Professor emérito da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jacyntho Lins Brandão é um profundo conhecedor da poesia clássica. Estudioso da literatura antiga, a erudição marca a escrita do pesquisador, romancista e tradutor. Um dos nomes mais respeitados do Brasil no campo literário, aos 69 anos, ele se permitiu experimentar. Estreia na poesia com “Mais (um) nada” (Editora Quixote+Do), obra lançada em live da editora na segunda-feira (20/09), com a mediação do filósofo Eduardo Dolabela e participação do presidente da Academia Mineira de Letras, Rogério Tavares. Entre as virtudes do livro, como o apuro na forma e riqueza de ritmo, salta aos olhos a prova de amor à família que a obra reflete.
Jacyntho conta que prefere as formas fixas, como os sonetos, mas não temeu se arriscar nos versos livres. “A diversidade é uma virtude. A diversidade de temas e a diversidade de formas. Não separo tema da forma. A forma constrói o tema. Para expressão de cada ideia, cada afeto, é preciso buscar a forma adequada”, disse o autor em entrevista ao Pensar.
Embora escrito em 2019, o livro parece ter sido preparado para o momento de perda coletiva vivido pelo Brasil e o mundo. Nas palavras do autor, “um livro grave. Ele tem viés da percepção do mundo, que é pessimista”. Jacyntho segue tradição desde os babilônios, passando pelos livros sapienciais e os clássicos gregos. “O livro traz reflexão que se aplica a este momento de perda, reflexão sobre o nada, a efemeridade das coisas humanas. Se isso colabora para dar perspectiva para o leitor, meu objetivo de escrever está bem realizado”, afirma.
Para o filósofo Eduardo Dolabela, leitor dos textos acadêmicos de Jacyntho, com a poesia, o professor desce ao submundo e, então, retorna, com sabedoria e amor, para partilhar a experiência. “‘Mais (um) nada’ é uma jornada poético-existencial que, de um ‘mergulho na obscuridade’, culmina em excelsa celebração da vida: ‘Colhe teu dia: vai: lança-te: voa’. Renovando, com humor e fina ironia, a tradição imemorial dos deuses, heróis e poetas ‘xamãs’, como Ishtar, Ulisses, Orfeu, Jesus, Dante, Baudelaire”, afirma Eduardo.
O título da obra dialoga com verso de Cecília Meireles e com uma observação feita pela poeta Ana Martins Marques, que escreve uma das ore- lhas. Está dividido em sete partes. A parte “Soneto partido” é dedicada ao filho Pedro Guadalupe, que morreu muito jovem, vítima de acidente automobilístico quando voltava de uma viagem de trabalho com o jornalista Ronaldo Lenoir, que também faleceu. Nesse poema, Jacyntho expõe a vertigem que é perder um filho: “sem mar, me afogo no salgado/sem pé, sem fé, não tenho engenho ou arte”.
A parte “Sete sonetos sobre (0) nada” ele dedica ao filho Bernardo, também poeta. Os poemas de “Topografias” são dedicados ao filho Fernando, que é físico. Também escreve poemas para a mu- lher, a filósofa Magda Guadalupe, em “Co- nhecete*atimesmo”.
A escrita de Jacyntho está ligada ao trabalho de professor e pesquisador, que atuou na carreira acadêmica durante 41 anos, escrevendo ensaios e fazendo traduções da literatura grega. Ele reco- nhece que, nessas quatro décadas de UFMG, dedicou pouco tempo para a ficção. “De dez em dez anos, publiquei algo de ficção. Agora, depois de aposentado, tenho dedicado mais tempo para escrever literatura”, afirma.
