Desde a invenção das tecnologias que permitiram a captação e reprodução da imagem em movimento, as palavras "cinema" e "vigilância" caminham lado a lado. Filho do capitalismo industrial e símbolo da modernidade, o cinema nasce, paradoxalmente, como produtor de encantamento, graças à sua capacidade de capturar a vida no tempo, e como um dispositivo que inaugura novas possibilidades de vigilância e controle.
Na 15ª Cine BH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, a temática central será justamente "Cinema e vigilância", com o objetivo de discutir essa relação complexa, estritamente ligada à história do cinema e ao mesmo tempo tão profundamente atual.
Na 15ª Cine BH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, a temática central será justamente "Cinema e vigilância", com o objetivo de discutir essa relação complexa, estritamente ligada à história do cinema e ao mesmo tempo tão profundamente atual.
Desde os primórdios, a dimensão vigilante das câmeras emerge em diversas obras, como na imagem do patrão que surge em uma imensa tela para repreender Carlitos operário em "Tempos modernos" (1936). Ou, mais adiante, no lento movimento da lente zoom que vigia um casal em uma praça, na abertura do suspense "A conversação", de Francis Ford Coppola (1974). Com a chegada das tecnologias digitais, a relação entre a produção de imagens e a questão da vigilância se intensificou e se potencializou graças à multiplicação das câmeras de segurança e à onipresença das câmeras digitais, agora em qualquer smartphone.
Nos últimos 20 anos, as transformações do próprio capitalismo deram novos sentidos à palavra vigilância. O crescimento de empresas totalmente digitalizadas, como Google e Amazon, que se alimentam de informações cada vez mais personalizadas da vida privada de seus usuários (como monitoramento de gostos, hábitos e deslocamentos), somado à emergência das redes sociais, que alteraram radicalmente os regimes de visibilidade, só fizeram aumentar a sensação de que estamos sendo constantemente observados e vigiados. No pós-11 de Setembro, sob a justificativa de controle mais rigoroso da segurança, milhares de pessoas passaram a ter seus movimentos monitorados, mesmo sem absolutamente nenhuma relação com atos terroristas. Em nome de uma suposta maior proteção coletiva, abre-se mão da individualidade.
Algoritmos
O século 21 trouxe ainda uma novidade: os algoritmos. Se câmeras e microfones, mesmo quando miniaturizados, são sempre concretos e palpáveis, os algoritmos ampliam a sensação de uma força imaterial que nos monitora – e que ninguém consegue compreender plenamente. A incidência desse novo estatuto da vigilância, que atravessa a economia, os costumes e o imaginário, tem influenciado a imaginação de cineastas e orientado uma nova intersecção entre estética e política, privacidade e espetáculo, linguagem e fato.
No tempo das fake news, o mito da imagem como testemunho já não determina mais os problemas do que seria uma dicotomia entre o real e o simulacro. O que a ficção do cinema durante o século 20 imaginava como distopia de uma sociedade controlada por uma instância de poder invisível – como na série “Doutor Mabuse”, de Fritz Lang – ganhou uma dimensão inimaginável.
No tempo das fake news, o mito da imagem como testemunho já não determina mais os problemas do que seria uma dicotomia entre o real e o simulacro. O que a ficção do cinema durante o século 20 imaginava como distopia de uma sociedade controlada por uma instância de poder invisível – como na série “Doutor Mabuse”, de Fritz Lang – ganhou uma dimensão inimaginável.
Ao longo da história do cinema, as tecnologias da imagem e do som conceberam o olhar como um poder perverso de intervenção e controle sobre o real, como se vê nos suspenses de fundo político que marcam toda a ficção paranoica pós-Watergate (que gerou thrillers como o já mencionado "A conversação" ou ainda "Os três dias do condor" e "O efeito Paralax", entre tantos outros), ou nos estudos sobre as imagens como documentos da história (a obra do alemão Harun Farocki, por exemplo), e uma certa pulsão escópica que apaga a linha tênue entre vigilância e voyeurismo (como em todo o cinema de Hitchcock). Ou seja: o cinema testemunhou e tomou parte da construção de uma tríade em que imagem, controle e poder se tornaram elementos estruturais na sociedade da imagem e na "sociedades das telas", como definia o crítico Serge Daney.
O próprio imaginário da grande indústria de Hollywood nas últimas duas décadas e meia vê nos dispositivos de vigilância uma questão política central, como em "Inimigo do Estado" (1998), de Tony Scott, "O show de Truman" (1998), de Peter Weir, "Guerra sem cortes" (2007), de Brian De Palma, e "Snowden" (2016), de Oliver Stone. Filmes de terror têm sido especialmente exemplares na criação de uma fantasmagoria que atravessa nossa intimidade, como em "Amizade desfeita" (2014 e 2018), "Buscando..." (2018), "Cam" (2018) e "Host" (2020), todos se valendo do formato de desktop movies; ou na emergência de uma nova categoria de monstros, a dos monstros virais, como em "Pânico 4" (2011), de Wes Craven, um dos grandes filmes contemporâneos a perceber a anomalia cultural que se dá entre a vigilância e a indústria das imagens.
A utilização de dispositivos tecnológicos altamente sofisticados marca a estética e a narrativa desses filmes e de vários outros que refletem sobre seus efeitos nocivos ou excludentes, apropriando-se das próprias imagens geradas por essas tecnologias com um efeito crítico.
* Francis Vogner dos Reis, Marcelo Miranda e Pedro Butcher são os curadores da 15ª edição da Mostra CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte