Jornal Estado de Minas

POESIA

Ensaios renovam a leitura da poesia de Baudelaire

(foto: quinho)
No ano em que se celebram os 200 anos do nascimento de Charles Baudelaire (1821-1867), podemos dizer que a obra do poeta francês não apenas aqui se aclimatou, mas floresceu e frutificou. Desde o final do século 19, sua influência é clara na obra dos nossos simbolistas, parnasianos e pré-modernos: em Cruz e Souza, Maranhão Sobrinho, Sousândrade e Augusto dos Anjos, entre os maiores. 

Mas é sobretudo nos modernistas de 22 que os efeitos corrosivos da relação problemática de Baudelaire com a poesia e com a história se farão sentir. Em Manuel Bandeira, por exemplo, na figura do poeta doente, sempre aspirando a uma Pasárgada impossível, mas andando em meio ao mangue e ao beco que lhe sujam o terno branco, vociferando por um lirismo de libertação e por um ritmo dissoluto; em Drummond, que já se assume desde o primeiro poema como gauche como o “Albatroz” baudelairiano, alegoria do poeta inquieto e desajustado em relação ao seu tempo; no Mário de Andrade da “Pauliceia desvairada”, que revive as andanças do flâneur baudelairiano pela Paris das passagens e da burguesia arrogante; em Oswald, enfim, menos pelo caráter prosódico, e mais pela posição de conflito com o passado, com o caráter de polemista e inventor de novas formas (e paralelamente destruidor de fôrmas). 





Para além dos modernistas, o legado de Baudelaire no Brasil (e no mundo) pode ser comparado ao de Beethoven na música. Sem Beethoven, a música teria seguido um caminho ascendente em busca de harmonias possíveis e de promessas de felicidade e de paz universal. Mas os primeiros acordes da 3ª sinfonia de Beethoven já introduzem uma ruptura inconsútil no tecido até então está- vel da harmonia, a qual se transformará em conflito e contradição permanentes.

Em outros termos, Beethoven já sentira o baque da Revolução Francesa, e ao mesmo tempo já entendera aquilo que Hegel chamaria de prosificação do mundo. Na li- teratura, esse grande baque vai se fazer sentir mais fortemente nas obras de Flaubert (“Madame Bovary”, 1856) e de Baudelaire (“As flores do mal”, 1857). Em ambas as obras, o mundo prosaico e cotidiano é visto com desencanto e desprezo, ao passo que o trabalho estético atinge um patamar absolutamente sublime. Em outros termos, a arte passa a exprimir as contradições sociais do mundo prosaico, numa contradicção da arte prosificada.


É nesse sentido que vai a leitura excelente de Eduardo Veras, em “Baudelaire e os limites da poesia”, que inaugura a coleção de ensaios da Editora Corsário-Satã. Com sete textos escritos entre 2014 e 2019, o livro vem na esteira de importantes pu- blicações recentes no Brasil: a nova tradução de “As flores do mal”, por Julio Castañon Guimarães (Penguin, 2019) e duas traduções de “Spleen de Paris (Pequenos poemas em prosa)”: a de Samuel Titan Jr. (Editora 34, 2019) e a do próprio Eduardo Veras, com Isadora Petry (Via Leitura, 2018).



Se essas traduções atualizam para o leitor brasileiro o que a crítica de Walter Benjamin já vinha mostrando desde os anos 1930 (ou seja, o caráter absolutamente moderno e crítico da poesia e da prosa baudelairiana do ponto de vista do estilo), livrando-a de um ranço parnaso-simbolista, os ensaios de Eduardo Veras situam o leitor de Baudelaire no seu devido contexto: a literatura francesa dos últimos 150 anos, que foi profundamente abalada pela poesia e pela prosa de Baudelaire.

Destruição da harmonia romântica

Em outros termos, a leitura de Veras tem implicações importantes com a posição de Baudelaire no debate literário contemporâneo ao poeta, mas também sobre o lugar da poesia no nosso mundo contemporâneo. Ou talvez se possa dizer que é o próprio conceito do contemporâneo que não cessa de estar em crise desde Baudelaire. Vejamos. “O spleen baudelairiano representa a destruição da harmonia romântica entre a natureza, o homem, e o sentido”, afirma Veras no primeiro ensaio.

