Assim como nada fica estático na natureza, tudo se move, tudo se transforma – e por isso, como disse Heráclito de Éfeso, uma mesma pessoa não pode entrar duas vezes no mesmo rio, o mesmo princípio intuitivo está no cerne de toda estratégia: um processo de transformação que, ao ser executado, gera mudanças em quem o conduz, no meio ambiente e no contexto da competição, o que provoca mudanças nas próprias aspirações que motivaram a estratégia para a transformação das aspirações em capacidades.
Tal é a definição de Silvio Meira, doutor em ciência da computação, professor emérito do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco, membro dos conselhos de grandes organizações como a MRV, Magalu, CI&T, BBCE e Tempest, e fundador e presidente do Conselho Administrativo da Porto Digital. Considerado um dos expoentes no país na inovação e da tecnologia da informação, Silvio Meira acaba de lançar o livro “O que é estratégia?” (Editora Paradoxum), tentativa de sistematizar esse processo de transformação, que a ele se apresenta como um desafio permanente em todas as tentativas de intervir em sistemas das organizações a que se vincula.
“Estratégia é um processo de transformação de aspiração em capacidades. Essa para mim é a minha definição mais ou menos definitiva”, diz ele. E acrescenta: “Uma estratégia é uma coisa dinâmica e transformadora de si mesma”, de tal forma que as organizações de alta performance no mercado são levadas a hierarquias muito mais planas, em formato de redes, delegando para as bordas – ou seja, àqueles colaboradores na ponta – boa parte da tomada de decisões. “Se você não distribuir a capacidade de tomada de decisão, se você não ponderar o processo de decisão nas bordas, você vai passar a ter uma ineficiência estrutural comprometendo a performance da organização”, afirma ele.
O novo livro de Silvio Meira sobre o que entende por estratégia faz uma homenagem ao centenário do tratado lógico e filosófico do austríaco Ludwig Wittgenstein (“Tractatus logico-philosophicus”, Leipzig, 1921). É assim que, da mesma forma que o austríaco, já no primeiro capítulo traz toda a argumentação sob a forma de aforismos, numerados e hierárquicos do tratado. Inicia-se: “Estratégia é o processo de transformação de aspirações em capacidades”. E conclui, de forma circular: “O contexto afeta e muitas vezes define a estratégia, quando não a (in)viabiliza”. Nas palavras do autor: “O livro foi escrito de tal forma que dá para você combinar aforismos extraídos de partes diferentes e recombiná-los para atender a uma necessidade sua, do seu negócio. É também uma brincadeira combinatória”.
Qual foi a sua estratégia para escrever “O que é estratégia”?
Este livro é o resultado de muito tempo de reflexão. Em toda a minha vida, me envolvi em construir instituições acadêmicas, instituições de inovação, sistemas locais de inovação, como é o caso do Porto Digital, aqui no Recife, participei da criação de startups, integro o Conselho de Administração de muitas empresas de grande porte, como a MRV em Minas. E uma coisa, uma preocupação central, que passei a ter em minhas tentativas de intervir nos sistemas em que estou, para evoluir numa estratégia, era conseguir explicar para as pessoas o que é estratégia.
Na última década, temos publicados dezenas de milhares de livros sobre estratégia. Só entre 2010 e 2019, são mais de 30 mil títulos que tratam estratégia de uma forma ou de outra. Se apertar mais para uma certa área, a de planejamento estratégico, tem mil livros. Eu não li tudo isso, mas li muita coisa, participei de muitos debates, e vi a dificuldade fundamental que é definir o que é estratégia. Meu livro busca isso, não tem nenhum case, mas foi escrito no estilo do tratado lógico e filosófico do austríaco Ludwig Wittgenstein (“Tractatus logico-philosophicus”, Leipzig, 1921). Foi o primeiro livro que li para o meu doutorado, 60 anos depois de que foi publicado.
