Jornal Estado de Minas

POESIA

Dentro da mente veloz de Ferreira Gullar

“Toda poesia”, reunião da obra poética construída por Ferreira Gullar ao longo de 60 anos, ganhou, em 2021, nova e cuidadosa edição, o que dá chance de acompanhar a evolução dos mecanismos literários essenciais de um dos mais importantes autores brasileiros do século 20. Publicada pela primeira vez em 1980 pela editora Civilização Brasileira, a antologia de 10 títulos teve o mais recente acréscimo em 2015, com a inclusão do último livro de poemas do autor, “Em alguma parte alguma”. 





 

Em artigo recente, Ruy Castro recuperou versos escritos em 1949 pelo escritor maranhense para dizer que ali se encontrava um “Gullar pré-Gullar”, o qual estava textualmente fora do conjunto recolhido em “Toda poesia”, mas essencialmente vinculado ao cerne da sua poética. Entre esses versos, Castro destaca o quarteto a seguir: “Essa mansa canção de gestos lentos/ mãos que salvaste pássaros e almas/ afaga as minhas mãos em cujas palmas/ crescem desejos de estrangulamentos.” Não deixa de haver mesmo parentesco entre a canção que dispara os “desejos de estrangulamento” e o poema “Bomba suja”, que convoca a palavra “diarreia”, publicado no livro “Dentro da noite veloz”, de 1976.

O perfil de Ferreira Gullar que desponta da leitura de sua poesia reunida, contudo, é o de um poeta de alcance bem mais consequente do que este que, em certo sentido, sempre mirou algo de iconoclastia, como registrado seja nos versos de juventude, em fins dos anos 1940, seja na disposição política mais acentuada nos escritos na década de 1970.  

 

A trajetória poética de Gullar (1930-2016), quando vista de ponta a ponta, remete a um processo lento de amadurecimento. Nele verifica-se a apropriação progressiva de certos recursos que se consolidaram como típicos de uma obra que tem como compromisso capital a relação honesta e aguda com a realidade, como fica pontuado nos versos iniciais de “Coisas da terra”: “Todas as coisas de que falo estão na cidade/ entre o céu e a terra”.

Uma poesia mundana, no melhor sentido, é o que assoma do precioso conjunto de “Toda poesia”. Ao recuperar a poesia de Gullar de 1950 a 2010, o volume dá a ver o quanto tal trajetória se faz através de uma dialética entre a fidelidade a certos princípios e o desejo de ir além dos limites impostos pelo contexto e pelos temas, forçando sempre o horizonte da linguagem. Essa dialética de longa duração mantém-se através de uma chave incidental, gravada, por exemplo, em um poema como “A vida bate”, cujos versos iniciais dizem: “Não se trata do poema e sim do homem/ e sua vida”. 





O chão e o coração

Até mesmo o leitor atento a essa constituição basal da poética gullariana impressiona-se com o caráter de súmula de uma quadra do primeiro dos “Sete poemas portugueses”: “E na relva diuturna/ (que voz diurna/ cresce cresce do chão?) rola meu coração”. Nesse relance, tão essencial quanto mínimo e precoce (pois cuida-se de texto do início dos anos 1950), fica atestada a inteireza de um robusto programa poético. Lá está o “meu coração”, como núcleo lírico que elabora o real e a linguagem a partir de uma subjetividade claramente situada no tempo histórico.

Mas também está o “chão”, como concreta matéria inescapável do poema, que, entretanto, se vincula à “relva diuturna”, a qual, por sua vez, suplanta a contingência, indo além dos dias, para sugerir uma perenidade e uma multiplicidade de realidades que escapam ao sujeito. Finalmente, há, nesses primeiros versos do poema que abre “Toda poesia”, sobretudo, a “voz diurna”, elemento contingencial que, oposto ao que se prolonga em direção ao perene e ao múltiplo, é fundante para a voz poética de Gullar. A esses elementos a atenção do autor irá se direcionar e, a partir deles, outros motes serão convocados para a estruturação de sua busca por uma dicção particular e à altura das exigências de seu tempo histórico, com atenção especial à “suja luz dos perfumes da vida”, registrada no poema “Memória”. 