Embora a palavra spleen já fosse usada na língua inglesa antes de Baudelaire, para traduzir a melancolia romântica, em Baudelaire ela adquire a conotação material de uma melancolia incômoda, de uma insatisfação permanente com tudo e com todos – quiçá poder-se-ia dizer que a depressão dos jovens de hoje é herdeira do spleen baudelairiano. Trata-se de uma crise permanente não apenas na poesia (como a descreve Marcos Siscar, que prefacia o livro), mas na “relação entre vida e linguagem”, afetando tanto a religião quanto a política, que passam a imbricar-se conflituosamente no coração do poeta – e da poesia. 





Aparentemente, Baudelaire toma um partido conservador de adesão ao catolicismo, contrapondo-se ao humanitarismo progressista do século 19, ao passo que vai também contribuindo para transformar a arte numa nova religião (o que muito agradará a um certo Nietszche). Mas, paralelamente, Baudelaire convoca para um festim-motim poético personagens do submundo citadino (prostitutas, maltrapilhos, escroques, lésbicas, catadores de lixo, e toda uma coorte de desajustados sociais), e propõe ele mesmo um mergulho na vida mundana e material, para extrair dela o má- ximo de prazer e intensidade, sem deixar de mencionar toda a dor envolvida nesse percurso exploratório. Como afirma Veras no livro, Baudelaire cria um parêntese entre a religião e a arte, a partir de onde instaura um olhar crítico para a poesia e para o progresso. 

Mas não se trata de uma posição confortável. Uma das consequências de assumir o paradoxo (entre a ascensão e a queda) será a crise com a harmonia musical, que está na origem mesma do lirismo (é preciso lembrar que o lirismo se origina na lira e do canto de Orfeu tanto quanto de uma visão do cosmos como ordem e simetria na tradição órfico-pitagórica).

Baudelaire se vê como um sino rachado, e como um “faux accord” (que é ao mesmo tempo um acorde falso e um acorde desafinado) na “divina sinfonia”. Como demonstra Veras no seu terceiro ensaio, a relação de Baudelaire com a música está longe de ser pacífica, e ela norteará as várias crises por que passará a poesia (sobretudo a francesa) em relação à tradição do lirismo. Francis Ponge, por exemplo, dirá: “Cortei uma a uma as cordas da minha lira”. 





Mas o miolo da grande leitura que Eduardo Veras faz de Baudelaire – uma leitura, vale lembrar, atualizadíssima, mesmo para um leitor francófono – está na relação tensa entre poesia e prosa na obra de Baudelaire. Aqui é preciso lembrar o fato interessantíssimo que o mais citado e traduzido poeta do mundo publicou apenas um livro de poesia em vida, e que seu segundo livro mais co- nhecido, o “Spleen de Paris (Pequenos poemas em prosa)” é uma obra póstuma. Numa época em que todos querem publicar tudo a todo custo, e num país em que os livros de poesia brotam como flores na primavera (ou como brotoejas de bebês), a obra de Baudelaire é exemplar. 

A publicação dos poemas em prosa é, contudo, um problema. Ao contrário de “As flores do mal”, não se entrevê neles um esqueleto, uma arquitetura. São textos não apenas dispersos na relação de conjunto, mas parecem conter uma dispersão interna, uma indecisão, em resumo, uma crise. Ora, essa crise, como mostra Veras, já estava instaurada nas Flores do Mal, e ela se associa com a posição travestida que o poeta assume na sociedade. Assim como ele se imiscui na multidão de burgueses curiosos de novidades e de maltrapilhos sem esperanças, mantendo ao mesmo tempo um entusiasmo e um desprezo pelo progresso; assim como instaura em sua poesia uma crise entre linguagem e representação; assim como adere a ideais conservadores na política, mas revolucionários na arte e nos costumes (na biopolítica, diríamos hoje); assim também a prosa poética de Baudelaire invade o espaço do jornal e do jornalismo para se colocar de forma crítica e polêmica em relação ao seu tempo. Ou seja: Baudelaire assume a crise da prosificação do mundo, mas a assume de forma poética. Desse modo, a prosa se poetiza, e a crise se transforma em crítica.