A poesia surge como experiência inédita. “É sempre bom ter coisas novas para fazer. A linguagem da poesia é bem diferente da experiência em prosa, mesmo a ficcional, pela necessidade, concisão de achar a palavra certa para cada ponto que está sendo escrito. A palavra certa do que se quer dizer, pensando, inclusive, no impacto que isso terá no leitor”, diz. Jacyntho destaca o papel dos leitores para completar o sentido dos versos. “A poesia é mais precisa, mas é mais aberta. Ela deixa que a obra faça sentido de um modo mais diversificado relacionado com a evidência e expe- riência de quem lê.”
“Mais (um) nada”
• Jacyntho Lins Brandão
• Quixote DO
• 88 páginas
• R$ 30
Poemas selecionados
Proêmio
Sempre pensei poesia
Mas nunca versos escrevi:
Aquilo da coisa fria
Que baixa, noite do dia
Este dia eu já perdi
Sempre pensei poesia
Mas nunca quase escrevi:
Minha vida é incompleta
Momento algum subsiste
Pra que ser alegre ou triste?
Sem metro haver que conserte
Quem somente não é poeta
Sempre pensei poesia
Escrevê-la pouco quis
Tristeza, gáudio se havia
Disso escapei por um triz
Escrevo não, sendo contente
Escrevo não, quando arrasado
Escrevo não, conscientemente
A quem diz: minto, digo: mente
Pois só escrevo atrasado
Hoje quero é mais mudar-me
E vou fazendo este tanto
Sem plano, nenhum alarme
Sem saber fazer portanto
Desfazer-me a vida veio
Sem alarde, desencanto
Fico eu partido ao meio
Cada metade em mim arde
Quando baixa a coisa fria
Dia, tarde, noite escura
Sem achados, só procura
Incompleta a vida fia
E só poesia me resta
E só poesia me apresta
E só poesia me atesta
Só poesia me molesta
Só poesia
Sete sonetos sobre (o) nada
III
aos trinta comecei este poema
pois muito e mais dois tantos sim queria
falar da experiência que vivia
como se experiência já houvera
aos sessenta revi o meu poema
pois algo e pouco mais então havia
do tempo, a dizer, que transcorria
posto pra mim em sua face austera
aos noventa desfio só lembranças
farrapos sem memória em meu poema
de quem pouco a dizer se afiança
e quando aos cento e vinte enfim me alcança
não ter nada a dizer que valha a pena
conquisto a bem buscada aventurança
Soneto part’ido
Ao Pedro
aquele que partiu e que me parte
a dia a dia: vou despedaçado
sem mar, me afogo a seco no salgado
sem pé, sem fé, não tenho engenho ou arte
que caminho te tem arrebatado?
caminho em que nada se comparte
à lua, ou a teu sol, vênus ou marte
à terra, a fundo, a mundo, a nada, a fado
lembranças só te não farão presente
nem te pensar é coisa que me farte
estou aqui e lido co’o ausente
só me resta fazer a minha parte:
desejo como só quem perde sente
e a ti partido só me resta amar-te
Marca d’água
Das marcas de nascença que carrego
– Uma mancha no dorso ninguém vê
Um nariz adunco que –
Mais dói a marca d’água que nesta alma
Que não sei quê
Das marcas de nascença que me marcam
A mais funda eu sei que desconheço
Aquela que me vem desde o começo
De não sei quando
Pra mim quando nem mesmo quando havia
Nem fim, nem começo e o que há no meio
Essa marca da falta que me veio
Marcou-me onde
Falta de quê, quando e o que se esconde
Falta por que meu corpo não responde
Falta de mim, ardência, falta expressa
Não sei por quê
Das marcas de nascença em mim impressas
Cabeça esguia, mãos de moça – é o que pergunto –
Mais o nariz adunco – do conjunto
Que me marca
A marca de nascença que me abarca
Pura falta pra mim é uma sentença
Falta pura de que simples presença
Já me encalça
O desejo de viver
Antibandeira
O teu seio que em minha mão
esteve nunca, o meu poema
trunca! não há Platão que o diga,
de modo que se o siga:
a não ideia do seio de ninguém.