Em artigo recente, Ruy Castro recuperou versos escritos em 1949 pelo escritor maranhense para dizer que ali se encontrava um “Gullar pré-Gullar”, o qual estava textualmente fora do conjunto recolhido em “Toda poesia”, mas essencialmente vinculado ao cerne da sua poética. Entre esses versos, Castro destaca o quarteto a seguir: “Essa mansa canção de gestos lentos/ mãos que salvaste pássaros e almas/ afaga as minhas mãos em cujas palmas/ crescem desejos de estrangulamentos.” Não deixa de haver mesmo parentesco entre a canção que dispara os “desejos de estrangulamento” e o poema “Bomba suja”, que convoca a palavra “diarreia”, publicado no livro “Dentro da noite veloz”, de 1976.
A trajetória poética de Gullar (1930-2016), quando vista de ponta a ponta, remete a um processo lento de amadurecimento. Nele verifica-se a apropriação progressiva de certos recursos que se consolidaram como típicos de uma obra que tem como compromisso capital a relação honesta e aguda com a realidade, como fica pontuado nos versos iniciais de “Coisas da terra”: “Todas as coisas de que falo estão na cidade/ entre o céu e a terra”.
Uma poesia mundana, no melhor sentido, é o que assoma do precioso conjunto de “Toda poesia”. Ao recuperar a poesia de Gullar de 1950 a 2010, o volume dá a ver o quanto tal trajetória se faz através de uma dialética entre a fidelidade a certos princípios e o desejo de ir além dos limites impostos pelo contexto e pelos temas, forçando sempre o horizonte da linguagem. Essa dialética de longa duração mantém-se através de uma chave incidental, gravada, por exemplo, em um poema como “A vida bate”, cujos versos iniciais dizem: “Não se trata do poema e sim do homem/ e sua vida”.
O chão e o coração
Até mesmo o leitor atento a essa constituição basal da poética gullariana impressiona-se com o caráter de súmula de uma quadra do primeiro dos “Sete poemas portugueses”: “E na relva diuturna/ (que voz diurna/ cresce cresce do chão?) rola meu coração”. Nesse relance, tão essencial quanto mínimo e precoce (pois cuida-se de texto do início dos anos 1950), fica atestada a inteireza de um robusto programa poético. Lá está o “meu coração”, como núcleo lírico que elabora o real e a linguagem a partir de uma subjetividade claramente situada no tempo histórico.
Mas também está o “chão”, como concreta matéria inescapável do poema, que, entretanto, se vincula à “relva diuturna”, a qual, por sua vez, suplanta a contingência, indo além dos dias, para sugerir uma perenidade e uma multiplicidade de realidades que escapam ao sujeito. Finalmente, há, nesses primeiros versos do poema que abre “Toda poesia”, sobretudo, a “voz diurna”, elemento contingencial que, oposto ao que se prolonga em direção ao perene e ao múltiplo, é fundante para a voz poética de Gullar. A esses elementos a atenção do autor irá se direcionar e, a partir deles, outros motes serão convocados para a estruturação de sua busca por uma dicção particular e à altura das exigências de seu tempo histórico, com atenção especial à “suja luz dos perfumes da vida”, registrada no poema “Memória”.
No último livro coligido em “Toda poesia” encontra-se o poema “Falar”, que, em certa medida, pode ser tomado como consumação do projeto anunciado 60 anos antes n’ “A luta corporal”: “A poesia é, na verdade, uma/ fala ao revés da fala,/ como um silêncio que o poeta exuma/ do pó, a voz que jaz embaixo/ do falar e no falar se cala”. A “fala ao revés da fala” não se faz nunca, em mais de meio século de poesia, sem as coordenadas do “chão”, da “voz”, “do coração” e sobretudo da “relva diuturna”, condão de mistérios e sugestões que cabe ao poeta indicar, pois segundo o próprio Gullar, “a vida não basta”, por isso existe a arte. Entretanto, a bem do contraditório, que rege a própria lei da existência, o autor garante, no poema “Vestibular”: “Tudo que posso dizer-lhe/ é que a gente não foge / da vida/ é que não adianta fugir”.
Do primeiro ao último livro, portanto, consegue-se apontar, com a remissão aos “Poemas portugueses” e a “Falar”, para algo que é central à compreensão da importância de Gullar para a lírica em língua portuguesa no século 20: a sua concepção de poesia que é, a um só tempo, defendida e procurada por ele ao longo de mais de meio século de trabalho. Essa concepção é o que interessa, por exemplo, a Antonio Cicero, no belo e esclarecedor posfácio que integra a recente edição de “Toda poesia”. Para melhor apresentar a poesia de Gullar ao leitor, o texto de Cícero divide-a em fases, nas quais se pode perceber a inquietude que embala a pesquisa da linguagem nos primeiros livros e que alcança plenitude de realização a partir do “Poema sujo”.
