“Pessoas boas às vezes aparecem, Alelí sabia. Assim. Do vaivém das coisas do mundo. Mesmo em ambientes pouco propícios, aparecem. Mesmo quando tudo desmorona em volta, aparecem.” Esse trecho, compartilhado em uma rede social, foi meu primeiro contato com “Maria Altamira”. Fui pega de surpresa. Era 1º de janeiro, Dia Mundial da Paz, e a pessoa que publicou não conhecia a origem, mas senti que precisava ler essa história que desabrocha em uma frase tão bonita. Descobri, assim, o livro.
Na aldeia do povo Juruna conhece Manuel, com quem acaba tendo uma filha, Maria Altamira, mesmo nome que dá nome ao livro, da escritora goiana Maria José Silveira. Achando que tem uma maldição, Alelí entrega sua filha a Mãe Chica, que cria a garota junto aos filhos biológicos. Anos se passam e Maria também tem sua vida modificada por outra tragédia ambiental, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
Em conversa com o
Estado de Minas
para o
podcast
Pensar
, Maria José Silveira contou que cruzou com a história por conta de manifestações na Avenida Paulista, em São Paulo. Do apartamento onde morava, ela escutava os protestos, incluídos na narrativa. Outras temáticas que acompanham a vida de uma mulher também estão na obra, como o medo do estupro e como estamos à merçê desse perigo mesmo quando menos imaginamos.
Confira abaixo a íntegra da entrevista com a autora do livro “Maria Altamira”
O que motivou você a escrever o livro?
“Maria Altamira” nasceu de uma grande inquietação com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Na época, eu morava em um apartamento de onde podia ver as manifestações e um certo momento começaram a chamar atenção do país para esse problema. Eu me interessei, procurei ler a respeito e decidi que escreveria sobre a espantosa situação que ameaçava aquela região do Xingu, no Norte do Pará, onde estava sendo construída a Usina, expulsando os beradeiros das suas moradas, degradando o meio ambiente e alterando o fluxo do rio que era vida dos grupos indígenas do entorno.
A partir dessa vontade, aí me veio à cabeça a catástrofe que ocorreu no Peru em 1970. Morei no Peru por alguns anos e esse episódio sempre pareceu algo quase impensável por ter sido uma sombra de crueldade. Toda uma cidade soterrada provocada pelo pico mais alto da região, Yungay, que despencou sobre ela. Pensei que essas duas catástrofes, uma provocada pela natureza e a outra pela mão do homem, tinham resultados, pelo sofrimento que provocaram, de certo modo se assemelhavam. E resolvi colocar as duas lado a lado, com as protagonistas: a mãe peruana e Maria Altamira, a filha brasileira.
O livro aborda muitas questões sociais. Quais foram os desafios de escrever um livro com essa temática em uma sociedade tão polarizada?
Foram muitos. Primeiro, procurar entender. Entender esses desafios. E muita coisa no Brasil hoje está muito difícil de ser entendida. Mas o principal deles talvez seja o perigo de cair em uma escrita panfletária. É preciso muito cuidado. Procurar as palavras certas e encontrar uma maneira literária de expressar a indignação. Ter bem claro que muitos verão seu livro, pois para isso ele foi escrito. E o que você deseja não é escoltá-los e, sim, pegá-los pela mão e levá-los até o final.
“Maria Altamira” é um romance fictício, mas as dores dos personagens e os eventos que são planos de fundo são reais. Como foi o processo de imersão na cultura dos povos indígenas e das comunidades da cidade de Altamira?
Foi algo muito especial, um maravilhamento que me trouxe a escrita desse livro. O Instituto Socioambiental ISA, que faz um trabalho extraordinário na região de Altamira, tinha um programa de levar interessados em conhecer o entorno da Usina de Belo Monte, o Rio Xingu e os territórios indígenas. Fui com eles conhecer Volta Grande do Xingu e um pouco de seus habitantes, suas dores e as ameaças que pesam sobre eles. E o que mais me comoveu foi sua capacidade de luta de enfrentamento do que estava acontecendo com eles. Voltei encantada com sua força, vitalidade e alegria. É realmente um povo que não se deixa bater, que enfrenta de maneira eficaz e bonita os que pretendem invadir seus territórios, degradar seu rio e seu meio ambiente. E, que, apesar dos pesares, tem obtido vitórias extraordinárias contra um inimigo tão poderoso, como é a usina hidrelétrica de Belo Monte.
Como foi esse processo criativo para unir a construção de Belo Monte, o terremoto no Peru e a luta do MST? Como essas histórias conversam entre si?
A condição humana é o que liga essas histórias. O aluvião que cobriu a cidade de Yungay foi provocado pela natureza, mas a barragem de Belo Monte, que transformou o rio em um grande lago e agora controla sazonalmente suas águas, é uma obra feita pelo homem. Nos dois casos vemos as marcas deixadas por desastres naturais e sociais, que dispõem da vida humana como se nada fossem. Como se nada significassem diante da grandeza dos Andes ou de megaprojetos decididos como se o rio e as pessoas que vivem no entorno fossem meros números de uma conta. Cujo objetivo é dar lucro. Essas duas catástrofes provocaram confusão social cujo resultado foi o grande sofrimento das populações atingidas.