 

No último livro coligido em “Toda poesia” encontra-se o poema “Falar”, que, em certa medida, pode ser tomado como consumação do projeto anunciado 60 anos antes n’ “A luta corporal”: “A poesia é, na verdade, uma/ fala ao revés da fala,/ como um silêncio que o poeta exuma/ do pó, a voz que jaz embaixo/ do falar e no falar se cala”. A “fala ao revés da fala” não se faz nunca, em mais de meio século de poesia, sem as coordenadas do “chão”, da “voz”, “do coração” e sobretudo da “relva diuturna”, condão de mistérios e sugestões que cabe ao poeta indicar, pois segundo o próprio Gullar, “a vida não basta”, por isso existe a arte. Entretanto, a bem do contraditório, que rege a própria lei da existência, o autor garante, no poema “Vestibular”: “Tudo que posso dizer-lhe/ é que a gente não foge / da vida/ é que não adianta fugir”. 





 

Do primeiro ao último livro, portanto, consegue-se apontar, com a remissão aos “Poemas portugueses” e a “Falar”, para algo que é central à compreensão da importância de Gullar para a lírica em língua portuguesa no século 20: a sua concepção de poesia que é, a um só tempo, defendida e procurada por ele ao longo de mais de meio século de trabalho. Essa concepção é o que interessa, por exemplo, a Antonio Cicero, no belo e esclarecedor posfácio que integra a recente edição de “Toda poesia”. Para melhor apresentar a poesia de Gullar ao leitor, o texto de Cícero divide-a em fases, nas quais se pode perceber a inquietude que embala a pesquisa da linguagem nos primeiros livros e que alcança plenitude de realização a partir do “Poema sujo”.

De acordo com Cícero, “em ‘Poema sujo’ Gullar já exerce – sem dúvida a partir de toda a sua experiência de poeta e impelido pela intuição, pela emoção e pela paixão pela poesia – a liberdade que ele apenas conseguiria conceituar, e de modo lapidar, quase 40 anos depois.”. Grosso modo, então, pode-se dizer que os primeiros livros de Gullar, antes do “Poema sujo”, caracterizam-se pela busca de uma plenitude alcançada a partir desta incontornável obra de 1975, a qual, por sua vez, só seria possível ao poeta manipular conceitualmente muitos anos depois.

O vínculo do corpo

Aliás, como bem demonstram eminentes estudiosos da poesia de Gullar, entre os quais Antonio Carlos Secchin e o próprio Antonio Cícero, a poesia é tema central de grande parte dos poemas escritos pelo autor, chegando a dominar coletâneas como “Na vertigem do dia”, por exemplo. Sendo tema central, a poesia ou, mais especificamente, o ato de sua encarnação em poema, engendram diálogos com outros âmbitos da vida e garantem a riqueza e a multiplicidade de assuntos em que, normalmente, se reconhecem os poetas de disposição aberta a refletir sobre a situação do sujeito no mundo, ou, nas palavras de Gullar: “que faço entre coisas? De que me defendo?”. As perguntas, presentes em “Galo galo”, encaminham o leitor a um circuito de conteúdos que vale a pena aqui apontar, ainda que de modo muito indicial, como forma de sugerir trilhas a percorrer, de fio a pavio, na leitura de “Toda poesia”.    

 

O leitor verá no conjunto que um dos temas fortes da poesia de Gullar é o corpo, entendido como espaço da consciência do eu e de mediação central entre sujeito e realidade. Através do corpo, o poeta revela seu vínculo com o espaço próximo e com o longínquo. É o que se lê, por exemplo, no poema “Homem sentado”: “vejo pelo janelão da sala/ parte da cidade/ estou aqui/ apoiado apenas em mim mesmo/ neste meu corpo magro, mistura/ de nervos e ossos/ vivendo”.





