''No aeroporto o menino perguntou:
– E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
– E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de
poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.''
Assim, Manoel de Barros, um dos maiores poetas brasileiros e ganhador de 13 prêmios literários, inclusive dois Jabutis – o mais importante do país –, estreou na literatura infantil, já na curva dos 83 anos, quando fez pular pra fora de suas memórias, para deleite dos leitores já encantados com seus (uni)versos, o menino das ''peraltagens'' em seu mundo pantaneiro. Em 1999, lançou ''Exercícios de ser criança'', que acaba de voltar ao mercado pela Companhia das Letrinhas. A obra contém duas histórias-poemas de elevada sensibilidade.
A primeira é ''O menino que carregava água na peneira'', que "quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos" e "até fez uma pedra dar flor". E, por essas e outras grandezas, ouviu da mãe: ''Meu filho você vai ser poeta. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos''. A outra é ''A menina avoada'', que monta num carro de bois imaginários atrelados num caixote e duas rodas de lata de goiabada, feito e puxado pelo irmão, e naufraga num rio. E só não morre afogada porque o rio também é inventado. As fantasias literárias de Manoel de Barros são enriquecidas nessa nova edição pelas belas ilustrações de Fernanda Massotti e Kammal João.
A primeira é ''O menino que carregava água na peneira'', que "quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos" e "até fez uma pedra dar flor". E, por essas e outras grandezas, ouviu da mãe: ''Meu filho você vai ser poeta. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos''. A outra é ''A menina avoada'', que monta num carro de bois imaginários atrelados num caixote e duas rodas de lata de goiabada, feito e puxado pelo irmão, e naufraga num rio. E só não morre afogada porque o rio também é inventado. As fantasias literárias de Manoel de Barros são enriquecidas nessa nova edição pelas belas ilustrações de Fernanda Massotti e Kammal João.
Em vez de responder a cada uma das perguntas que recebeu sobre o livro na época, Manoel de Barros se manifestou com texto único, incluído na nova edição de ''Exercícios de ser poeta'', revelando a leveza de sua alma poética. Diz ele: “Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança, eu deveria pular o muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem, eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo de milho era boi. (…) Precisei de fazer estes ‘Exercícios de ser criança’ porque só tenho oitenta anos e muita infância. Sou agora manobreiro de palavras. A palavra está me dando o peralta que não fui''.
A partir de então, Manoel de Barros lançou outras obras infantis e espalhou versos literalmente ao vento que conquistaram leitores mundo afora, até sua partida deste mundo, em 13 de novembro de 2014, pouco mais de um mês antes de completar 98 anos. Nasceu em Cuiabá, em 19 de dezembro de 1916, e lançou sua primeira obra, ''Poemas concebidos sem pecado'', em 1937. Passou a infância na região pantaneira, viveu no Rio de Janeiro e no exterior, voltou ao país, casou-se, teve três filhos – perdeu dois em vida – e viveu até o fim em sua fazenda no Pantanal, em Campo Grande (MS), onde a exuberância da natureza alimentou sua obra, das miudezas de uma formiga à grandeza das matas.
Manoel de Barros é modernista da chamada “Geração de 45’’. Ler, ou melhor, sentir seus versos, transcende o mero olhar, nos torna leves, quase flutuantes, leva a uma comunhão com a natureza, faz os mais velhos reencontrá-la e os mais jovens, sugados pela tecnologia, descobri-la. Um lirismo que diminui o peso e as dores do mundo sobre nossos ombros. Sua poesia espontânea e perene revoluciona a língua com palavras inventadas, que, como ele mesmo diz, perturbam ''os sentidos normais da fala'', são ''palavras abençoadas pela inocência''. São versos transgressores dos sentidos quando diz que ''escuta a cor dos passarinhos'', uma inocência arrebatadora e surreal sobre o chão firme. Seu mundo encantado lembra o mineiro João Guimarães Rosa (1908-1968), outro grande artífice da língua, mas com o diferencial de manter sempre viva a pureza da criança escondida dentro do adulto.
