes guardados”, que completou 20 anos em 2021. 

O resultado são as três novelas que compõem “O deus das avencas” (Companhia das Letras). A primeira, que dá nome ao livro, traz um casal que enfrenta os momentos tensos que antecedem o parto do primeiro filho, às vésperas das eleições de 2018 em “um país desgovernado” que, a depender do resultado das urnas, inviabiliza até as “modestas conquistas” .

Nas outras duas, Galera deixa o estilo realista que sempre marcou sua literatura para uma incursão na ficção especulativa. Nas mais de cem páginas de “Tóquio”, a mais cinematográfica das três histórias, ele avança algumas décadas no futuro, quando um filho precisa lidar com uma réplica digital da mãe e com as consequências do desastre ambiental.



Por fim, na livre abstração de “Bugônia”, narrada em tempo presente, uma comunidade em futuro pós-apocalíptico vive em simbiose com colmeias de abelha, que usam cadáveres para produzir um mel que protege contra a bactéria que devastou o mundo. Em comum, as consequências dos atos humanos e o pleno domínio narrativo; Galera encontra o tom e o ritmo adequados para cada uma de suas histórias fatalistas, desesperançadas, impregnadas de escombros e de afetos (ou do que sobrou deles). 

Em entrevista ao Pensar, Daniel Galera detalha todo o processo criativo que culminou em seu novo trabalho, relembra as origens de sua escrita e analisa as crises que nos trouxeram até aqui e as que ainda estão por vir – e que formam um dos principais fios condutores das três histórias de “O deus das avencas”. 

Pensando no seu surgimento como escritor, no Cardoso On Line (COL), até que ponto a criação da sua própria newsletter, que parece ser uma espécie de volta às origens, ajudou no seu processo criativo? 
Decidi criar a newsletter no começo de 2019 justamente procurando retornar, em alguma medida, ao tipo de texto e de relação com os leitores que existia na internet da virada do milênio. Eu andava meio travado para escrever, e também cansado da dinâmica de conversa e leitura nas redes sociais. A newsletter cumpriu seu papel de me ajudar a "pensar alto" e recuperar conexões mais focadas com alguns leitores, embora a frequência das edições tenha deixado a desejar. Mas serviu para recuperar aquele tempo mais vagaroso que havia antes das redes sociais, um ritmo de pensamento e comunicação em que as ideias têm tempo de surgir e assentar. Nesse sentido, ajudou, sim, a criar condições pra que eu escrevesse o livro. 





Em janeiro de 2019, na primeira edição da sua newsletter, você compartilhou com seus leitores sobre sua dificuldade em escrever. Como conseguiu superar esse bloqueio? 
O bloqueio estava inserido num conjunto de circunstâncias. A escrita do meu livro anterior tinha sido difícil, me deixou cansado, e eu não conseguia enxergar para onde minha ficção poderia ir em seguida. Havia também questões pessoais, que iam da paternidade à aflição com os rumos do país e da humanidade. Tentei elaborar essas preocupações na primeira edição da newsletter. Colocar para fora os medos e fantasias em que o bloqueio estava enraizado foi o começo da superação. Em algum momento, narrar ficção voltou a ser parte da solução. Essas três novelas foram o resultado.

Como chegou às três narrativas em três tempos de “O deus das avencas”? Cogitou em ampliar alguma delas para lançar como um romance? As três são a sua reação aos tempos que vivemos no Brasil e no mundo? 
No começo, pensei em escrever uma coletânea de vários contos, alguns no estilo realista que sempre adotei, outros explorando gêneros como ficção científica e horror. Durante o processo, porém, essas três histórias cresceram e as outras foram esquecidas. Decidi escrevê-las sem me preocupar com o tipo de livro em que se encaixariam. Acho que cheguei a cogitar que cada uma das três pudesse ser um romance. Mas no fim senti que formavam um todo maior que as partes, com esses saltos cronológicos do passado recente a um futuro distante. Acabaram ficando com essa extensão de novelas. Sim, elas são sobre os tempos em que vivemos, mas a realidade social do presente se manifesta indiretamente. Na novela-título, o holofote da narrativa está na intimidade do casal protagonista. Em “Tóquio”, investigo assuntos como sustentabilidade, teorias da mente, as ideologias que guiam avanços da computação. “Bugônia” é a mais especulativa, mistura convenções de histórias pós-apocalípticas com reflexões sobre espécies companheiras, ecologia. Mas todas elas têm como vibração de fundo essa desagregação dos modos de vida do presente, a erosão da nossa estabilidade democrática desde a eleição do Bolsonaro, a tragédia ambiental causada pelo homem, e sobretudo o anseio por reformular os futuros imagináveis, uma vez que os futuros propostos pela modernidade já não passam de miragens. 

