Agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2020, a poeta norte-americana Louise Glück é pouco conhecida no Brasil, apesar da grande repercussão internacional e da altíssima qualidade de sua poesia, laureada com inúmeras distinções. Com a recente publicação de “Poemas 2006-2014”, a Companhia das Letras inicia um projeto que tem tudo para contribuir para que a literatura de Glück possa alcançar em língua portuguesa os leitores e o reconhecimento que merece.
A obra, que promete ser a primeira de um plano editorial que irá apresentar em português nove dos 12 livros já publicados pela autora, conta com belas traduções das três mais recentes coletâneas de versos da autora: “Averno” (2006), “Uma vida no interior” (2009) e “Noite fiel e virtuosa” (2014). As excelentes traduções da volumosa edição bilíngue, com mais de 500 páginas, ficam a cargo respectivamente de Heloisa Jahn, Bruna Beber e Marília Garcia. Como hábeis poetas que são, as tradutoras conseguem, com maestria, transpor para a língua portuguesa a fina arquitetura de sutilezas da poeta norte-americana.
Dentro da poesia contemporânea, Louise Glück se destaca como uma exímia criadora de atmosferas, nas quais a interação do sujeito com a natureza é essencial. Esta é vista como força vital, como ameaça ou como marca do tempo, o qual avança e se repete aos olhos do sujeito lírico que nos apresenta suas memórias, seus sentimentos, suas reflexões, ao mesmo tempo em que se projeta em ficções. É o traço da ficcionalização, aliás, uma das operações literárias que distinguem o tipo especial de poesia lírica de Glück, especialista em construir personagens e banhá-los com elementos típicos do lirismo. Como a própria autora diz em um dos poemas de “Averno”: “Os personagens não são pessoas./ São aspectos de um dilema ou conflito”.
Esses versos podem ser tomados como verdadeiros princípios da poética de Glück, que se abastece de um saudável prosaísmo, estruturante de cenas, pequenas narrativas e situações de rara beleza, mesmo nos casos em que se trata do lado sombrio da vida. A sua retórica prosaica alonga os poemas, sem cansar o leitor, que se embala nas palavras sempre precisamente escolhidas. Embora uma marca da poética de Glück seja a habilidade com poemas longos, não se afastam desse nível de excelência os poemas mais curtos como “Agouros”, em que toda uma concepção de poesia é não apenas apresentada, mas, sobretudo, problematizada.
Quando se contrastam os longos poemas e os mais curtos, é que se atesta do melhor modo a regularidade da poesia de Glück. Até na obra de grandes autores alternam-se excelentes momentos e outros nem tanto assim. No caso da autora de “Averno”, está-se diante de uma obra de altíssimo nível e com regularidade espantosa. Assim, se os pequenos poemas são precisos (veja-se o exemplo de “Poente”), os longos têm a paciência de tecer a ambiência necessária ao mergulho progressivo em uma experiência lírica que é puro vínculo com a vida (como em “Um jardim de verão”). A poesia de Glück, assim, inventa o lirismo a partir de uma disposição fundante para a narratividade e para a ficcionalização, de que são exemplares poemas como “Um pedaço de papel” e “Via delle ombre”, entre tantos outros.
Esses são traços essenciais do mundo poético de Louise Glück, ao qual se tem um acesso privilegiado com a leitura em conjunto das três obras reunidas em “Poemas 2006-2014”. Observando a sequência, é dado ao leitor perceber o quanto a poeta foi capaz de se transformar e se manter fiel aos princípios básicos que constituem sua dicção, evoluindo sempre, mas dentro de um paradigma sólido, que é aquele que sempre se encontra como lastro das grandes obras da literatura. É especialmente interessante, portanto, aceitar que se está entrando em um universo cujas leis poéticas se postulam para dar a ver, conforme o ângulo escolhido em cada obra, aspectos especiais de sua constituição.