De acordo com Cícero, “em ‘Poema sujo’ Gullar já exerce – sem dúvida a partir de toda a sua experiência de poeta e impelido pela intuição, pela emoção e pela paixão pela poesia – a liberdade que ele apenas conseguiria conceituar, e de modo lapidar, quase 40 anos depois.”. Grosso modo, então, pode-se dizer que os primeiros livros de Gullar, antes do “Poema sujo”, caracterizam-se pela busca de uma plenitude alcançada a partir desta incontornável obra de 1975, a qual, por sua vez, só seria possível ao poeta manipular conceitualmente muitos anos depois.
O vínculo do corpo
Aliás, como bem demonstram eminentes estudiosos da poesia de Gullar, entre os quais Antonio Carlos Secchin e o próprio Antonio Cícero, a poesia é tema central de grande parte dos poemas escritos pelo autor, chegando a dominar coletâneas como “Na vertigem do dia”, por exemplo. Sendo tema central, a poesia ou, mais especificamente, o ato de sua encarnação em poema, engendram diálogos com outros âmbitos da vida e garantem a riqueza e a multiplicidade de assuntos em que, normalmente, se reconhecem os poetas de disposição aberta a refletir sobre a situação do sujeito no mundo, ou, nas palavras de Gullar: “que faço entre coisas? De que me defendo?”. As perguntas, presentes em “Galo galo”, encaminham o leitor a um circuito de conteúdos que vale a pena aqui apontar, ainda que de modo muito indicial, como forma de sugerir trilhas a percorrer, de fio a pavio, na leitura de “Toda poesia”.
O leitor verá no conjunto que um dos temas fortes da poesia de Gullar é o corpo, entendido como espaço da consciência do eu e de mediação central entre sujeito e realidade. Através do corpo, o poeta revela seu vínculo com o espaço próximo e com o longínquo. É o que se lê, por exemplo, no poema “Homem sentado”: “vejo pelo janelão da sala/ parte da cidade/ estou aqui/ apoiado apenas em mim mesmo/ neste meu corpo magro, mistura/ de nervos e ossos/ vivendo”.
Além do corpo, a atenção às coisas simples é frequente em toda a poesia de Gullar. Desde “A luta corporal”, onde se encontram os magistrais poemas “Galo galo” e “A galinha” até “Alguma parte alguma”, onde se encontra o belo poema “Uma corola”, que guarda o verso que dá título a este último livro do poeta. A atenção às minúcias do cotidiano dá forma ao olhar poético primacial de Gullar: aquele que perscruta o chão, o dia, o trivial, sempre em busca da “vida que bate”. A esse título são talvez insuperáveis os cinco poemas da série “Bananas podres”, que se dispõem entre os livros “Na vertigem do dia” e “Em alguma parte alguma”.
Do ponto de vista dos movimentos da subjetividade registrados no poema, Gullar sempre deixou evidente que a criação poética deveria captar, com o maior grau de fidelidade possível, o espanto engendrador da disposição lírica. Daí que o tema do espanto e da aparição de algo insólito (clarões, explosão) em contexto trivial é reiterado no conjunto de sua obra. Isso dá embasamento ao memorialismo do “Poema sujo”, mas também se verifica sob condições diferentes em “Fotografia de Mallarmè” e “Electra II”, de “Muitas vozes”, ou “O Cheiro da Tangerina”, de Barulhos.
A matéria memorialística, tão recorrente em Gullar, dá origem a outro esteio importante do conjunto de sua obra, o qual se vincula ao cerne de sua concepção poética: a relação entre a poesia e o povo. O clássico “Traduzir-se” e, também, a dupla “Meu povo, meu abismo” e “Meu povo, meu poema” são referências inquestionáveis desta porta para o mundo social que o autor encontra através da poesia. Seguro de que “meu povo e meu poema crescem juntos”, o poeta vincula memória e cotidiano a uma certa imaginação nacional-popular da dicção poética, testada nos “Poemas de cordel” e totalmente transfigurada nas obras dos anos 1970 e 1980. Nesses livros, a recolha de ruídos, falas, alaridos dará vez à constituição daquele que é o verdadeiro núcleo da poesia de Gullar, sua insígnia poética indelével: a figuração do “homem comum”.