“Saber tanta coisa e não entender nada” é o espanto de um dos personagens da primeira história, “O deus das avencas”. Você compartilha dessa perplexidade? É a sua história mais política? 
Talvez seja minha história mais abertamente política, mas isso se dá num contexto em que o momento histórico que vivemos transformou a política em assunto inescapável, o ar que respiramos. Um casal que tem um filho hoje, mesmo que esteja em situação social e econômica privilegiada, não pode evitar de pensar se a criança terá educação laica, se viverá numa ditadura sob vigilância estatal e comercial, se terá alimento ou uma temperatura adequada à fisiologia humana para sobreviver. A primeira história mostra um trabalho de parto interminável, como se o filho não quisesse nascer, ou os pais quisessem adiar ao máximo o encontro com o retrocesso que já lhes parece inevitável. O desafio maior da nossa geração talvez seja transformar toda a visibilidade e informação que as tecnologias produziram em contestação e criatividade capazes de amenizar catástrofes. Acho que o medo de Lucas nesse texto pode ser descrito assim: e se esse conhecimento todo que ruge ao nosso redor não servir para evitarmos a injustiça e a exploração que nos trouxe a tantas crises?

“O mundo era um fósforo que queimava a pontinha dos dedos, mas a raça humana não ia soltar o palito, a luz da chama era nosso palito e nossa perdição. De todo modo, era tarde demais.” É tarde demais? Foi esta a percepção que o levou a escrever “Tóquio”? 

“Tóquio” começou com minha vontade de imaginar desdobramentos do projeto transumanista em que a cópia da mente humana para outros corpos produzia resultados indesejados. Aos poucos, diante da necessidade de criar um mundo futurista convincente, a novela absorveu outros assuntos: tragédia climática, a acumulação obscena de riqueza ou seu investimento em projetos narcisistas em detrimento de melhorias sociais et cetera. O narrador diz que é tarde demais para que a humanidade possa reverter a destruição ambiental provocada pelo capitalismo, mas não posso dizer que compartilho dessa certeza. A pandemia do coronavírus fez muita gente vislumbrar mundos alternativos em que o crescimento econômico e a acumulação não eram valores imperativos. Infelizmente, logo em seguida vemos o agravamento das tendências anteriores, a desigualdade econômica cresceu ainda mais. O Jeff Bezos decolou pro espaço na navezinha dele liberando na atmosfera mais carbono do que o necessário para dezenas de famílias viverem por anos. Mas quem sabe as primeiras crises e catástrofes da nossa era possam plantar sementes de mundos mais justos e habitáveis. Se me perguntar se isso é provável, preciso responder que não. Mas acredito, sim, que é possível. 





Ainda em “Tóquio”, são mencionadas as “catástrofes ambientais promovidas pelo governo na década anterior”. As agressões ao meio ambiente, e suas consequências, são um tema pouco explorado na literatura brasileira contemporânea. É um assunto que o aflige? 
Sim, demais. O trabalho dos ambientalistas nas últimas décadas era um ruído de fundo para minha geração, algo que podíamos admirar quando fazíamos visitas a parques naturais. Hoje, por acúmulo de conhecimento e força de necessidade, é inevitável confrontar a devastação que o homem está causando no ambiente e as consequências terríveis que já ocorrem. O Brasil nunca teve maior oportunidade de se tornar um ator global do que nesse momento de choque de realidade quanto ao impasse ambiental. No entanto, o governo de morte e destruição do Bolsonaro nos leva na direção oposta, o da autoaniquilação ignorante (como em tudo, por sinal). Não temos espaço pra hesitar nessa questão. Todo bioma ainda preservado deveria ser imediatamente protegido, sem exceção. Isso só pra começar.