 

Além do corpo, a atenção às coisas simples é frequente em toda a poesia de Gullar. Desde “A luta corporal”, onde se encontram os magistrais poemas “Galo galo” e “A galinha” até “Alguma parte alguma”, onde se encontra o belo poema “Uma corola”, que guarda o verso que dá título a este último livro do poeta. A atenção às minúcias do cotidiano dá forma ao olhar poético primacial de Gullar: aquele que perscruta o chão, o dia, o trivial, sempre em busca da “vida que bate”. A esse título são talvez insuperáveis os cinco poemas da série “Bananas podres”, que se dispõem entre os livros “Na vertigem do dia” e “Em alguma parte alguma”.

 

Do ponto de vista dos movimentos da subjetividade registrados no poema, Gullar sempre deixou evidente que a criação poética deveria captar, com o maior grau de fidelidade possível, o espanto engendrador da disposição lírica. Daí que o tema do espanto e da aparição de algo insólito (clarões, explosão) em contexto trivial é reiterado no conjunto de sua obra. Isso dá embasamento ao memorialismo do “Poema sujo”, mas também se verifica sob condições diferentes em “Fotografia de Mallarmè” e “Electra II”, de “Muitas vozes”, ou “O Cheiro da Tangerina”, de Barulhos. 

 

A matéria memorialística, tão recorrente em Gullar, dá origem a outro esteio importante do conjunto de sua obra, o qual se vincula ao cerne de sua concepção poética: a relação entre a poesia e o povo. O clássico “Traduzir-se” e, também, a dupla “Meu povo, meu abismo” e “Meu povo, meu poema” são referências inquestionáveis desta porta para o mundo social que o autor encontra através da poesia. Seguro de que “meu povo e meu poema crescem juntos”, o poeta vincula memória e cotidiano a uma certa imaginação nacional-popular da dicção poética, testada nos “Poemas de cordel” e totalmente transfigurada nas obras dos anos 1970 e 1980. Nesses livros, a recolha de ruídos, falas, alaridos dará vez à constituição daquele que é o verdadeiro núcleo da poesia de Gullar, sua insígnia poética indelével: a figuração do “homem comum”.





 

Esse personagem, que é o protagonista do “Poema sujo”, patenteia-se em textos como “Voltas para casa”, “Maio de 1964”, “Agosto de 1964” ou “Adeus a Tancredo”, com marca política contextual forte. Mas o “homem comum” de Gullar não se restringe a esse limite conjuntural, pois é quem fala, por exemplo, em “Filhos”, “Meu pai” ou “Os mortos”, todos textos vinculados a relações familiares. Assim, chega-se à conclusão de que esse personagem não é apenas reflexo de Gullar, o que seria uma ilusão rebaixada de correspondência direta entre ‘eu poético’ e ‘eu empírico’.

Também não é o seu outro de classe, o que seria um idealismo político inconsequente incompatível com o refinamento de um poeta que testou os limites da poesia nos “Poemas concretos e neoconcretos” da década de 1950. O “homem comum”, cuja biografia se pode depreender da leitura de “Toda poesia”, através de uma multiplicidade de temas a ele articulados, é uma transfiguração da realidade que abarca as tensões de um tempo histórico específico e reitera, a partir daí, a sua relação com a humanidade. Essa a grande conquista exibida no conjunto de seus livros ora reunidos.

 

De toda obra de Gullar, parece ser em “O açúcar” que tem lugar a síntese mais legítima dessa figura indiscernível da vida brasileira, apresentada ao leitor em chave crítica, como consciência dilacerada da história: “Em usinas escuras,/ homens de vida amarga/ e dura/ produziram este açúcar/ branco e puro/ com que adoço meu café esta manhã em Ipanema”.