Eu pretendia escrever este ano sobre a estratégia, mas quando me dei conta do centenário do tratado, passei a fazê-lo na forma de aforismos, numerados e hierárquicos do tratado. Estratégia é um processo de transformação de aspiração em capacidades. Essa para mim é a minha definição mais ou menos definitiva. E o meu propósito foi explicá-la.
Na última década, temos publicados dezenas de milhares de livros sobre estratégia. Só entre 2010 e 2019, são mais de 30 mil títulos que tratam estratégia de uma forma ou de outra. Se apertar mais para uma certa área, a de planejamento estratégico, tem mil livros. Eu não li tudo isso, mas li muita coisa, participei de muitos debates, e vi a dificuldade fundamental que é definir o que é estratégia. Meu livro busca isso, não tem nenhum case, mas foi escrito no estilo do tratado lógico e filosófico do austríaco Ludwig Wittgenstein (“Tractatus logico-philosophicus”, Leipzig, 1921). Foi o primeiro livro que li para o meu doutorado, 60 anos depois de que foi publicado.
Eu pretendia escrever este ano sobre a estratégia, mas quando me dei conta do centenário do tratado, passei a fazê-lo na forma de aforismos, numerados e hierárquicos do tratado. Estratégia é um processo de transformação de aspiração em capacidades. Essa para mim é a minha definição mais ou menos definitiva. E o meu propósito foi explicá-la.
O ser humano é movido por desejos, interesses e intuitivamente traça as suas estratégias. O senhor provoca uma reflexão sobre a estratégia ou sobre a eficiência da estratégia?
Estou provocando as pessoas para elas refletirem se têm uma estratégia. Se pegarmos em 1961, John Kennedy proferiu discurso no Congresso americano dizendo que até o fim da década os Estados Unidos iriam levar e trazer um homem à Lua em segurança. Se você perguntar para as pessoas o que é essa frase, vão dizer que essa é a estratégia americana de exploração do espaço. Mas não é. Ela é uma aspiração. Ela não tem a explicitação das competências, das habilidades, dos recursos, de absolutamente nada.
A Nasa desenhou uma estratégia, inclusive para ir atrás dos recursos, criar as competências, habilidades tecnológicas, científicas, humanas. O problema fundamental é que se diz: a nossa estratégia é, por exemplo, ter 5% do mercado. Isso não é nem uma aspiração. Quando você coloca uma meta, está associando a meta a um planejamento dentro da estratégia. Você assume que a estratégia existe e aí você tem uma coisa num nível abaixo, que é um plano dentro da estratégia para chegar a 5% do mercado.
A Nasa desenhou uma estratégia, inclusive para ir atrás dos recursos, criar as competências, habilidades tecnológicas, científicas, humanas. O problema fundamental é que se diz: a nossa estratégia é, por exemplo, ter 5% do mercado. Isso não é nem uma aspiração. Quando você coloca uma meta, está associando a meta a um planejamento dentro da estratégia. Você assume que a estratégia existe e aí você tem uma coisa num nível abaixo, que é um plano dentro da estratégia para chegar a 5% do mercado.
Em sua proposta para a definição de estratégia, qual seria a aspiração nesse caso?
Na realidade, a sua aspiração é que você, por exemplo, deveria ter uma oferta desejável de pessoas naquele mercado. Porque você pode até criar competências para chegar a 5%, mas pode ser que a sua oferta atual seja completamente irrelevante naquele mercado. Eu então saio desse aforismo, em que digo alguma coisa e peço que as pessoas acreditem que ele é verdadeiro e representa algum retalho da realidade. Aí eu saio decupando todos os níveis o que são aspirações, o que são competências e habilidades, porque as aspirações precisam ser coerentes, o que é coerência.
Mostro que estratégias acontecem e são executadas dentro de sistemas e que certos sistemas mais complexos são feitos de outros sistemas, em arranjos conectados que são ecossistemas. E quando você faz uma estratégia, você impacta de uma forma transformadora, que pode ser de ruptura de um sistema em particular, mudando a configuração dele. E você tem de discutir o que é uma configuração do sistema. E você vai dessa frase de abertura e chega ao ponto final: estratégia é uma teoria para mudar um certo estado de coisas.