“A simplicidade existe mas é um perigo”, afirma a Velha de “Bugônia”. “Sempre que as coisas se tornam simples há violência desmedida e aniquilação do que é diferente”. O Brasil corre o risco de se tornar demasiadamente simples? Ou já se tornou? 
O convívio é complexo. A simplicidade de que fala a Velha é a da prescrição excludente daquilo que devemos ser e fazer. O Brasil não é simples, é de uma complexidade e variedade atordoantes. Todavia, a simplicidade é uma camada psíquica, enraizada na nossa história e potencializada pelos discursos radicais e narcisistas que imperam nas redes sociais. Simplicidade é pegar um território feito de complexidades em constante mutação e reduzi-lo a trincheiras de discurso, de relações sociais, de práticas políticas. Precisamos aterrar as trincheiras e viver na complexidade, com todas as diferenças, inclusive com os traumas históricos. Acho que é disso que fala a Velha. 

É comum vermos leitores se queixando que estão com dificuldades de concentração para a leitura de livros, graças ao bombardeio constante de informações via celular e redes sociais, o que só se agravou com a pandemia. Acredita que essa torrente de estímulos pode ter contribuído para uma exaustão, como a que você relatou ter sentido após a conclusão de “Meia-noite e vinte”, e culminado nesse bloqueio criativo? 
Sem dúvida. Sou escritor e tradutor, e faço um uso relativamente moderado de redes sociais (uso apenas Twitter e Whatsapp, embora me deixe absorver por eles mais do que gostaria), e mesmo eu enfrento essa dificuldade de concentração na leitura. Não credito bloqueio criativo a isso apenas, mas o tipo de estímulo constante a que nos expomos nas redes sociais e no uso de tecnologias como o celular de modo geral é inimigo do tipo de concentração exigida para pensar e desfrutar de um romance, por exemplo. Mas não se trata de rejeitar as tecnologias e redes em bloco, isso seria idiota. É preciso estar atento ao uso, saber se afastar por um momento, e sobretudo compreender como as coisas funcionam. A educação básica precisa ensinar como opera um algoritmo, como um smartphone é projetado para absorver toda nossa atenção tátil, visual, sonora, como a publicidade e a vigilância de hábitos pessoais moldam as experiências que costumamos ter nas redes se não pararmos para pensar no assunto. E precisamos saber que há alternativas. 





A ficção científica, ou especulativa, ainda tem pouquíssimo espaço no mercado editorial brasileiro. Por que acha que isso ocorre? Quais escritores você mais admira no gênero? 
Gosto de ler ficção científica, mas estou longe de ser um conhecedor profundo desse mercado, que fique claro. Do meu ponto de vista, acho que esse tipo de história tem bastante espaço editorial, sim, e legiões de fãs. O que ainda ocorre é uma divisão besta entre "ficção literária" e "ficção de gênero". Isso não faz o menor sentido, ainda mais hoje em dia, em que ficção científica e outros gêneros fantasiosos e especulativos soam mais adequados que nunca para interpretar a realidade, sondar o espírito humano e preparar a imaginação para o futuro.

Algumas leituras recentes que gostei foram Jeff Vandermeer, Cixin Liu, Ursula Le Guin, Peter Watts, Kim Stanley Robinson. Estou lendo agora um livro ótimo da Rivers Solomon, “Sorrowland”, acho que ainda sem tradução no Brasil. Por aqui, aliás, tem pencas de gente escrevendo esse tipo de história. Um exemplo está na antologia “Tudo soma zero”, que reúne vários autores jovens aqui do Sul, mas há publicações do tipo em todas as regiões. 

“Dentes guardados”, o seu primeiro livro publicado, completou 20 anos em 2021. O que mudou na sua escrita nessas duas décadas? A literatura ofereceu o que você esperava quando começou a publicar? 
Minha escrita talvez não tenha mudado muito, formalmente, mas eu mudei bastante, e também o mundo. Sempre se trata de buscar uma intensidade qualquer dentro do mundo que conhecemos, do que nos pode instigar em cada momento. Acho que hoje meu mundo pessoal tem mais extensões e aberturas do que aquele dos meus vinte anos, então minha relação com a escrita também é menos obstinada e autocentrada. Há momentos em que suspeito que a escrita pode começar a fazer menos sentido pra mim, em que quero ser somente leitor, mas então me dou conta de que realmente não estou apto a fazer outra coisa, não de imediato. O abandono não é uma opção. Então respiro fundo e procuro levar isso, ainda outra vez, pra alguma direção que possa estimular a mim e aos meus leitores. 





