“Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.” O verso do poeta Carlos Drummond de Andrade, do poema “A um Bruxo, com amor”, seria talvez uma boa epígrafe para a nova edição do “Dicionário de Machado de Assis”, de Ubiratan Machado. A mesma paixão que o poeta de Itabira tinha pelo Bruxo do Cosme Velho pode ser encontrada na nova edição de “Dicionário de Machado de Assis” que acaba de chegar às livrarias.
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A segunda edição do dicionário conta com quase 120 novos verbetes. Já a parte iconográfica foi totalmente reformulada, e traz novas fotos de Machado descobertas após a primeira edição do “Dicionário”, em 2008. O livro ganhou ainda excelentes caricaturas de J. Bosco. A seguir, a entrevista concedida por e-mail ao Pensar por Ubiratan Machado.
Você é reconhecido, até mesmo por alguns dos membros da Academia Brasileira de Letras, como um dos maiores conhecedores da obra de Machado de Assis. Sei que você trabalhou como jornalista. E também em outras profissões. Poderia contar a sua trajetória?
Não me formei em nenhum curso superior, mas na universidade da vida. Comecei a vida profissional aos 17 anos, como funcionário da Equitativa dos Estados Unidos do Brasil, uma companhia de seguros fundada no tempo do império pelo conde Afonso Celso. Fiquei lá dois anos, sonhando atrás de uma mesa, e começando a conhecer alguma coisa sobre o ser humano, suas mesquinharias, seu egoísmo, o exibicionismo que oculta um grande vazio interior. Quando saí, me tornei representante comercial de laboratórios farmacêuticos.
Foi um bom período, conheci todos os bairros do Rio de Janeiro e as cidades da Baixada Fluminense. Era uma época tranquila, início dos anos 1960. A violência apenas estava nascendo, com os primeiros assaltos a caminhões de entrega. Nada de assustar. Eu vendia e fazia cobrança e por vezes recebia boladas de dinheiro, mas andava de trem e ônibus com a maior serenidade. Em meados da década de 1970, me tornei vendedor viajante. Primeiro, percorri os estados mais próximos do Rio, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais, que, na época, tinha 522 municípios. Estive em todos, na maioria deles apenas uma vez. Em outros, eu voltava sempre.
Eram as grandes praças: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Governador Valadares, nas quais havia um comércio forte e belas morenas para a gente namorar. Mais tarde, me arrisquei pelos demais estados, do Rio Grande do Sul ao Pará. Conheci mais de 1.200 cidades. Sempre levando muitos livros para ler e comprando outros, por vezes verdadeiras preciosidades. Viajei pelo Brasil durante quase 10 anos, quando o interior ainda era bem atrasado, com raras estradas asfaltadas. Viajar de ônibus era comer pó. A exceção era São Paulo, com sua malha ferroviária, que cobria todo o estado. Dormi em hotéis infectos, em cidades sem luz elétrica no qual o gerador era apagado às 22h, apanhei muita carona com caminhoneiro. Assim, consegui aprender alguma coisa de literatura e da vida.
O jornalismo só veio depois...
Aos trinta e poucos anos, ingressei no Jornal do Brasil, como revisor e, dois anos mais tarde, na Bloch Editores, como repórter que nunca fez uma reportagem, mas que se tornou redator das revistas Fatos & Fotos e Ele & Ela. Trabalhei ainda na Rio Gráfica Editora, do grupo Globo, e numa rádio carioca escrevendo noticiário. Detestei e saí logo, passando a trabalhar para uma multinacional e agências de publicidade. Tomei gosto pela profissão, na qual permaneci por mais de 20 anos.
Como surgiu a ideia do dicionário? Teve inspiração em alguma obra do gênero?
O que posso dizer é que, durante anos, reuni anotações sobre a vida e a obra de Machado. Ao consultar um dicionário bibliográfico sobre Balzac, me veio a ideia de fazer algo semelhante.
Você se interessa pela maneira como Machado é ensinado nas escolas? As escolas são responsáveis por criarem a imagem de um autor difícil? Chato?