 

Depreende-se, pois, que Gullar escolhe a poesia como tomada de partido da vida. Por isso, o poeta afirmaria certa vez que “a poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral”. Talvez quisesse dizer que a poesia não é expressão mecânica e direta de teses previamente estabelecidas, nem lugar de retórica política, nem espaço para idealizar o mundo. O que não quer dizer que seja infensa a tudo isso. Sendo poesia política, a obra de Gullar jamais foi veículo de ideias. Escolhendo outro caminho, mais complexo, tencionou articular tais ideias a uma interpretação crítica do real, sendo, portanto, nas suas palavras, toda poesia uma “luz do chão”. Como ele gostava de dizer: “Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens”.

 

*Alexandre Pilati é professor de literatura da Universidade de Brasília e poeta, autor, entre outros, de “Tangente do cobre” (Laranja Original, 2021)

“Magnífica celebração”

“Em ‘Poema sujo’, Gullar já exerce – sem dúvida a partir de toda a sua experiência de poeta e impelido pela intuição, pela emoção e pela paixão pela poesia – a liberdade que ele apenas conseguiria conceituar, e de modo lapidar, quase 40 anos depois. Gullar dizia que ‘quando me perguntam o que o ‘Poema sujo’ significa, por exemplo, respondo que deviam lê-lo, porque o poema não significa nada além do que nele está contido.’ E tem toda razão. Acrescento apenas que ‘Poema sujo’, sem jamais deixar de reconhecer o absurdo esmagador da vida, constitui-lhe uma magnífica celebração.”

 

Antonio Cicero no posfácio “A fala ao revés da fala”, da nova edição de “Toda poesia”

A galinha

Morta

flutua no chão.

Galinha.

 

Não teve o mar, nem

quis, nem compreendeu

aquele ciscar quase feroz. Cis-





cava. Olhava

o muro,

aceitava-o negro e absurdo.

 

Nada perdeu. O quintal

não tinha

qualquer beleza.

 

Agora

as penas são só o que o vento

roça, leves.

 

Apagou-se-lhe

toda cintilação, o medo.

Morta. Evola-se do olho seco

o sono. Ela dorme.

Onde? onde?

 

 

(“A luta corporal”, 1954)

Falar

A poesia é, de fato, o fruto

de um silêncio que sou eu, sois vós,

por isso tenho que baixar a voz

porque, se falo alto, não me escuto.

 

A poesia é, na verdade, uma

fala ao revés da fala,

como um silêncio que o poeta exuma

do pó, a voz que jaz embaixo

do falar e no falar se cala.

 

Por isso o poeta tem que falar baixo

baixo quase sem fala em suma

mesmo que não se ouça coisa alguma.





 

(“Em alguma parte alguma”, 2010)

Fotografia de Mallarmé

é uma foto

premeditada

como um crime

 

basta

reparar no arranjo

das roupas os cabelos

a barba tudo

adrede preparado

— um gesto e a manta

equilibrada sobre

os ombros

cairá — e

especialmente a mão

com a caneta

detida

acima da

folha em branco: tudo

à espera da eternidade

 

sabe-se

após o clique

a cena se desfez na

rue de Rome a vida voltou

a fluir imperfeita

mas

isso a foto não

captou que a foto

é a pose a suspensão

do tempo

agora

meras manchas

no papel raso

mas eis que

teu olhar

encontra o dele

(Mallarmé) que

ali

do fundo

da morte

olha

 

(“Muitas vozes”, 2000)

Minha medida

Meu espaço é o dia

de braços abertos

tocando a fímbria de uma e outra noite

o dia

que gira

colado ao planeta

e que sustenta numa das mãos a aurora

e na outra

um crepúsculo de Buenos Aires

 

Meu espaço, cara,

é o dia terrestre

quer o conduzam os pássaros do mar

ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil

o dia

medido mais pelo meu pulso

do que

pelo meu relógio de pulso

 

Meu espaço — desmedido —

é o pessoal aí, é nossa

gente,

de braços abertos tocando a fímbria

de uma e outra fome,

o povo, cara,

que numa das mãos sustenta a festa

e na outra

uma bomba de tempo

 

(“Na vertigem do dia”, 1980)