Toda teoria da mudança é uma estratégia, o que remete para o título do primeiro capítulo, tornando a leitura do livro circular. O livro foi escrito de tal forma que dá para você combinar aforismos extraídos de partes diferentes e recombiná-los para atender a uma necessidade sua, do seu negócio. É também uma brincadeira combinatória.
Mostro que estratégias acontecem e são executadas dentro de sistemas e que certos sistemas mais complexos são feitos de outros sistemas, em arranjos conectados que são ecossistemas. E quando você faz uma estratégia, você impacta de uma forma transformadora, que pode ser de ruptura de um sistema em particular, mudando a configuração dele. E você tem de discutir o que é uma configuração do sistema. E você vai dessa frase de abertura e chega ao ponto final: estratégia é uma teoria para mudar um certo estado de coisas.
Toda teoria da mudança é uma estratégia, o que remete para o título do primeiro capítulo, tornando a leitura do livro circular. O livro foi escrito de tal forma que dá para você combinar aforismos extraídos de partes diferentes e recombiná-los para atender a uma necessidade sua, do seu negócio. É também uma brincadeira combinatória.
Quais são os erros mais frequentes, mais comuns, que o senhor anota nas estratégias das empresas?
Há duas coisas muito comuns. A primeira é a necessidade de demandar sistematicamente atores externos para definir a organização, definir a estratégia da organização. Esse acho que é um problema estrutural. Você tem um negócio, você não sabe qual é a teoria atual do seu negócio, porque ele funciona dentro do contexto maior que é o mercado, você fica o tempo trazendo agentes externos para mexer na teoria da mudança do seu negócio e, consequentemente, mexer no seu negócio.
Esse processo de você não saber qual é a sua teoria, o que se está executando na prática, e trazer gente de fora para mudar a sua teoria, para mim é um erro fatal, pois quando você quer liderar em algum mercado, você não tem ninguém para copiar, você deveria saber qual é a sua teoria e como faz para evoluir. O processo de transformação de negócios é estratégico por definição: eu quero, eu tenho, uma aspiração futura para os meus negócios e quero criar competências e habilidades para dar conta dessa aspiração futura. Isso exige necessariamente que você tenha competência de desenhar, evoluir e acompanhar a estratégia dentro do seu negócio.
Esse processo de você não saber qual é a sua teoria, o que se está executando na prática, e trazer gente de fora para mudar a sua teoria, para mim é um erro fatal, pois quando você quer liderar em algum mercado, você não tem ninguém para copiar, você deveria saber qual é a sua teoria e como faz para evoluir. O processo de transformação de negócios é estratégico por definição: eu quero, eu tenho, uma aspiração futura para os meus negócios e quero criar competências e habilidades para dar conta dessa aspiração futura. Isso exige necessariamente que você tenha competência de desenhar, evoluir e acompanhar a estratégia dentro do seu negócio.
E qual é o segundo equívoco mais frequente que, em sua avaliação, ocorre nas organizações para definir as estratégias?
O segundo problema mais comum é que a gente, na maioria das empresas, continua desenhando estratégias como se o tempo fosse longo. Não há mais esse tempo. O tempo dos mercados, o tempo dos negócios, o tempo social entrou em colapso: o impacto das tecnologias de informação e comunicação nas mudanças dos mercados é tão grande que temos uma ruptura recorrente nos mercados. Havia um conjunto de coisas acontecendo, e passou a acontecer um outro conjunto de coisas. O conjunto de coisas que está acontecendo é diferente, mas não só isso, começou a mudar numa velocidade muito grande.
E aí o que acontece é que o processo de desenhar uma estratégia ou fazer um planejamento estratégico para um ano inteiro – e esperar que isso seja executado pela organização – é algo que deixou de fazer sentido há algum tempo. E há algo que acontece na prática: a reação da organização a um desenho estratégico que não corresponde ao que está acontecendo do ponto de vista de desafios ou de oportunidades no mercado agora. E dinamicamente, a organização começa a mudar organicamente a estratégia.
