Escrever sobre Machado de Assis não é missão simples. O que dizer de novo sobre a obra do escritor carioca morto em 1908? São milhares os textos que analisam seus livros, compilados em bibliografias escritas por nomes como José Galante de Sousa, Jean Michel Massa e o próprio Ubiratan Machado, autor do dicionário.
“Sempre que pensava na ideia, acabava desistindo: para que mais uma interpretação de Machado?”, conta Paniago. A reclusão, provocada pela pandemia, mudou o pensamento do escritor, nascido em Goiás e radicado no Distrito Federal. A partir da leitura dos livros de John Gledson, professor aposentado da Universidade de Li- verpool e o maior especialista do autor brasileiro em língua inglesa, Paniago se deu conta de que a relação entre a crônica de Machado e a escrita dos seus romances, sobretudo “Memórias póstumas de Brás Cubas”, era um tema ainda pouco explorado.
“Machado usa a crônica como plataforma de treino para o estilo que viria desenvolvido, com sobra, em ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’”, explica Paniago. “Ou como diz o Gledson na introdução das “Crônicas escolhidas”, “às vezes são elas [as crônicas] que iluminam estes [os romances e contos]”.
Segundo Paniago, a prática cotidiana da escrita da crônica ajudou Machado a perceber que ele poderia dar um salto de qualidade no que vinha fazendo até aquele momento. “O que faltava, e meu livro procura fazer em alguma medida, é estabelecer com um pouco mais de minúcia os pontos de conexão entre as partes, encontrar a dicção cronística, por assim dizer, naquela que é possível também identificar no romance. Aliás, ousei afirmar que talvez a estrutura do grande romance pode ser também pensada como uma fragmentação dos capítulos em minicontos ou crônicas, sem perder a espinha dorsal da grande articulação que está na base do que se entende por romance. Nisso, também, o gênio de Machado sobra”, explica.
Ao se deter no papel das crônicas na criação dos romances de Machado, o livro de Paniago toca na antiga, e nunca finita, questão das influências sofridas pelo bruxo do Cosme Velho. “O que levou Machado a fazer a transição estilística que gera o grande romance da virada que foi ‘Memórias póstumas’?”, pergunta o professor da UnB. “Geralmente, as hipóteses são as mesmas: ou a doença dos olhos que o afastou temporariamente do Rio de Janeiro e quase o cega; ou a influência de algumas leituras, talvez sugeridas pela esposa, Carolina, entre elas a dos livros de Sterne; ou a vacância da liderança do movimento literário com a morte de José de Alencar, em 1876; ou ainda uma pesquisa feita em 1872 (e pu- blicada em 1876) que mostrava o baixo índice de leitores no país: e que, portanto, liberavam Machado para a escrita de um texto mais experimental”, enumera Paniago. “Com meu ensaio, acredito ter somado a essas hipóteses mais uma: as crônicas serviram como campo de teste do novo estilo.” Com elegância machadiana, o livro de Paulo Paniago vale a viagem.
“Outra Viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira”
De Paulo Paniago
Editora Amavisse/Patuá
370 páginas
R$ 50
Trecho
“O leitor contemporâneo de ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ encontra molduras curiosas antes de chegar ao texto do romance propriamente, ou ainda, à parte narrativa. Essa demora tem propósito. O adiamento da entrega do que se considera o enredo, nesse caso, funciona como uma nova demarcação de território: o romance faz questão de deixar claro os mecanismos que os constituem, as instâncias de formulação do livro são exibidas para que o leitor seja alertado, de maneira mais ou menos permanente ao longo do texto, que está a ler um romance, o tempo todo essa autoconsciência precisa ser estimulada e dá uma nova medida das possibilidades romanescas postas em ação pelo escritor.”