Jornal Estado de Minas

ROMANCE

Julián Fuks traça o mapa do romance

Romance é tudo aquilo que escapa à definição de romance. Se há uma característica do romance enquanto forma que prevalece em toda abordagem que se faz para tentar defini-lo é a de que não é possível contê-lo em quaisquer medidas. Ele sempre escapole pelas beiradas, num transbordamento que não cessa de se mostrar impermeável a definições.



O divertido nisso é que muita gente siga na tentativa de açambarcar, criar as fronteiras que deem alguma medida minimamente justa. O mais recente a fazer isso é o muito qualificado romancista Julián Fuks (autor de romances premiados como “A resistência”), que acaba de publicar “Romance: história de uma ideia” (Companhia das Letras).

Na breve advertência que antecede o estudo, ele postula que nenhum crítico, teórico, historiador ou romancista “jamais escreverá a história do romance”. Depois, em clave humilde:“Sou apenas um romancista”. Para dizer, em suma, que também se apresenta para discutir a história dessa forma tão sedutora. O fato de no Brasil serem raros os ficcionistas que se aventuram a escrever ensaios ou estudos de fôlego dá ainda mais substância para o esforço de Fuks. O romance, aventura-se ele, “talvez seja outra palavra que o sonho humano alimenta, mas que não há ninguém que explique e ninguém que entenda”.

O principal e talvez o que mais se encontra no cerne do problema da tentativa de definição é a armadilha de tentar enxergar o romance como experimento realista, cujo recorte se dá, portanto, a partir do texto de Cervantes, ou seja, o início do século 17. A primeira parte do Quixote foi publicada em 1605. É o que reza e prega a tradição de estudos da forma romance, cujas principais referências (nesse recorte) aparecem no texto de Julián Fuks: Ian Watt e Georg Lukács, principalmente, com uma ligeira pincelada em Sandra Guardini Vasconcelos.





A saída estratégica de colocar todas as definições entre aspas e manter distanciamento cético não impede Fuks de arregimentar argumentos para traçar caminho sólido no que seria trilha segura de definição do romance: ascensão, apogeu, queda espetacular e reascensão possível. Num processo de pensamento que vai e volta a dar e desatar nós, a certa altura ele escreve: “É possível, como seria de se prever, que apogeu e crise não se distingam tanto assim, que a crise venha a ser uma forma extrema de apogeu”.

Escala grandiosa

Nesse ponto das macronarrativas da forma romance, a argumentação se sustenta bem. O risco que se corre, e se correm sempre riscos quando se se aventura a escrever a respeito do romance, é passar por cima de temas cruciais para a história. “O romance”, escreve, por exemplo, Thomas Pavel em “As vidas do romance”, “evoluiu de uma tensão entre a tendência de idealizar o comportamento humano e o desejo de censurá-lo”. Ético e elevado, de um lado.

De outro, rebaixado, voltado para as partes inferiores e risíveis (mas que leva o riso a sério, por certo). Não à toa, Steven Moore escreveu uma história alternativa do romance, que vai em direção de e para em 1600, ou seja, às vésperas do que Cervantes e o realismo subsequente têm para apresentar e que é, no fundo, apenas parcela da história. É pena que não se tenha concluído em português o projeto do lançamento dos cinco volumes organizados por Franco Moretti sobre o romance — apenas o primeiro saiu pela extinta Cosac e Naify, “A cultura do romance”.



Na apresentação geral, Moretti decreta o romance a primeira forma simbólica de fato mundial: “Uma fênix que onde quer que se encontre sabe retomar o voo”. São visões e posturas que se multiplicam para tentar encontrar pelo menos as franjas do que é essa forma tão maleável. Nesse sentido, a decisão de Fuks é relativamente conservadora e cautelosa, em geral. Colocar tudo sob suspeita, apontar a decisão de fazer isso e depois tecer as análises que julgar convenientes. Em boa parte do texto, ele levanta aspas para dizer que o componente de provisoriedade é talvez o que se sobressai.