Não estou a par da presença de Machado no ensino médio. Minha opinião de leigo no assunto é pela adoção em sala de aula de autores contemporâneos, que falam a mesma linguagem dos jovens em formação e expressam problemas, sonhos e frustrações de seu dia a dia e, em forma mais abrangente, de nossa época. Isso cria uma identidade, que pode ser o início de uma paixão para toda a vida. Acho Machado muito sofisticado para quem está começando a ler literatura. Além disso, é um autor difícil para um iniciante nas letras, exigindo certo preparo, experiência de leitura e, sobretudo, maturidade.
Para os escritores argentinos, Jorge Luis Borges é sempre uma referência. Seja na obra de Ricardo Piglia, seja na obra de César Aira, para ficarmos só dois exemplos, o diálogo com Borges é evidente. E no Brasil? Você acha que o mesmo acontece com Machado em relação aos autores que vieram depois dele?
A situação é diferente. Borges, para os argentinos, mais do que um escritor, é um mito. Como Perón e Evita. Símbolo sentimental, político e intelectual de uma época que ainda inflama a alma do país. Machado está para a nossa literatura como Goethe para a Alemanha e Shakespeare para a Inglaterra. Um semideus, mas, creio, mais exaltado do que lido. É prova de bom gosto elogiá-lo. Mas não percebo um diálogo dele com os escritores atuais.
Você tem algum livro de Machado que prefere? Qual leu mais vezes?
Entre “Dom Casmurro” e “Quincas Borba”, meu coração balança. Quando estou lendo um, considero-o o melhor de Machado. O mesmo acontece quando leio o outro. De vez em quando gosto de fantasiar um relacionamento das personagens dos dois romances, Capitu brincando com o cão Quincas Borba e Bentinho trocando figurinhas com Rubião. Há ainda os contos. Já reli alguns 10, 15, 20 vezes. Entre outros, “Missa do galo”, “Uns braços”, “Primas de Sapucaia”, “Singular ocorrência” e “A senhora do Galvão”, pouco valorizado pela crítica e do meu especial agrado.
Quando Machado se tornou uma “obsessão” para você?
Machado não é obsessão, mas satisfação, lição de como escrever. Por mais que você leia a sua obra, sempre descobre alguma novidade. Mas, nem sempre foi assim. A primeira vez que li uma obra sua, “Missa do galo”, numa antologia dos melhores contos da literatura brasileira, achei chatíssimo. Eu tinha uns 13 anos, era um leitor apaixonado de histórias em quadrinhos e estava começando a ler literatura.
Não era nenhum gênio, ao contrário de certas pessoas que dizem ter lido Machado aos 10 anos e compreendido tudo. Vaidades. Como compreender as sutilezas, os subtendidos, a malícia e aquele sarcasmo venenoso com essa idade? O que me maravilhou no livro foi o conto “A morte da porta-estandarte”, de Aníbal Machado, que, aliás, me encanta até hoje, assim como toda a sua obra de contista.
Em 2003, você publicou “Machado de Assis – Roteiro da Consagração”. Como surgiu a ideia do livro?
“Roteiro da Consagração” reúne textos contemporâneos sobre Machado até 1908, ano de sua morte. O objetivo foi levantar a recepção à obra machadiana, no calor da hora, mas também resgatar aspectos que passaram despercebidos aos biógrafos, fofocas da época. Uma delas dizia que as “Memórias Póstumas” eram um romance à clef, talvez querendo aludir a algum caso da época.
Em 2005, você publicou “Bibliografia machadiana” (1959-2003). O livro é uma espécie de “continuação” do trabalho de José Galante, “Bibliografia de Machado de Assis”?
A minha “Bibliografia machadiana” complementa os trabalhos de Galante de Sousa e de Jean-Michel Massa. Como o título indica, é um registro bibliográfico sobre a obra machadiana, com o objetivo de fornecer subsídios para os estudiosos, facilitando-lhes a pesquisa.
Você também escreveu o livro “Os intelectuais e o espiritismo”, que parece inusitado para um leitor do cético Machado de Assis. Como surgiu sua relação com o espiritismo?
Nasci numa família espírita e desde cedo convivi com o maravilhoso, as incorporações, as conversas com espíritos, fatos insólitos, premonições. Minha mãe era médium, capaz de dizer coisas que aconteceram 10, 20 anos depois. Hoje, tenho dúvidas a respeito da mediunidade, não sabendo se devo atribui-la à ação de espíritos ou a uma simples manifestação da mente humana, sem interferências sobrenaturais. Mas há casos em que é difícil uma simples explicação racional. Ou seja, no creo en brujas, pero que las hay, las hay.