Ou seja, existe uma estratégia explicitada pelo CEO da organização ou pelo seu conselho, mas quem está na borda executando as performances e entrega valor para as empresas, ou executando políticas públicas que criam benefícios para a sociedade, está fazendo outra coisa totalmente diferente, porque descobriu que “a estratégia não funciona”. A cultura de negócios, em qualquer organização, é estratégia em execução. Cultura é uma estratégia em movimento.
E aí o que acontece é que o processo de desenhar uma estratégia ou fazer um planejamento estratégico para um ano inteiro – e esperar que isso seja executado pela organização – é algo que deixou de fazer sentido há algum tempo. E há algo que acontece na prática: a reação da organização a um desenho estratégico que não corresponde ao que está acontecendo do ponto de vista de desafios ou de oportunidades no mercado agora. E dinamicamente, a organização começa a mudar organicamente a estratégia.
Ou seja, existe uma estratégia explicitada pelo CEO da organização ou pelo seu conselho, mas quem está na borda executando as performances e entrega valor para as empresas, ou executando políticas públicas que criam benefícios para a sociedade, está fazendo outra coisa totalmente diferente, porque descobriu que “a estratégia não funciona”. A cultura de negócios, em qualquer organização, é estratégia em execução. Cultura é uma estratégia em movimento.
Para enfrentar esse colapso do tempo, esse impacto das tecnologias de informação e de comunicação nos mercados, as organizações estão mais horizontais?
As organizações de alta performance no mercado de hoje têm uma hierarquia muito mais plana. É mais uma rede do que uma pirâmide de tomada de decisão. A razão disso é que a capacidade de resposta a desafios passa a ser crítica para competir. Só para você ter ideia: foi publicado em setembro do ano passado um estudo sobre 10 mil projetos de desenvolvimento, aplicações e performances que dependem de sistemas digitais. Há projetos que usam todo tipo de tecnologia. Se o tempo de tomada de decisão for mais de uma hora, 68% dos projetos não servem.
Na prática, você perde sete em cada dez. Se você não distribuir a capacidade de tomada de decisão, se não ponderar o processo de decisão nas bordas, você vai passar a ter uma ineficiência estrutural comprometendo a performance da organização. Por isso que a gente diz que as organizações hierárquicas, instituições de governo, têm de se achatar e se transformar em rede. Essa sincronia é uma espécie de lapso de tempo. Chega todo mundo, sincroniza, decide, e depois separa de novo. Nem sempre borda, nem sempre centro. Mas a maior parte do tempo tem de ser borda tomando decisão.
Na prática, você perde sete em cada dez. Se você não distribuir a capacidade de tomada de decisão, se não ponderar o processo de decisão nas bordas, você vai passar a ter uma ineficiência estrutural comprometendo a performance da organização. Por isso que a gente diz que as organizações hierárquicas, instituições de governo, têm de se achatar e se transformar em rede. Essa sincronia é uma espécie de lapso de tempo. Chega todo mundo, sincroniza, decide, e depois separa de novo. Nem sempre borda, nem sempre centro. Mas a maior parte do tempo tem de ser borda tomando decisão.
E no plano da vida pessoal, como se aplica a sua reflexão sobre a estratégia?
Aplica-se também. Quando tentamos realizar nossas aspirações, nós nos mudamos, passamos a ter um pouco mais de certezas sobre algumas coisas e muito mais dúvidas sobre outras coisas. Vamos imaginar uma pessoa que não tem nada no começo. E ela cria aspirações de ter alguma coisa. Na hora em que as aspirações começam a se povoar de capacidades e habilidades, ela começa a descobrir que poderia querer outras coisas. E ao querer outras coisas ela vai modificando as aspirações. E essas aspirações mudadas, modificadas ou nada demandam novas competências ou habilidades. Você está permanentemente redescobrindo as suas aspirações e demandando novas competências e habilidades.
“O que é Estratégia?”
Silvio Meira
Editora Paradoxum
142 páginas
E-book: R$ 24,99 (Kindle)