As pontas do arco temporal da produção autobiográfica de Virginia Woolf (1882-1941) passam a se tocar em nossas prateleiras com a publicação do primeiro volume de seus diários e de "Um esboço do passado", traduzidos pela pesquisadora Ana Carolina Mesquita para a editora Nós. Enquanto aguardamos o conteúdo dos demais diários - o segundo volume está previsto para setembro deste ano e o quinto e último para 2025, ano do centenário de "Mrs. Dalloway" -, a leitura dessas páginas inaugurais, casada com as memorialísticas, revela um eu comprometido com traços que identificamos na obra como um todo de uma das maiores escritoras do século 20 do que com qualquer desejo de confissão ou que possa saciar quem está mais interessado em um anedotário psicodocumental do que em literatura.
Tanto a autora estreante, que registra em proximidade máxima dos acontecimentos entre seus 33 e 35 anos de idade ("Diário I - 1915-1918"), como a consagrada, a elaborar o vivido em retrospectiva, com quase 60, entre 1939 e 1940 ("Um esboço do passado"), abordam os choques e as banalidades da vida a partir de um deslocamento para fora de si em gêneros nos quais se espera o contrário. Topamos com "O mundo visto sem eu", como descrito pelo personagem Bernard em "As ondas"(1931), que acaba de ganhar nova edição no Brasil, da Autêntica, com tradução de Tomaz Tadeu.
Nesse exercício de ler a Virginia por ela mesma em dois tempos, também chama a atenção a centralidade dos diários e das memórias, dos quais ela era leitora assídua, no interior de seu projeto literário, como a constatação de que a passagem dos anos não abala reflexões precoces. Se existem semelhanças entre esses diários da escritora e o que ela cria no conto "O diário de mistress Joan Martyn"(1906), incluídas suas considerações sobre o gênero, o mesmo pode ser dito sobre as memórias e as provocações contidas no conto "Memórias de uma romancista" (1909): "Que direito tem o mundo de saber sobre homens e mulheres?".
Cito outro trecho desse conto na tradução de Leonardo Fróes, tendo em mente a elaboração, em "Um esboço do passado", da morte da mãe de Virginia quando a escritora tinha apenas 13 anos: "Quando miss Linsett é forçada a falar dela, e não dos tios dela, o resultado é este: 'Frances, assim, com a idade de 16 anos, foi deixada sem a mãe que a cuidasse. [...] nem mesmo a amável companhia de seu pai e irmãos era capaz de preencher aquele lugar [mas nada sabemos de mrs Willat]". Se a mera associação com o vivido é banal, o entendimento de que somos formados por ausências que as biografias não dão conta de preencher com seu amontoado de fatos é chave para todo um conjunto autoral.
A disposição da autora de "Um teto todo seu"de voltar-se para fora e expor-se às intempéries dos dias que correm ou retornam não deixa de ser uma espécie de imposição que a coloca a caminho e ao relento o tempo todo, mesmo quando patroa e anfitriã. Está a céu aberto, onde sobrevoam aviões inimigos em noite de bombardeios, as asas da morte que levam embora a meia-irmã em plena adolescência e as mãos de um abusador que lhe percorrem o corpo de menina. Entram em jogo temporalidades que não correspondem apenas às restritas à sua biografia e incluem o que ela nomeia de "presenças invisíveis", além de "instintos adquiridos por milhares de suas ancestrais no passado".
A convivência intensa com os outros, dos meros conhecidos aos mais íntimos, dos ilustres aos anônimos, passando pela tensão recorrente com as empregadas da casa e por observações pouco amistosas sobre as mulheres que participam de um grupo de sufragistas, de alguma forma refletem o impasse contido na afirmação: "Eu não sei até que ponto sou diferente das outras pessoas". Questão que, para Virginia, está entre as dificuldades de quem escreve memórias, mas certamente também diários. O resultado? Escritos de si nos quais reconhecemos uma impessoalidade própria do sujeito moderno que ela tanto buscou captar, ciente da impossibilidade de qualquer totalização.
Depois de avançarmos várias páginas do diário da escritora e já em contato com certa despersonalização, é a própria Virginia que, ao se comparar à outra autora de diário, escreve em 22 de novembro de 1917: "Tanto me gabei em Garsington deste livro [o diário], & do encanto de escrevê-lo a partir de uma fonte inesgotável, que sinto vergonha de estar saltando dias; & entretanto, conforme observei, a única chance que ele possui é aguardar o humor de escrever. Ottoline também mantém um, aliás, porém dedicado à sua 'vida interior'; o que me levou a refletir que não possuo vida interior". Vale destacar um salto de quase dois anos sem registros nos diários que corresponde ao período em que, após o lançamento de "A viagem"(1915), ela sofre um colapso e tenta suicídio. Mas essa informação não sabemos através de sua pena.
A inexistência de separação rígida entre o indivíduo e o mundo nos diários e nas memórias vem de encontro com o que escreve o biógrafo Herbert Marder, em "A medida da vida"(2000), a respeito do efeito que a escritora atinge em "Ao farol"(1927), mas não apenas nesse romance: "estar ao mesmo tempo envolvida na ação e invisível ou, como ela mesma escreveu sobre Shakespeare, estar 'serenamente presente-ausente'".
E também com o que constata Maurice Blanchot no capítulo que dedica aos diários de Virginia em "O livro por vir"(1959), quando referese à dispersão que não pode ser confundida com um jogo de aparências; à vocação de quem escreve como um desertor de si mesmo; à necessidade identificada pela própria escritora de sair da vida e de si para captar a realidade e assim escrever literatura. Noção de realidade identificada na taquigrafia woolfiana como a conjugação dos "momentos de ser"em meio ao império do "não ser".
Nessa toada, as observações sobre personagens aparentemente irrelevantes e dos afazeres mais corriqueiros seja na casa, nas compras ou na Hogarth Press, editora que fundou com seu marido, Leonard Woolf, não são menos importantes do que as leituras de clássicos e os testemunhos de inegável relevância histórica, caso do cotidiano sob a Primeira Guerra Mundial, nos diários, e a Segunda Grande Guerra, nas memórias. O período em que Virginia escreve "Um esboço do passado", aliás, não é um dado extratextual. Ao tratar das reminiscências de infância e juventude, ela lança mão de um recurso característico dos diários: "Escrevo a data porque creio que descobri uma forma possível para essas anotações. Isto é, fazer com que incluam o presente".
Embora Virginia afirmasse que nessas páginas sua pena corresse mais frouxa do que nas ficcionais, essa suposta soltura não se resume a um campo de experimentação para contos e romances. E se, às vezes, ela julgava "superficial"o que realizava em seus diários, em outras, os considerava "sua obra mais importante"ou sua "verdadeira grande obra", como cita a tradutora.
Do mesmo modo, o argumento de que ela escreveria suas próprias memórias como um descanso para o trabalho então em curso, a biografia do pintor e crítico Roger Fry (1866-1934), não convence quando se sabe que o inacabado "Um esboço do passado"já fora submetido a várias revisões, isto é, estava sob o mesmo procedimento de qualquer outro de seus grandes livros. E como tais, diários e memórias, merecem ser lidos.
Luciana Araujo Marques é jornalista e pesquisadora de literatura e teoria literária
Tanto a autora estreante, que registra em proximidade máxima dos acontecimentos entre seus 33 e 35 anos de idade ("Diário I - 1915-1918"), como a consagrada, a elaborar o vivido em retrospectiva, com quase 60, entre 1939 e 1940 ("Um esboço do passado"), abordam os choques e as banalidades da vida a partir de um deslocamento para fora de si em gêneros nos quais se espera o contrário. Topamos com "O mundo visto sem eu", como descrito pelo personagem Bernard em "As ondas"(1931), que acaba de ganhar nova edição no Brasil, da Autêntica, com tradução de Tomaz Tadeu.
Nesse exercício de ler a Virginia por ela mesma em dois tempos, também chama a atenção a centralidade dos diários e das memórias, dos quais ela era leitora assídua, no interior de seu projeto literário, como a constatação de que a passagem dos anos não abala reflexões precoces. Se existem semelhanças entre esses diários da escritora e o que ela cria no conto "O diário de mistress Joan Martyn"(1906), incluídas suas considerações sobre o gênero, o mesmo pode ser dito sobre as memórias e as provocações contidas no conto "Memórias de uma romancista" (1909): "Que direito tem o mundo de saber sobre homens e mulheres?".
Cito outro trecho desse conto na tradução de Leonardo Fróes, tendo em mente a elaboração, em "Um esboço do passado", da morte da mãe de Virginia quando a escritora tinha apenas 13 anos: "Quando miss Linsett é forçada a falar dela, e não dos tios dela, o resultado é este: 'Frances, assim, com a idade de 16 anos, foi deixada sem a mãe que a cuidasse. [...] nem mesmo a amável companhia de seu pai e irmãos era capaz de preencher aquele lugar [mas nada sabemos de mrs Willat]". Se a mera associação com o vivido é banal, o entendimento de que somos formados por ausências que as biografias não dão conta de preencher com seu amontoado de fatos é chave para todo um conjunto autoral.
Estações do ano
Também vale ressaltar o papel dos comentários sobre as estações do ano e do clima nesses escritos de Virginia, também relevantes nos outros. Se chove, neva ou se faz sol estão entre os eventos mais exteriores aos domínios humanos, talvez esteja nesse contato com as forças naturais que não se controla onde a interioridade mais possa ser vislumbrada. É manhã de primavera, a mãe de Virginia acaba de morrer, e ela escreve no presente do indicativo e entre aspas nas memórias: "Não sinto absolutamente nada".A disposição da autora de "Um teto todo seu"de voltar-se para fora e expor-se às intempéries dos dias que correm ou retornam não deixa de ser uma espécie de imposição que a coloca a caminho e ao relento o tempo todo, mesmo quando patroa e anfitriã. Está a céu aberto, onde sobrevoam aviões inimigos em noite de bombardeios, as asas da morte que levam embora a meia-irmã em plena adolescência e as mãos de um abusador que lhe percorrem o corpo de menina. Entram em jogo temporalidades que não correspondem apenas às restritas à sua biografia e incluem o que ela nomeia de "presenças invisíveis", além de "instintos adquiridos por milhares de suas ancestrais no passado".