Não será, portanto, por acaso, que justamente na França irá proliferar, depois de Baudelaire, a forma do poema em prosa, ou, tout court, da prosa, vista não mais como uma antítese da poesia, mas, antes, como o seu complemento, ou me- lhor, seu suplemento. Dito de modo curto e grosso, para fim de conversa: sem a prosa de Baudelaire, não teríamos as “Iluminações” de Rimbaud, “Os cantos” de Lautréamont, as “Connaissances” de Paul Claudel, o segredo profissional de Jean Cocteau, a cosmogonia das coisas de Francis Ponge. Isso apenas para mencionar o âmbito francês. Por todos esses elementos, torna-se imprescindível ler o livro de Eduardo Veras sobre Baudelaire. 





Adalberto Müller é professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF), tradutor e escritor

Sobre o autor

Nascido em Belo Horizonte, em 1982, Eduardo Veras é professor adjunto do Departamento de Estudos Literários da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutor em literatura comparada pela UFMG, com um estudo sobre a obra de Baudelaire, Veras é autor do ensaio “O oratório poético de Alphonsus de Guimaraens: uma leitura do Setenário das Dores de Nossa Senhora” (Relicário, 2016) e do livro de poemas “Deserto azul” (Penalux, 2018). 

 

Entrevista
Eduardo Veras

“Baudelaire é um poeta urgente em tempos de obscurantismo” 


Como Baudelaire influenciou os poetas do século 20, em especial, no Brasil? 
O legado de Baudelaire é múltiplo. Mais explicitamente, ele passa por sua definição e experiência da modernidade, que, grosso modo, relaciona-se à fidelidade ao presente como matéria poética. Seu desejo heroico de extrair do Mal – teológico e histórico – uma nova beleza inaugura uma visão da poesia como impasse, como resistência à decadência, desejo de elevação e consciência de seus próprios limites, ao mesmo tempo. Creio que a herança baudelairiana para o século 20 esteja justamente no postulado das condições de existência da poesia – da arte – no mundo moderno, o mundo da técnica, do capitalismo industrial, da metrópole. É algo bastante amplo, porém fundamental.

Eu diria que, em alguma medida, as principais linhas de força da poesia do século 20 constituem respostas diversas a problemas baudelairianos como esse. Drummond também reivindica o presente como sua matéria e vivencia impasses semelhantes aos de Baudelaire. Se o impacto do poeta francês nem sempre é explícito sobre nossos poetas, ele atravessa, a meu ver, ora mais ora menos subterraneamente, nossa modernidade também. Com Baudelaire, nasce menos um estilo que uma episteme da modernidade poética.





Quais os limites que Baudelaire ultrapassou com a sua poesia?
Acho que Baudelaire testa mais que ultrapassa os limites da poesia. Esta, para ele, está ligada principalmente a duas ideias: a legibilidade do mundo (para ele o poeta é um tradutor) e o retorno à origem, a possibilidade de reconciliação entre a linguagem, as coisas e o homem. Ora, sua poesia dramatiza justamente a crise dessa visão de poesia, crise que ele reencena sem cessar. O caos, a dissonância, a fragmentação do sujeito, a dissolução dos contornos, o fracasso hermenêutico, a infiltração da prosa e do ruído no poema são algumas figuras dessa crise. Por fim, eu diria que a crise é o lugar mesmo da poesia e do pensamento de Baudelaire, daí, a meu ver, sua capacidade de colocar problemas, de nos convidar a pensar.

O que Baudelaire tem a dizer aos leitores do século 21?
Baudelaire é um poeta urgente, mais que isso, é uma inteligência urgente em tempos de sectarismo, fundamentalismo e obscurantismo como o nosso. Seu partido da poesia é o partido de uma criticidade radical e incansável, da recusa a dogmatismos de qualquer ordem. O que sempre me chamou a atenção em sua obra foi sua capacidade de materializar poeticamente o pensamento, não um pensamento, mas o próprio pensamento como dinâmica, como polêmica, como problema. A poesia de Baudelaire se inscreve no espaço limítrofe entre o poder da palavra e o reconhecimento de sua fratura. Trata-se de alguém que nos ensina, portanto, a considerar a ambiguidade que atravessa a linguagem – seu desejo de ser mais que linguagem, sua consciência de ser apenas linguagem. Reconheço nisso uma tarefa democrática (ainda que Baudelaire jamais me autorizasse a dizê-lo), a tarefa da crítica e da autocrítica.  

“Baudelaire e os limites da poesia”

De Eduardo Veras
Editora Corsário-Satã
192 páginas
R$ 45

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