Mais de duas décadas antes de publicar “Os anos”, livro em que reflete sobre o legado de sua geração, Annie Ernaux escreveu “O lugar”, romance cujo objeto é a família, especificamente seu pai. Quando o pequeno livro começa – são menos de 70 páginas, em tradução de Marília Garcia –, a escritora francesa está em Lyon fazendo uma prova para tirar o certificado de aptidão ao cargo de professora do ensino médio. Exatos dois meses após esse dia, seu pai morre.
Annie Ernaux
Annie Ernaux
Crescido em um “ambiente medieval”, a 25 quilômetros do mar, muito diferente daquele narrado por Proust e Mauriac, o futuro comerciante é um homem simples, que "não pertencia a nenhuma associação, apenas pagava uma contribuição à junta comercial, mas não fazia parte do que quer que fosse". Um sujeito criado sob o jugo pesado do avô da escritora, que não sabia ler nem escrever, o que nem de longe evitava os momentos sublimes, como se facilitasse a futura arqueologia de Ernaux.
“Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha”, nos diz Annie, vencedora do Prêmio Marguerite Yourcenar. Essa travessia na corda bamba, de certa forma, é feita sem sustos. “O lugar” é um livro curto, mas poderoso ao servir de teste para os procedimentos adotados em “Os anos”, lançado em 2008. Estão lá os parágrafos em bloco, as descrições sem pirotecnias, uma objetividade tão límpida que também não poderia ser classificada de jornalística.
A todo momento, o que parecemos testemunhar é um obstinação incorrigível: Annie Ernaux precisa nos colocar na Normandia, no cenário pré e pós-Segunda Guerra, onde vidas miúdas alternam a inflamação dependendo do contexto em que se está. O pai, por exemplo, operário que conseguiu montar um pequeno comércio, era “tagarela no café e com a família, mas na frente de pessoas que falavam de forma correta [...] se calava, ou parava no meio de uma frase”. Havia, nas palavras da escritora, “sempre uma vontade de demolir e reconstruir”. O que é medida do mundo para um – o corpo como instância que impõe os limites – é alienígena para o outro. Pai e filha acabam por instituir uma dinâmica cuja única forma de contato pleno, sem arestas, é o lugar em livro e espírito.
A todo momento, o que parecemos testemunhar é um obstinação incorrigível: Annie Ernaux precisa nos colocar na Normandia, no cenário pré e pós-Segunda Guerra, onde vidas miúdas alternam a inflamação dependendo do contexto em que se está. O pai, por exemplo, operário que conseguiu montar um pequeno comércio, era “tagarela no café e com a família, mas na frente de pessoas que falavam de forma correta [...] se calava, ou parava no meio de uma frase”. Havia, nas palavras da escritora, “sempre uma vontade de demolir e reconstruir”. O que é medida do mundo para um – o corpo como instância que impõe os limites – é alienígena para o outro. Pai e filha acabam por instituir uma dinâmica cuja única forma de contato pleno, sem arestas, é o lugar em livro e espírito.
Relançamento
Em “Os anos”, que a Editora Fósforo relança também em tradução da poeta Marília Garcia, Annie Ernaux escreve que “assim como o desejo sexual, a memória nunca se interrompe”. Aqui, por sua vez, “a memória se mostra resistente”. É interessante justapor ambos os livros ao lê-los em sequência. No fim das contas, se complementam, apesar de as características do segundo estarem no primeiro. “O lugar” surge como prólogo de luxo. Suas páginas são a antecipação de um projeto que revitalizou a escrita do eu ao misturar ficção, sociologia e memória numa interseção que dispensa classificações.
Muito mais que a crônica de um luto, história de juventudes cruzadas – e sacrificadas –, há aqui um registro muito particular que serve de esteio para que a vida não seja apagada. Um livro que não seria exagero desejar que fosse mais forte como seu temporão, mas nem por isso dispensável. Enquanto em “Os anos” “a profundidade do tempo [...] tinha desaparecido”, aqui ela esbanja sua glória. Vivos, mortos: até o pai comprar um terreno e uma casa, ninguém na família tinha sido dono de nada. Por isso, para “salvar alguma coisa deste tempo no qual nós nunca mais estaremos”, como escreveu em 2008, Ernaux trata de lhes dar uma glória. Uma profunda glória.
*Mateus Baldi, escritor e jornalista, criou a “Resenha de bolso”, voltada para a crítica de literatura contemporânea
Trecho do “O lugar”
“Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha. Afinal, essa maneira de viver constituía, para nós, a própria felicidade, mas era também a barreira humilhante de nossa condição (consciência de que “em casa as coisas não estão lá tão bem assim”). Eu gostaria de falar ao mesmo tempo dessa felicidade e de sua condição alie- nante. Sensação de que fico oscilando de um lado para o outro dessa contradição.”
Sobre a autora
Annie Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne, pequena cidade no interior da França. Estudou na Universidade de Rouen e foi professora do Centre National d’Enseignement par Correspondance por mais de 30 anos. Em 2017, Ernaux recebeu o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da obra. “O lugar”, que ganha agora edição brasileira, já vendeu 950 mil exemplares na França e foi traduzido para mais de 20 países.
“O lugar”
Annie Ernaux
Tradução de Marília Garcia
Editora Fósforo
72 páginas
R$ 49,90
“Os anos”
Annie Ernaux
Tradução de Marília Garcia
Editora Fósforo
224 páginas
R$ 64,90