Por exemplo, mesmo se entendendo que o romance é forma que se associa facilmente à ascensão da burguesia como classe (e ociosa ainda por cima, portanto, com tempo para leituras), algumas ausências são facilmente criticáveis no estudo de Fuks. Como situar nessa trajetória o experimento tanto de um François Rabelais na França (e a nova e mais recente tradução de “Pantagruel e Gargântua”, lançada pela Editora 34, está na praça para relembrar todos da centralidade acachapante desse livro e implicaria tratar com maleabilidade maior inclusive a distinção didática que se faz entre romance e novel) como de um Laurence Sterne na Inglaterra (o seu “A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy” é incontornável.

Ainda mais porque é sistematicamente relegado em boa parte dos estudos, mas não só: pela perícia com que se apresenta como antirromance, o que o torna talvez o maior, senão o melhor romance do século 18, por cima dos Daniel Defoe, dos Henry Fielding e dos Samuel Richardson de plantão), ou ainda, como esquecer, no século 19, a postura desafiadora e difícil do Marquês de Sade para além da postura pessoal libertária, mas com contribuições para a forma (ou melhor, para o conteúdo, no caso, inclusive com os perigos que isso acarreta) do romance? Claro, seria fácil ficar apenas com as indicações do que falta, porque sempre falta muito, mais do que é possível comparecer. Fuks é o primeiro a reconhecer o pormenor essencial.




O melhor vem por último

No entanto, há outro lado, bom e inovador, desse “Romance: história de uma ideia”, que se sobressai. Qual seja: a chegada além da segunda metade do século 20. Em geral, os estudos param na primeira metade, tecem loas, o que é fácil, às inovações de Marcel Proust, James Joyce, Thomas Mann etc. (outro esquecimento fatal: Kafka) e ignoram o que vem em seguida, como se a história do romance tivesse realmente se concluído em algum momento por ali.

O último capítulo, “A reascensão possível”, é de longe o melhor, justamente porque Fuks resolve esquecer por um momento a tradição e pensar com as próprias ideias e alguma lógica — nunca é demais apreciá-la. Como se, por fim, estivesse seguro para dizer a que veio. Acredita na capacidade de o romance não ceder aos apelos que apontam seu esgotamento ou fim, o que não é exatamente novidade, mas enfim aposta na capacidade do romance de se renovar e mostra leitura acurada tanto do argentino Macedonio Fernandez nessa trajetória (na verdade, a título de precisão, essa análise se dá no penúltimo capítulo, mas a ponte com esse último capítulo se sustenta, de todo modo), quanto das diabruras do nouveau roman francês (e infelizmente passa por cima da importante experiência alcançada pelo grupo OuLiPo, também francês, o que é pena), do real maravilhoso latino-americano, para, por fim, desembocar no romance híbrido de W. G. Sebald e de J. M. Coetzee e extrair daí as potencialidades interessantes que o romance sempre reencontra no caminho de se renovar a cada vez em que é ameaçado de extinção, ou seja, toda semana. A verdade é que a história do romance é tão inesgotável que se parece com aquela metáfora borgiana: o mapa tem o tamanho do território.  

TRECHO
“Do paradoxo partimos, o paradoxo vimos reproduzir-se em tantos momentos, no paradoxo encontro meu caminho para encerrar este texto. Paradoxalmente, é pela dependência extrema às circunstâncias de sua escrita que o romance se faz uma forma em mutação constante, em evolução permanente, sujeita tanto às convulsões do presente quanto à passagem impreterível do tempo. Tão profunda é sua historicidade que quase se pode extrapolar o argumento e dizer que o romance se eterniza, já que a história jamais se detém e convoca um discurso que a acompanhe a cada nova década,a cada novo século. E tão amorfo se faz o gênero ao longo de todo esse processo que não será difícil chamar de romances os novos discursos que o tempo exigir.” 


“Romance: história de uma ideia”
Julián Fuks
Companhia das Letras
244 páginas
R$ 47,90

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