a gente ia estudar de noite
já tava quase meia noite
e ficava até tarde
panhava uma cuia
botava em cima do candeeiro
pra luz num brilhar na casa toda
e pai não descobrir
a gente acordada
querosene cheira forte
pai falava
vai dormir, meninas!
mas a gente queria ficar era estudando
quando era noite de lua clara
a gente ia lá pro quintal
acordava de madrugada
e ia estudar do lado de fora
com a luz da lua
tinha coroação no mês de maio
as menina pequena vestia de anjo e as maiores vestia de virgem
todas de vestido branco com coroinha branca
a diferença era que os anjinho botava asinha de pena e as virgem não
as virgem era só o vestido branco e a coroinha na cabeça
eu já fiz isso tudo
eu já fui anjo
eu já fui virgem
*
fica meses sem chuva
primeiro o pasto seca
o rio já quase nem aparece
é só um filetinho de água
então os bicho começa morrer
bezerro boi vaca
os urubu voando pra todo lado
a gente não pode fazer muita coisa
fazia era novena pra chover
de ano em ano
fazia novena pra chover
é seca é no final do ano
dezembro novembro
por aí na hora que começa o sol
durante nove dias
o povo rezava o terço
cantava assim
ó que nuvem tão bonita lá no céu
dá chuva, senhor, na terra
piedade, deus, piedade
dá chuva, senhor, na terra
e tinha outros cânticos
que a gente cantava
ia lá no rio
pegava água na lata
pegava pedra do leito do rio
ia embora lá no cruzeiro lá no alto do morro
e funciona
quando termina a novena
chove
todos os dias vai lá no rio
busca água
pega pedra
e vai embora
nove dias
aí chove
o povo falava que eu era a mulher mais bonita de Crisólita
eu tinha as medidas de misse
o contorno de busto de misse
a cintura de misse
quadril de misse
olho verde
magrinha
mas pra ser misse
eu tinha que ter saído de Crisólita
então não fui
*
dia de são joão a cidade inteira fazia biscoito
pra comer com as pessoas que ia visitar
saía assim
mandava biscoito pra todo mundo
eu fazia mandava pra minha vizinha
minha vizinha fazia e mandava pra mim
dividia
as amigas falava
leva pra fulana
fazia um prato cheio e mandava
antigamente tinha esse negócio de dividir as coisas
“Histórias do tempo do amém”
Lívia Aguiar
Quintal Edições
265 páginas
R$ 45 (pré-venda com desconto até 22/10) no site quintaledicoes.com.br
Os poemas acima fazem parte do livro “Histórias do tempo do amém”, da jornalista, poeta e performer mineira Lívia Aguiar, com os causos da vida da avó da autora. “Tentei manter o ritmo da fala e do sotaque dela”, conta Lívia, referindo-se a Ana Angélica, atualmente com 85 anos, natural da cidade de Crisólita, na região do Vale do Mucuri. “Ao ler os poemas, cada pessoa é levada para a cidade do interior da própria infância”, acredita Lívia. A arte gráfica do livro é de Marlette Menezes, artista, ilustradora e designer nascida em Araxá. O lançamento de “Histórias do tempo do amém” será em 24/10, às 15h, no Espaço Comum Luiz Estrela (Rua Manaus, 348, Santa Efigênia, Belo Horizonte). O livro pode ser comprado também no site da Editora Quintal.