Você também faz traduções de romances. Uma das mais recentes a chegar às livrarias brasileiras é a de “Águas do norte” (Todavia, 2021), do inglês Ian McGuire. O que o motivou a fazer essa tradução? O que mais gosta no livro? Acredita que traduzir também é um ato de criação? 
“Águas do norte” é uma história violenta, na qual homem, animais e natureza surgem nas suas versões mais extremas e destrutivas. É um dos tipos de história que gosto, então ler e traduzir esse livro foi um prazer. Todavia, tinha muitos termos navais. É o terceiro livro repleto de termos navais que traduzo, e garanto que será o último. 

“Barba ensopada de sangue” fará uma década no ano que vem. Olhando em retrospecto, o que significou esse romance na sua trajetória? Pretende escrever novamente um livro com mais de 400 páginas? 
“Barba ensopada de sangue” foi o meu maior sucesso, aqui e no exterior. É um livro que só pôde existir porque me coloquei (ou fui colocado, se quisermos evocar um determinismo caro ao protagonista do romance) em determinadas circunstâncias na minha vida, que me permitiram observar um lugar novo e meditar sobre uma história por longos e longos períodos nos quais literalmente não tinha mais nada para fazer. Realmente não sei se vou voltar a escrever um romance tão longo ou semelhante a esse. Já quis fazer isso, mas hoje acho que simplesmente não me interessa mais, e nem seria capaz de fazer, caso interessasse. Mas nem precisa. Tenho orgulho do livro, do que consegui realizar ali. Sou grato ao cosmo por ele ter sido possível. Isso permanece. 


CardosOnline (COL) 
A estreia literária de Galera foi em um zine eletrônico, enviado por e-mail, chamado CardosOnline (COL). Criado em 1998 pelo escritor André Czarnobai – o Cardoso que dá nome ao zine –, o COL contava também com Guilherme Caon, Clara Averbuck, Daniel Pellizzari, Hermano Freitas, Marcelo Träsel e Guilherme Pilla como colunistas fixos. A publicação durou três anos e chegou a ter mais de cinco mil assinantes. Apesar da curta duração, até hoje é lembrado pelo pioneirismo na produção de literatura na internet. 






“O deus das avencas” 
• Daniel Galera
•  Companhia das Letras
• 248 páginas
• R$ 54

Estante

• “Dentes guardados” (Livros do Mal, 2001) 
• “Até o dia em que o cão morreu” (Livros do Mal 2003) 
•  “Mãos de cavalo” (Cia. das Letras, 2006) 
• “Cordilheira” (Cia. das Letras, 2008) 
• “Cachalote” (Cia. das Letras, 2010, com Rafael Coutinho) 
• “Barba ensopada de sangue” (Cia. das Letras, 2012) 
• “Meia-noite e vinte” (Cia. das Letras, 2016) 


TRECHOS 


“O Deus das avencas” 
“Enquanto aguardam o táxi que o porteiro chama para eles na recepção, Manuela liga para a obstetra, que se resume a dizer que tinha avisado, que era para os dois voltarem para casa e relaxarem, e ligarem de novo somente se a bolsa estourar ou se as contrações ficarem muito mais intensas e frequentes, pois agora ela precisava dormir mais algumas horinhas antes de visitar o paciente em recuperação. Essa semana está uma loucura, ela diz, parece que os bebês combinaram. Não devem se preocupar se ela não estiver disponível na hora em que voltarem, um de seus colegas os atenderá até que ela chegue. Eles miram a escuridão indiferente em torno do hospital e não conseguem dizer nada. Se sentem como bonecos de um diorama lúgubre que é observado pelos vultos das enormes árvores. Constatam em silêncio a sua inocência perdida, o fim da ilusão de que ainda detinham algum controle sobre o que vinha pela frente, de que uma certa dose de conhecimento, de boas intenções, de expectativas razoáveis e de crença no mecanismo de causa e efeito poderia ajudá-lo no duelo com as forças obscuras e viscerais que iam exercendo, cada vez mais à vontade, sua dominação.” 