Sobre “Averno” (2006), alguém poderia sugerir que se trata de uma “atualização do mito de Perséfone”; mas isso seria dizer pouco. Aqui a operação poética de Glück é muito mais complexa e, de fato, põe em prática uma concepção de linguagem poética como “montagem de mistérios”. São elementos-chave para a interpretação desse conjunto de poemas: a relação entre o tempo do mito e o tempo contemporâneo; a problematização dos ciclos de vida referidos ao mito de Perséfone; o desenvolvimento literário do símbolo do Averno (lago de cratera entendido como “a passagem para o reino dos mortos”), que é a um só tempo mítico e lírico; a composição de voz, uma voz poética tríplice, ou trirreferencial (aludindo alternativamente a Deméter, sua filha Perséfone e própria Louise).
Se esses são os elementos-chave, tudo está submetido a um tom que equipara o mítico ao familiar, os quais se combinam e se alternam, em termos de imagens e de temporalidades, com extrema naturalidade. Nesse movimento sutil de transigência entre o íntimo e o mítico, entre o familiar e o atemporal, o mito de Perséfone é usado pela autora como mediação matricial para tratar das experiências de perda, de luto ou de suspensão do que é vital, mas também para falar daquilo que faz a vida dar o passo seguinte, superando-se a dor, a dificuldade, a aporia que às vezes parece tolher todas as possibilidades de esperança.
O livro de 2009, “Uma vida no interior”, dá sequência a essa pesquisa poética da figuração lírica da melancolia, que, em Glück, sempre ocorre sem derramamento, sem sentimentalismo, uma vez que se trata de um sentimento sempre composto poeticamente através de uma escrita clara e sóbria, mas integralmente banhada em sensibilidade. É o que se vê em “Afluentes”, por exemplo: “Cai a escuridão, a praça esvazia./ As primeiras folhas do outono entulham a fonte./ As ruas não convergem mais para cá;/ o chafariz as dispensa, que retornem para as montanhas que lhe deram origem”.
Nesse livro, permanecem a reflexão sobre o tempo, sobre a juventude, sobre o passar das estações, tanto quanto em “Averno”. Entretanto, transpõe-se o espaço/tempo poético para uma atmosfera passada e provinciana. Aqui, Glück dá vazão ainda mais abrangente à criação de atmosferas e ao desenvolvimento de uma constituição do olhar muito especial, que se evidencia como um olhar lírico lançado à realidade através de um telescópio, que vê a distância, mas sempre de perto. Entre os temas, destaca-se, em “Uma vida no interior”, o relacionamento conjugal, visto majoritariamente da perspectiva feminina e da memória, a qual esquadrinha os percursos da formação sentimental, amorosa e sexual.
Outra temática recorrente é a da passagem do tempo, que encontra a imagem súmula no ato de queimar folhas secas, o tema de três poemas de título idêntico, “Folhas na fogueira”, os quais trabalham, sob vários ângulos, a impressão causada na subjetividade pela passagem do tempo. Num deles, lê-se que as faíscas da fogueira, homologamente à subjetividade, resistem: “pois é certo que não conhecem a derrota,/ só dormência ou repouso, embora ninguém saiba/ se retratam a vida ou a morte”.
“Uma vida no interior” leva, pois, a um novo patamar de exigência a transfiguração literária da vida através dos elementos naturais. A partir do poema “Abundância”, é possível chegar a algumas conclusões importantes sobre o método poético de Glück para a investigação da existência: a natureza não é mero cenário onde a subjetividade se encontra, nem mesmo um seu reflexo. O mundo natural, especialmente considerado enquanto marca de tempo pela passagem do dia e das estações, é escolhido como mediação fundamental para a figuração das relações humanas, sem idealismo e sem fatalismo, buscando um ponto de equilíbrio no qual o mundo natural entra em perfeita simbiose com o espaço do corpo e dos sentimentos humanos.
A vida do interior referida no título da obra, portanto, é o avesso do tempo da urbe, que é o tempo-dinheiro. O tempo das estações e do dia, através da poética de Glück, religa o eu e o leitor a outras possibilidades de compreensão do sentido da vida, fora do esquema reificador da forma mercadoria. A esse respeito note-se a função da natureza nos poemas “Solstício de verão” e “Uma vida no interior”.
