No Arquivo Público Mineiro, entre documentos oficiais de Estado e ações de homens políticos, cientistas, escritores, a historiadora e escritora Eliane Marta Teixeira Lopes encontrou, por acaso, o nome de Constança Guimarães, jovem mineira de Ouro Preto, filha do escritor Bernardo Guimarães. No livro 'Constança - Cartas 1871-1888', pela Editora Quixote Do, que contém uma chave de leitura dos 'personagens' citados e fac-símile das cartas, Eliane desenvolve um ensaio sobre a época da jovem, final do século 19, a vida das mulheres, as 'inditosas', cuidando da casa, tendo filhos um atrás do outro, e sobre a 'peste branca' por meio de menções literárias como Rilke, Kafka, Maiakovski, ou personagens acometidos pela tuberculose.
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O que você pesquisava no Arquivo Público Mineiro?
Eu tinha um grupo de pesquisa formado por músicos e pesquisávamos justamente a formação dos músicos mineiros dos séculos 18 e 19. A questão era: como se dava essa formação – já que não havia escolas de música?. Qual o método de aprendizado? Eles olhavam arquivos em Itabirito, Ouro Preto e Mariana; eu, no Arquivo Público Mineiro.
Lá, entre pastas de documentos, vi uma intitulada “Constança Guimarães”. Isso me chamou muito a atenção porque em arquivos os nomes de mulheres são muito raros. Eles guardam principalmente os negócios de Estado, a história de homens probos. Foi então um acaso ter sido chamada pelo nome dessa jovem mulher.
E como foi este encontro?
Fiquei muito emocionada, muito excitada. Ali se abria um campo livre: ninguém tinha manuseado aquelas cartas! Peguei também a única foto dela, num vestido listrado, os cabelos cacheados.
Mas por que o interesse por Constança, que não tinha uma obra e nem sequer era uma mulher adulta?
Pela simples existência dela. Claro que, ao abrir a pasta, estava lá: filha do escritor Bernardo Guimarães, que frequentou a minha vida literária com livros como “A escrava Isaura”, “O elixir do Pajé” e outros. Essas informações deram relevo histórico às cartas – mas se fosse a filha de um zé-ninguém, para mim seria a mesma coisa. Constança era, naquele momento, uma quase adolescente, esquecida naquela pasta. Isso me lembra a filósofa Nicole Loraux, quando se debruça sobre as lápides de mulheres gregas, com epitáfios apenas de “boa mãe”, “esposa dedicada”.
Ou a descrição de Norberto Bobbio, quando narra a existência de uma irmãzinha que viveu apenas poucas horas. Ele escreve que ninguém saberá dela, a não ser por aquelas poucas linhas do seu texto. É o que Michel De Certeau chama de “túmulo escriturário” em “A escrita da história”, que releio sempre: ele estabelece essa relação entre história e morte. Tive uma turma na Faculdade de Educação que, num exercício, tinha várias opções de documentos para trabalhar. Ninguém quis ler “Cartas à minha mãe”, de um romano da Antiguidade. Quando perguntei o motivo do desinteresse, me responderam: ‘Ah, mãe não é mulher!’.
Ou a descrição de Norberto Bobbio, quando narra a existência de uma irmãzinha que viveu apenas poucas horas. Ele escreve que ninguém saberá dela, a não ser por aquelas poucas linhas do seu texto. É o que Michel De Certeau chama de “túmulo escriturário” em “A escrita da história”, que releio sempre: ele estabelece essa relação entre história e morte. Tive uma turma na Faculdade de Educação que, num exercício, tinha várias opções de documentos para trabalhar. Ninguém quis ler “Cartas à minha mãe”, de um romano da Antiguidade. Quando perguntei o motivo do desinteresse, me responderam: ‘Ah, mãe não é mulher!’.
Essa correspondência de Constância termina por iluminar, indiretamente, a figura do pai, o escritor Bernardo Guimarães.
Sem dúvida. Eu, como ela, como muitas mulheres, fomos escritoras precoces. Tenho, até hoje, um caderno de capa dura com “Pensamentos”, em letras douradas, um presente de aniversário da minha infância. E mais de 4 mil cartas recebidas ao longo da vida, inclusive uma de minha vó. Ela estava no Rio e adoeceu. A carta chegou depois de sua morte e se dirige ao meu avô: “Meu velho”, escreve ela, e vai perguntando, contando novidades, falando das visitas. As pessoas perderam a noção do que significava uma carta: a corporeidade da letra; o momento de ler. Perderam a ideia do significado de correspondência. Receber uma carta pode ser uma eventualidade. Mas manter uma correspondência não é gesto ocasional – é desejo, compromisso.
Como era o mundo de Constança nessas cartas?