"Minha reação foi dar às minhas protagonistas uma saída, uma perspectiva que transformasse de alguma maneira a fraqueza física que sentiam em uma força moral, em resistência. Era disso que elas precisavam e é disso que precisamos"
Já o movimento dos Sem Teto é o movimento que nasce da resistência contra as condições desumanas de moradia das grandes cidades, condições também criadas pela mão humana e sua indiferença. É uma experiência de luta muito importante para minha protagonista, a que dá nome ao livro, Maria Altamira.
De que forma as suas vivências e percepções dessa América Latina contemporânea influenciaram e mudaram a forma de escrever “Maria Altamira”?
Uma grande parte do meu romance nasceu disso. Se eu e meu marido não tivéssemos morado do Peru, onde estudamos antropologia, se não tivéssemos tido uma colega de curso que perdeu toda sua família nessa catástrofe. E se não tivéssemos por acaso, não por uma escolha, passado pela cidade soterrada de Yungay e eu não tivesse visto com meus olhos as ruínas da cidade e sentido com meus pés que caminhavam sobre elas, “Maria Altamira”, com certeza, seria um livro diferente.
Um dos objetivos do livro era criar um tipo de compreensão dos leitores sobre o que está ocorrendo com ribeirinhos e indígenas às margens do Xingu?
Não sei se podemos falar de objetivos em um romance, mas talvez sim. A questão dos danos que Belo Monte causou, e ainda causa, tanto no meio ambiente como no impacto direto à vida dos ribeirinhos e indígenas. Foi o que me fez mergulhar nessa história. Estava claro para mim que eu queria mostrar um pouco do que acontecia ali. Mas a história propriamente dita, a trama, os detalhes, as circunstâncias e as paixões vieram apenas à medida que comecei escrever.
A força do livro reside nos diálogos. Como foi feita a construção do enredo?
Acho que escrevo de maneira muito intuitiva. Tenho uma ideia geral do livro, tenho um quadro com a pesquisa que faço e sei o que pretendo dizer, mas os caminhos que vão se abrindo com o decorrer da escrita vão aparecendo à medida que escrevo. E o enredo, com seus detalhes, vai se montando e as palavras aparecendo. As palavras com trama, com suas minúcias, vem do processo mesmo descrito e dá vontade de escrever algo que possa expressar o que penso e seja capaz de fazer o leitor vir comigo.
A violência contra a mulher permeia as vidas de Alelí e Maria Altamira. Como tratar de assuntos tão difíceis e que moldam a personalidade das personagens sem que se tornem a vida delas?
Essas violências contra mulher são devastadoras e parecem se multiplicar a cada dia e entraram no meu romance como desenrolar natural da história que eu estava contando. Sabemos que em muitíssimos lugares a mulher é vítima de feminicídio e estupro. Minha reação foi dar às minhas protagonistas uma saída, uma perspectiva que transformasse de alguma maneira a fraqueza física que sentiam em uma força moral, em resistência. Era disso que elas precisavam e é disso que precisamos, eu acho.
Qual foi a passagem do livro mais desafiadora de escrever e por quê?
Penso muito sobre isso e acho que a linguagem dos indígenas ribeirinhos foi o que me apresentou maior desafio. Os indígenas sobre os quais eu falo, os jurunas e yudja, têm uma longa experiência de vida com os brancos da região da cidade de Altamira. Há uma interação muito grande entre eles, o que levou a uma fala muito parecida. Vista pelo lado das regras gramaticais poderia ser considerada como o que se convencionou chamar de “linguagem errada”, mas a maneira como entendo essa questão me faz adotar o ponto de vista de que a linguagem falada é tão certa para comunidade que a usa como a nossa é correta para nós.
"Nos dois casos vemos as marcas deixadas por desastres naturais e sociais, que dispõem da vida humana como se nada fossem. Como se nada significassem diante da grandeza dos Andes ou de megaprojetos decididos como se o rio e as pessoas que vivem no entorno fossem meros números de uma conta"
O desafio, portanto, seria tratar dessa linguagem como uma linguagem diferente, uma linguagem própria de uma outra região, mas essa linguagem oral, transcrita como é, não funciona muito bem, pode espantar o leitor. O que pensei, então, foi deixar apenas um ruído da linguagem falada, tirando a flexão do plural. Fiz a indicação do plural com os artigos sem flexionar os substantivos adjetivos. Com isso espero ter passado esses ruídos sem passar uma reação forte no leitor, que tem a ver com o português não convencional.
E tem duas outras coisas interessantes ali para um linguista estudar: as duas derivadas da luta que os juruna têm enfrentado contra a usina. Uma é a utilização natural de vários termos técnicos que eles usam porque veem aprendendo com as pessoas que apoiam suas lutas. Palavras como intercâmbio, pesquisa socioambiental, doenças psicossociais, termos assim. A outra é a necessidade que sentiram, nesse enfrentamento, de reaprender sua própria língua e cultura, que em determinado momento haviam sido deixadas um pouco deixadas de lado. A luta trouxe a eles a necessidade de reforçar sua ancestralidade e identidade indígenas. Eu acho isso muito bonito.