Seu livro “A vida literária no Brasil durante o Romantismo” parece ter uma forte inspiração em Brito Broca. Ou não? Poderia contar sobre a feitura do livro?
“A vida literária no Brasil durante o Romantismo”, meu livro mais ambicioso, se propõe apresentar um aspecto da vida social do povo brasileiro entre as décadas de 1830 a 1870, através das manifestações da vida literária. A ideia original do trabalho pertence a Brito Broca, que havia planejado um estudo da vida literária brasileira do período colonial ao modernismo. Escreveu apenas um volume: “A vida literária no Brasil: 1900”. Quando ele morreu, estava levantando material sobre o Romantismo. Tratei do tema de maneira muito diversa do que ele faria. Agora, estou concluindo “A vida literária no Brasil colônia”.
Você traduziu e prefaciou “Um caso tenebroso”, de Balzac. Poderia falar deste trabalho como tradutor e contar um pouco do seu interesse pelas outras literaturas?
A tradução de “Um caso tenebroso” foi encomendada pela Editora Francisco Alves. Balzac é uma das minhas grandes admirações, ao lado de Machado, Stendhal, Thomas Mann, Cervantes, Victor Hugo, Baudelaire, Manuel Bandeira, Drummond, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e uma fieira de poetas, românticos, como Fagundes Varela, e posteriores, como Francisco Mangabeira e outras figuras secundárias, que me lembram as leituras da mocidade e ainda hoje me seduzem... Nem só de pão de ló vive o homem.
João Pombo Barile é jornalista e redator do Suplemento Literário do Minas Gerais
“Dicionário de Machado de Assis”
De Ubiratan Machado
Imprensa Oficial
592 páginas
R$ 190
Três verbetes
Monarquista
Adepto da monarquia constitucional, Machado era um liberal-monarquista, que defendia ideias avançadas, como a abolição da escravatura e a separação de Igreja e Estado. Até certa época, acreditou firmemente no Terceiro Império. Nunca simpatizou com os ideais republicanos. Aliás, repudiava-os. Dizia ter duas “opiniões públicas”, uma impossível, outra realizada. “A impossível é a República de Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobretudo como brasileiro que me agrada esta última opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou...” (“Cartas fluminenses”, Diário do Rio de Janeiro, 5 de março de 1867).
Achava que esta era também a opinião da maioria, não perdendo ocasião de ressaltar “os sentimentos monárquicos da população” e “a sua adesão especial à pessoa do imperante e à dinastia de que S. M. é chefe” (Ilustração Brasileira, 1º de outubro de 1877). Não mudou de opinião com a República, se bem que tenha se ajustado ao regime, ao qual serviu com a habitual lealdade e competência, como tantos outros monarquistas. Mas nunca escondeu as suas preferências, o que lhe valeu ataques intempestivos e grosseiros de republicanos intolerantes, como Raul Pompeia e Diocleciano Mártir.
Repórter
Apesar do termo ainda não ser corrente no Brasil, a atividade já existia, de forma incipiente, quando Machado se iniciou na imprensa. Após uma fase como revisor, sua primeira atividade jornalística, foi convidado por Quintino Bocaiuva para trabalhar no Diário do Rio de Janeiro. Começou no dia 11 de maio de 1860, incumbido de cobrir as atividades parlamentares do Senado. Era, então, “um adolescente espantado e curioso”, impressionado com a figura dos senadores. A matéria saía sem assinatura. Foi a única atividade de Machado como repórter. Impondo-se de imediato pelo seu talento, logo passaria a redator e cronista.
Prefaciador
Machado não gostava de escrever prefácios para obras alheias, como se deduz de seu legado nessa área. Em mais de cinquenta anos de atividade literária, desfrutando de imenso prestígio, contam-se apenas onze prefácios de sua autoria, sendo dois deles simples cartas de cortesia transcritas pelos autores. Os demais foram ditados pela amizade e apenas um – o de “O guarani” – pela admiração. (...)