A convivência intensa com os outros, dos meros conhecidos aos mais íntimos, dos ilustres aos anônimos, passando pela tensão recorrente com as empregadas da casa e por observações pouco amistosas sobre as mulheres que participam de um grupo de sufragistas, de alguma forma refletem o impasse contido na afirmação: "Eu não sei até que ponto sou diferente das outras pessoas". Questão que, para Virginia, está entre as dificuldades de quem escreve memórias, mas certamente também diários. O resultado? Escritos de si nos quais reconhecemos uma impessoalidade própria do sujeito moderno que ela tanto buscou captar, ciente da impossibilidade de qualquer totalização.
Depois de avançarmos várias páginas do diário da escritora e já em contato com certa despersonalização, é a própria Virginia que, ao se comparar à outra autora de diário, escreve em 22 de novembro de 1917: "Tanto me gabei em Garsington deste livro [o diário], & do encanto de escrevê-lo a partir de uma fonte inesgotável, que sinto vergonha de estar saltando dias; & entretanto, conforme observei, a única chance que ele possui é aguardar o humor de escrever. Ottoline também mantém um, aliás, porém dedicado à sua 'vida interior'; o que me levou a refletir que não possuo vida interior". Vale destacar um salto de quase dois anos sem registros nos diários que corresponde ao período em que, após o lançamento de "A viagem"(1915), ela sofre um colapso e tenta suicídio. Mas essa informação não sabemos através de sua pena.
A inexistência de separação rígida entre o indivíduo e o mundo nos diários e nas memórias vem de encontro com o que escreve o biógrafo Herbert Marder, em "A medida da vida"(2000), a respeito do efeito que a escritora atinge em "Ao farol"(1927), mas não apenas nesse romance: "estar ao mesmo tempo envolvida na ação e invisível ou, como ela mesma escreveu sobre Shakespeare, estar 'serenamente presente-ausente'".
E também com o que constata Maurice Blanchot no capítulo que dedica aos diários de Virginia em "O livro por vir"(1959), quando referese à dispersão que não pode ser confundida com um jogo de aparências; à vocação de quem escreve como um desertor de si mesmo; à necessidade identificada pela própria escritora de sair da vida e de si para captar a realidade e assim escrever literatura. Noção de realidade identificada na taquigrafia woolfiana como a conjugação dos "momentos de ser"em meio ao império do "não ser".
A dissolução com método
Para Virginia, "a vida de uma pessoa não está limitada a seu corpo nem ao que ela diz ou faz", conforme lemos nas memórias. Ainda que estejam em foco contextos históricos e sociais bastante marcados, uma vez que o universo da inglesa está até certo ponto delimitado por um círculo de interesses e relações de uma classe média alta inglesa, influente e intelectualizada, ele não se reduz. A dissolução como método é capaz de trazer para a superfície aspectos comuns, se não a todos, possivelmente reconhecíveis por seus leitores de qualquer tempo e lugar.Nessa toada, as observações sobre personagens aparentemente irrelevantes e dos afazeres mais corriqueiros seja na casa, nas compras ou na Hogarth Press, editora que fundou com seu marido, Leonard Woolf, não são menos importantes do que as leituras de clássicos e os testemunhos de inegável relevância histórica, caso do cotidiano sob a Primeira Guerra Mundial, nos diários, e a Segunda Grande Guerra, nas memórias. O período em que Virginia escreve "Um esboço do passado", aliás, não é um dado extratextual. Ao tratar das reminiscências de infância e juventude, ela lança mão de um recurso característico dos diários: "Escrevo a data porque creio que descobri uma forma possível para essas anotações. Isto é, fazer com que incluam o presente".
Embora Virginia afirmasse que nessas páginas sua pena corresse mais frouxa do que nas ficcionais, essa suposta soltura não se resume a um campo de experimentação para contos e romances. E se, às vezes, ela julgava "superficial"o que realizava em seus diários, em outras, os considerava "sua obra mais importante"ou sua "verdadeira grande obra", como cita a tradutora.
Do mesmo modo, o argumento de que ela escreveria suas próprias memórias como um descanso para o trabalho então em curso, a biografia do pintor e crítico Roger Fry (1866-1934), não convence quando se sabe que o inacabado "Um esboço do passado"já fora submetido a várias revisões, isto é, estava sob o mesmo procedimento de qualquer outro de seus grandes livros. E como tais, diários e memórias, merecem ser lidos.
Luciana Araujo Marques é jornalista e pesquisadora de literatura e teoria literária