É um mundo dentro e fora da família. Não fala dos irmãos. Mas fala da mãe e da irmã: “Isabel fica na janela para ver os rapazes que vão para Água Limpa”. Ou “minha mãe está tomando conta de tudo que faço, não deixa que eu me canse”. Mas, sobretudo, de casamentos, namoros e mortes. Os rapazes que menciona não são os que ela queria – para alguns, ela usa a expressão “verdadeiros vomitórios”. Escreve sobre as visitas que recebe. Fala também do mundo externo: da ida a um sarau, por exemplo. Ouro Preto tinha uma vida artística muito intensa. Na Casa da Ópera (hoje Teatro Municipal Casa da Ópera), se apresentavam companhias, concertos vindos do Rio de Janeiro. Constança lia. Nessas cartas, dá notícias de dois livros que tinha lido, de forma crítica. Não podemos esquecer que estudou na Escola Normal.
Constança também critica a vida no Rio de Janeiro...
Ela fala do calor, do suor e das “tagarelas fluminenses”. Constança tem um senso de humor, uma ironia muito fina, naturalmente aprendido no ambiente familiar, principalmente com o pai. Era uma vida modesta a da família de Bernardo Guimarães, mas rica intelectualmente (quando morreu, houve a ideia de se fazer uma campanha para ajudar a viúva e os filhos). Como eu disse, Ouro Preto era muito intelectualizada, havia a Escola de Minas, a obra de Aleijadinho nos adros das igrejas, nos altares. A cidade tinha os maiores compositores de música sacra. Para tudo se criava um te-déum. Para nascimentos, mortes. Houve até um te-déum da degola em homenagem a Tiradentes. Era esse o ambiente em que ela viveu. Como morreu em 1888, um mês depois do seu aniversário, não viu a chegada do trem, o calçamento, a instalação do esgoto, a luz elétrica.
E a lenda de que ela foi a musa, noiva de Alphonsus de Guimaraens?
Em um livro recentemente publicado, “A tulipa azul”, o neto do poeta, Afonso Henriques Neto, refere-se a ela dessa forma, a partir de poemas e documentos. Mas nada em suas cartas me autorizaria a tanto e eu quis respeitá-la.
No seu ensaio, você analisa a correspondência e o contexto dela, principalmente a questão da “peste branca”, a tuberculose.
A leitura dessas cartas se dá à sombra dessa morte anunciada para nós. Porque ela não sabe que está morrendo. Mas nós sabemos o tempo todo. A mesma sombra da morte que há em outros diários como os de Rilke. Há uma correspondência entre Maiakovski e Maria Tsvetaeva. Ele está se aproximando da morte, nós, leitores, sabemos – mas os dois, não. Isso em 1926. Ou o personagem Hans Castorp, de “A montanha mágica”. O tempo todo ele melhora, mas também o tempo todo piora.
Todos do mesmo mal, a “peste branca”. Você fala, no seu ensaio, que Constança “mais sofreu do que viveu”.
O sofrimento depende de onde a tuberculose ataca. Nos pulmões, as tosses intermitentes, ininterruptas, as golfadas de sangue. O tratamento doloroso que deixa bolhas nas costas dela. O remédio que é também veneno, o médico que cura, mas também anuncia a morte. A febre, sempre à mesma hora do dia. E o cansaço. Um cansaço que a impede até de escrever. As cartas são para ela uma forma de existência, porque sem a presença física, os outros se esquecem. O tédio. Há um momento em que ela escreve: “Tudo me aborrece, nada me contraria”. Ao final, até os pequenos prazeres são interditados, como Kafka, quando diz ter saudades de tomar uma cerveja gelada. No caso de Constança, de não poder comer mais jabuticabas. Há também uma ética, um gesto de compaixão em relação a essa jovem que viveu tão pouco. Trazê-la para perto de nós, para o convívio de outras pessoas.
Trechos
“Por mais que eu queira pensar que estás muito satisfeita ahi, não posso acreditar que uma mineira, livre filha das montanhas acostumada a respirar o ar livre de sua terra, possa viver suando 24 horas por dia e ouvindo as conversas estupidas e insensatas d’essas tagarellas fluminenses.”
“Se eu não enlouquecer é porque morrerei muito moça. Eu já tenho muito medo de estar doida.”
“Julinha, escrevo-te agora, não com o intento de approveitar esta nesga, mas sim para não esfriar a nossa correspondência, se não te escrevo mais é porque a luz se me somme dos olhos e a mão cançada desfallece.”
“(...) porque, bem sabes que quando se está aqui falla-se na gente, mas sem isso é o mesmo que não existir”.
“Cartas – Constança Guimarães (1871 – 1888)”
Organização de Eliane Marta Teixeira Lopes
Quixote DO Editora
144 páginas
R$ 50