E por falar em passarinho, em ''Menino do mato'' ele ensina: ''A maneira de dar canto às palavras o menino aprendeu com os passarinhos”. Essa lindeza poética e filosófica nos remete a outro grande poeta, o gaúcho Mário Quintana (1906-1994), e seu ''Poeminho do contra'', sempre lembrado diante de adversidades: “Todos esses que aí estão atravancando meu caminho. Eles passarão... Eu passarinho!''. E como não se encantar e não querer ler o Manoel de Barros que decreta: “Poesia é voar fora da asa’’. Ele disse um dia que gostaria de ser lembrado como ‘’um ser abençoado pela inocência e que tentou mudar a feição da poesia’’. Conseguiu.
OBRAS DE MANOEL DE BARROS
Poemas concebidos sem pecado (1937)
Face imóvel (1942)
Poesias (1956)
Compêndio para uso dos pássaros (1961)
Gramática expositiva do chão (1969)
Matéria de poesia (1974)
Arranjos para assobio (1982)
Livro de pré-coisas (1985)
O guardador de águas (1989) – Prêmio Jabuti
Concerto a céu aberto para solos de ave (1991)
O livro das ignorãças (1993)
Livro sobre nada (1996)
Retrato do artista quando coisa (1998)
Ensaios fotográficos (2000)
Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001)
Poemas rupestres (2004)
Menino do mato (2010)
Escritos em verbal de ave (2011)
Memórias inventadas
A infância (2003)
A segunda infância (2006)
A terceira infância (2008)
Livros infantis
Exercícios de ser criança (1999)
O fazedor de amanhecer (2001) – Prêmio Jabuti
Cantigas por um passarinho à toa (2003)
Poeminha em Língua de brincar (2007)
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA
• Manoel de Barros
• Ilustrações de Fernanda Massotti e Kammal João
• Companhia das Letrinhas
• 48 páginas
• R$ 54,90
“Cresci brincando no chão”
“Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança, eu deveria pular o muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo de milho era boi. Eu era um serzinho mal resolvido igual um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser crianças a gente faz comunhão: De um orvalho e sua aranha. De uma tarde e suas garças. De um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu hoje não pulo sequer uma pedra, pra falar em peraltagem, mas faço pior com as palavras. Precisei de fazer estes ‘Exercícios de ser criança’ porque só tenho oitenta anos e muita infância. Sou agora um manobreiro de palavras. A palavra está me dando o peralta que não fui''.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser crianças a gente faz comunhão: De um orvalho e sua aranha. De uma tarde e suas garças. De um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu hoje não pulo sequer uma pedra, pra falar em peraltagem, mas faço pior com as palavras. Precisei de fazer estes ‘Exercícios de ser criança’ porque só tenho oitenta anos e muita infância. Sou agora um manobreiro de palavras. A palavra está me dando o peralta que não fui''.
• Texto escrito por Manoel de Barros sobre seu primeiro livro infantil publicado na nova edição de ''Exercícios de ser criança'
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O menino que carregava
água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse
que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
com o tempo descobriu que escrever
seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.
Caderno de aprendiz
Eu queria ser banhado por um rio
como um sítio é.
Como as árvores são.
Como as pedras são.
Eu fosse inventado de ter uma garça
e outros pássaros em minhas árvores.
Eu fosse inventado como as pedrinhas
e as rãs em minhas areias.
Eu escorresse desembestado sobre as grotas
e pelos cerrados como só rios.
Sem conhecer nem os rumos como os andarilhos.
Livre, livre é quem não tem rumo.
• Esse é um dos 36 poemas de ''Caderno de aprendiz'',
primeira parte do livro ''O menino do mato''
Retrato do artista
quando coisa
A maior riqueza do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou — eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu preciso ser
Outros. Eu penso renovar
o homem usando borboletas.
• Poema do livro homônimo