“Tóquio” 
“Enquanto aguardava Cristal sair do banho, fiquei assistindo na TV uma reportagem sobre o avanço do mar em cidades litorâneas japonesas como Toba e Ito. Na esteira de mais um tufão, as águas avançavam em marolas sujas e sonolentas por centenas de metros de área urbana, alagando depósitos, vilarejos de pescadores e resorts de verão abandonados e lúgubres, evocando imagens antigas do maremoto que causou o acidente nuclear de Fukushima. Apareceram cenas da Groenlândia sem gelo no inverno e das queimadas da Amazônia. O mundo era um fósforo que queimava a pontinha dos dedos, mas a raça humana não ia soltar o palito, a luz da chama era nosso delírio e nossa perdição. De todo modo, era tarde demais.” 


“Bugônia” 
“Quêni retornou vivo, mas quase morto de fome. Disse que a cidade, que ele só tinha visto quando era criança e da qual não lembrava muito bem, estava mais mergulhada na água e que era quase tudo ruína. As luzes não acendiam todo dia e se concentravam nos andares de cima dos prédios mais altos que tinham grande quantidade de placas solares. Não era possível se aproximar desses prédios porque havia muros altos e guardas com armas de fogo. Ele também viu comunidades isoladas vivendo em balsas num grande rio e nas quais a atividade dos humanos vista de longe lembrava um pouco a das colmeias. E outros viajantes lhe disseram que caminhando dois ou três meses sem descanso para o norte ou para o sul se alcançavam cidades gigantescas, cercadas por muralhas, que ainda funcionavam como as antigas, com luz permanente, computadores e carros. Era o tipo de coisa que muitos humanos do Organismo sabiam mas nunca haviam testemunhado." 


Companheiros de ideias

Daniel Galera fala sobre livro  e Donna Haraway que inspira a relação de humanos e animais na novela “Bugônia

“O primeiro livro de Donna Haraway que li foi “When species meet”, de 2007, ainda inédito no Brasil. Nessa obra, Haraway expande as ideias já desenvolvidas no seu “Manifesto das espécies companheiras”, que vim a ler em seguida, assim como outros ensaios e livros da autora. 

Cheguei em Haraway depois de anos cercando em minhas leituras temas como neurociência, evolução, consciência corporificada, ética do tratamento animal, coisas que me interessavam como ser humano em busca de conhecimento e como ficcionista. Não sou um pesquisador, tampouco me considero um pensador no sentido rigoroso do termo, mas sempre senti que estar no mundo requer um engajamento curioso e sério com a biologia, o meio ambiente e as implicações éticas do nosso comportamento individual e coletivo. 

Haraway, em textos como o “Manifesto das espécies companheiras”, me ofereceu uma oportunidade de alargamento da consciência sobre esses assuntos. Menos esclarecido sobre as bases feministas e marxistas de suas investigações, me vi convidado por ela a me aprofundar um pouco mais nesses campos de prática e pensamento para pensar quem somos enquanto corpos pensantes, e como nos relacionamos com as demais criaturas e com os complicadíssimos laços de história e cultura que nos enredam. 





A melhor teoria, assim como a melhor ficção, no meu entender, não trata de delimitar nosso mundo mental a um conjunto acabado de ideias e conceitos que buscam explicar o mundo da maneira mais definitiva possível. Pelo contrário, o que desejamos é navegar criativamente na complexidade, estabelecendo um juízo curioso, inclusivo, aberto às ambiguidades da vida moral e aos desafios narrativos da própria ciência. 

Em “O deus das avencas”, a noção de espécies companheiras de Haraway tem papel inspirador principalmente na novela “Bugônia”, em que as relações dos humanos e animais em uma comunidade pós-apocalíptica são pensadas a partir de ideias como natureza-cultura, alteridade significativa e a necessidade de habitarmos nossas histórias, livres dos moldes do excepcionalismo humano.” 

“O manifesto das espécies companheiras” 
•  Donna Haraway
•  Editora Bazar do Tempo
•  186 páginas
•  R$ 65

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