Esse personagem, que é o protagonista do “Poema sujo”, patenteia-se em textos como “Voltas para casa”, “Maio de 1964”, “Agosto de 1964” ou “Adeus a Tancredo”, com marca política contextual forte. Mas o “homem comum” de Gullar não se restringe a esse limite conjuntural, pois é quem fala, por exemplo, em “Filhos”, “Meu pai” ou “Os mortos”, todos textos vinculados a relações familiares. Assim, chega-se à conclusão de que esse personagem não é apenas reflexo de Gullar, o que seria uma ilusão rebaixada de correspondência direta entre ‘eu poético’ e ‘eu empírico’.
Também não é o seu outro de classe, o que seria um idealismo político inconsequente incompatível com o refinamento de um poeta que testou os limites da poesia nos “Poemas concretos e neoconcretos” da década de 1950. O “homem comum”, cuja biografia se pode depreender da leitura de “Toda poesia”, através de uma multiplicidade de temas a ele articulados, é uma transfiguração da realidade que abarca as tensões de um tempo histórico específico e reitera, a partir daí, a sua relação com a humanidade. Essa a grande conquista exibida no conjunto de seus livros ora reunidos.
De toda obra de Gullar, parece ser em “O açúcar” que tem lugar a síntese mais legítima dessa figura indiscernível da vida brasileira, apresentada ao leitor em chave crítica, como consciência dilacerada da história: “Em usinas escuras,/ homens de vida amarga/ e dura/ produziram este açúcar/ branco e puro/ com que adoço meu café esta manhã em Ipanema”.
Depreende-se, pois, que Gullar escolhe a poesia como tomada de partido da vida. Por isso, o poeta afirmaria certa vez que “a poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral”. Talvez quisesse dizer que a poesia não é expressão mecânica e direta de teses previamente estabelecidas, nem lugar de retórica política, nem espaço para idealizar o mundo. O que não quer dizer que seja infensa a tudo isso. Sendo poesia política, a obra de Gullar jamais foi veículo de ideias. Escolhendo outro caminho, mais complexo, tencionou articular tais ideias a uma interpretação crítica do real, sendo, portanto, nas suas palavras, toda poesia uma “luz do chão”. Como ele gostava de dizer: “Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens”.
*Alexandre Pilati é professor de literatura da Universidade de Brasília e poeta, autor, entre outros, de “Tangente do cobre” (Laranja Original, 2021)
“Magnífica celebração”
“Em ‘Poema sujo’, Gullar já exerce – sem dúvida a partir de toda a sua experiência de poeta e impelido pela intuição, pela emoção e pela paixão pela poesia – a liberdade que ele apenas conseguiria conceituar, e de modo lapidar, quase 40 anos depois. Gullar dizia que ‘quando me perguntam o que o ‘Poema sujo’ significa, por exemplo, respondo que deviam lê-lo, porque o poema não significa nada além do que nele está contido.’ E tem toda razão. Acrescento apenas que ‘Poema sujo’, sem jamais deixar de reconhecer o absurdo esmagador da vida, constitui-lhe uma magnífica celebração.”
Antonio Cicero no posfácio “A fala ao revés da fala”, da nova edição de “Toda poesia”
A galinha
Morta
flutua no chão.
Galinha.
Não teve o mar, nem
quis, nem compreendeu
aquele ciscar quase feroz. Cis-
cava. Olhava
o muro,
aceitava-o negro e absurdo.
Nada perdeu. O quintal
não tinha
qualquer beleza.
Agora
as penas são só o que o vento
roça, leves.
Apagou-se-lhe
toda cintilação, o medo.
Morta. Evola-se do olho seco
o sono. Ela dorme.
Onde? onde?
(“A luta corporal”, 1954)
Falar
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
(“Em alguma parte alguma”, 2010)
Fotografia de Mallarmé
é uma foto
premeditada
como um crime
basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado
— um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá — e
especialmente a mão
com a caneta
detida
acima da
folha em branco: tudo
à espera da eternidade
sabe-se
após o clique
a cena se desfez na
rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel raso
mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
ali
do fundo
da morte
olha
(“Muitas vozes”, 2000)
Minha medida
Meu espaço é o dia
de braços abertos
tocando a fímbria de uma e outra noite
o dia
que gira
colado ao planeta
e que sustenta numa das mãos a aurora
e na outra
um crepúsculo de Buenos Aires
Meu espaço, cara,
é o dia terrestre
quer o conduzam os pássaros do mar
ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil
o dia
medido mais pelo meu pulso
do que
pelo meu relógio de pulso
Meu espaço — desmedido —
é o pessoal aí, é nossa
gente,
de braços abertos tocando a fímbria
de uma e outra fome,
o povo, cara,
que numa das mãos sustenta a festa
e na outra
uma bomba de tempo
(“Na vertigem do dia”, 1980)