“Noite fiel e virtuosa” (2014) é o terceiro livro reunido na publicação. Mais recente coletânea de poemas de Louise Glück, nele é possível reconhecer a grande desenvoltura da poeta em fazer transigir a persona lírica para outros personagens. O olhar bívio, que faz a perspectiva derivar da autora autoficcionalizada para um personagem inventado, é um achado de raras sutileza e precisão, o qual já fora utilizado em “Averno” e que aqui ganha novo alcance. A maioria dos poemas de “Noite fiel e virtuosa” tem como personagem principal (ou como eu-lírico) um pintor ancião, que relembra episódios de sua infância e nos remete a um espaço real e ficcional, quase mítico, a Cornualha, onde o olhar da poeta se confunde com olhar do personagem, banhando tudo, paradoxalmente, em névoas que esclarecem, por tornar a existência muito mais complexa, precisamente porque, nuaçada, eleva-se ao patamar da ficção.
Nessa obra, percebe-se a presença muito forte da morte e da representação lírica dos traumas, que são sentidos, muitas vezes, através da recomposição de atmosferas oníricas e de episódios insólitos, os quais determinam o espanto disparador do lirismo em uma poética que se aproxima cada vez mais do prosaico e do ficcional, como em “Janela aberta” ou “Uma viagem abreviada”.
Ao que parece, Glück está perseguindo em “Noite fiel e virtuosa” o desenvolvimento em ato de uma verdadeira teoria do espaço/tempo literário, através da constituição das molduras narrativas em que o lirismo aflora, cada vez mais aberto ao prosaico. É curioso como as longas narrativas de que se compõem os poemas, de repente, conhecem uma deriva inesperada, como numa viagem. Tal movimento cria a impressão de que também o eu-lírico, que nem sempre é o que detém a posse da voz narrativa, ocupa um lugar de passageiro no trajeto que o leitor acompanha.
É o poder que Glück, como exímia poeta, tem de fazer o efeito estético transigir entre quem conta e quem ouve a história. Em vários textos, deparamo-nos com um protagonista que começa contando sua história para terminar compreendendo o quanto ele é, em verdade, objeto da própria narrativa história. Esse é um percurso que se assemelha ao modelo narrativa da sessão de psicanálise, em que o sujeito narra os episódios da vida para se projetar sobre os olhos de si como o outro e como o mesmo, num só movimento.
A grande capacidade de a poesia valer-se dos elementos básicos da lírica para criar personagens e para ficcionalizar a voz poética parece ser a essência da aventura a que nos convida a poesia de Louise Glück; algo que fica patente no poema “O casal no parque”, um exemplo de capacidade ficcional que devolve o olhar à natureza com sentido humano: “De dentro da caixinha, sai uma bailarina de madeira. Eu criei isso, pensa o homem; embora fique rodopiando sempre no mesmo lugar, ainda assim ela é uma espécie de dançarina e não apenas um pedaço de madeira. Isso deve explicar a música desconcertante que vem das árvores.”
Essa cena do último poema de “Noite fiel e virtuosa” indica bem a dimensão de vinculação literária do real à vida que é perseguida pela poesia de Glück. A lírica, em geral, nos apresenta um alguém, uma persona, que centraliza as atenções da leitura, em cuja existência somos convidados a crer como se fosse real. Generosa, a poesia de Glück partilha esse centro do lirismo com outros personagens, que se constituem através da narratividade e do recurso ao mito, à ficcionalização e ao deslocamento do centro subjetivo dos poemas. É muito raro que uma lírica, sem perder sua essencialidade subjetiva, nos convide a entrar e a conhecer um universo, um sistema de significados partilhados pelos personagens e pela atmosfera, que promove um vínculo catártico com a realidade. Esse é o caso do universo poético de Louise Glück, uma desenhista de personalidades banhadas pela delicadeza.
* Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília e poeta; autor, entre outros, de “Tangente do cobre” (Laranja Original)
“Poemas (2006-2014)”
De Louise Glück.
Tradução de Heloísa Jahn, Bruna Beber e Marília Garcia.
Companhia das Letras.
504 páginas.
R$ 79,90