Diante do Colégio Santa Maria, Custódia viu seus dois filhos de mãozinhas dadas, uniforme impecável, atravessarem o largo portão da escola no primeiro dia de aula de suas vidas. Os dois caminharam como se carregassem um copo d’água prestes a transbordar. Passinhos curtos e cautelosos de quem adentra um mundo grandioso e desconhecido. Eram da mesma altura, tinham o mesmo corte de cabelo, o mesmo jeito de pisar com o lado de fora do pé, e o mesmo curativo no joelho direito, embora só um deles estivesse machucado de verdade.
Ao lado do portão, uma das mães tentava acalmar a filha que chorava descomedida, se agarrando em suas pernas como se adiante houvesse um pelotão de fuzilamento. Paciente, a mãe explicava à menininha perfumada que a escola era um lugar divertido, que ela faria novos amigos, que ao fim do dia viria buscá-la. Mas a garota não tinha ouvidos, só garganta, que naquele momento funcionava com todos os seus decibéis. Fosse um desenho animado, veríamos a goelinha vermelha vibrando e uma boca enorme engolindo a tela. A mãe era sincera em seus esforços de convencer a filha a entrar, mas havia também um orgulho de ser espetacularmente amada. De tempos em tempos, ela levantava os ombros e os olhos duvidosamente suplicantes e satisfeitos para os outros pais. Aquela cena interminável provocou em Custódia uma pontada de despeito. Seus filhos, mesmo que em passos cautelosos, nem olharam para trás.
Depois que eles entraram, ela ainda observou que alguns pais paravam seus carros tempo o suficiente apenas para que seus meninos, aqueles toquinhos de gente, saltassem. Depois arrancavam com o sentimento inconfesso de alívio, nem espe- ravam que os filhos cruzassem o portão da escola, confiantes de que eram capazes de dar dez passos sem supervisão. Custódia teve certeza de que jamais faria aquilo. Só arredaria o pé quando os meninos desaparecessem de seu campo visual por completo, coisa que, por sinal, a perturbava de uma maneira ainda desconhecida. Estava com o coração apertado. Sofria de medo, uma doença dramática em quem tem ima- ginação.
Com os primeiros passos, medo das quinas. Com as brisas, medo da febre. Com o sol, medo da desidratação. Com a comida, medo dos vômitos. Com o amor, medo da perda. Com a liberdade, medo das escolhas. Medo era o que não faltava a Custódia, e ela bem sabia que o pavor repentino é uma promessa de Deus aos desobedientes. Deus mandava, mas ela não perdoava Antunes. Ah, isso ela não podia. Não sabia. Não queria. Dominada por medos tragicamente imaginados, inflava sua coragem minguada disfarçando-a no abuso dos verbos imperativos, no queixo arrogante, na força descomunal com que tentava tirar da alegria dos filhos, os riscos.
De todos os seus medos, um tornou-se o medo-rei, soberano, mais poderoso que todos os outros: o medo do filho extraviado. Por causa desse medo, Custódia fez uma incontável quantidade de absurdos.
Mas sejamos justos: que mãe não padece desse calafrio?. Do filho que dá errado, que se perde ou é perdido. Isso é como um cordão umbilical, nenhuma mãe nasce sem ele. Só que em Custódia o estremecimento tinha agravantes. Mais do que o medo do filho extraviado, existia o medo de reconhecê-lo, de súbito, em um dos gêmeos. Em um gesto, em uma palavra, em um olhar… saber qual dos dois era Caim. Custódia era uma mãe atormentada por duas tragédias: a do filho que mata e a do filho que é morto.
Na companhia desse pavor, tampou os olhos com mãos firmes e, por não ver ninguém, achou que não seria vista. Como a brincadeira de cobrir o rostinho de um bebê com uma fralda, gritando entusiasmada ao retirá-la: “Achou!”.
Foi exatamente isso o que Custódia fez: reduziu o funcionamento do mundo ao seu ponto de vista. Um esforço descomunal para que os meninos se tornassem iguais, indistinguíveis, e assim se tornassem um só: Abel. As mesmas roupas, o mesmo quarto, os mesmos brinquedos compartilhados e o mesmo nome. Um nome “Abel” em dois corpinhos, que um dia seriam dois desejos e, depois disso… sabe-se lá quanta bagunça. Mas Custódia não antecipava o que viria pela frente… Urgente era o que estava diante dela: a lambança do bêbado insuportável que ela decidiu limpar pondo uma fraldinha nos olhos de todos! Seria razoável, contudo, não julgá-la apressadamente. Que mulher religiosa dormiria tranquila tendo um filho chamado Caim e outro Abel? Nem mesmo um ateu convicto passaria por debaixo dessa escada assobiando.
Abel e Abelzinho, por mais absurdo que pareça, foi a solução encontrada para os primeiros seis anos de vida dos gêmeos. Inverossímil como só a realidade sabe ser. Os dois aprenderam a negociar quem seria quem quando era necessário negociar. Sem disputas. Apenas a patética lógica na irracionalidade do medo. O que era de um era do outro, de maneira que os dois cresciam embolados, ora sendo Abel, ora sendo Abelzinho… Como se negar a existência de dois fizesse desaparecer o lugar onde, irremediavelmente, alguma coisa ia sendo diferente em cada um deles. Ninguém pode deter um corpo, nem sua plasticidade única. Mas Custódia achou que podia.
Naquele primeiro dia de aula, diante do portão do Colégio Santa Maria, ela carregava um peso no coração, não só por se separar pela primeira vez dos gêmeos, mas porque era o dia em que, oficialmente, Caim passaria a existir. Um pesadelo que Custódia pensara poder adiar para o resto da vida. A escola exigia a certidão de nascimento. Esse nome seria pronunciado na hora da chamada, duas letras depois de Abel. Seria gritado no recreio, seria registrado na capa dos cadernos, no topo do boletim. Seria entoado pelo professor diante da turma, em pianíssimo ou fortíssimo, conforme o elogio ou o puxão de orelha. Seria, sobretudo, cochichado, maliciosamente, com perplexidade, pelos corredores, pelos que não acreditariam em dois irmãos a quem os pais haviam tido a insensatez de dar os nomes de Caim e Abel. Uma vergonha eterna. O fato é que o truque de embolar os meninos, ao qual Custódia tanto se dedicara, acabava ali, naquele primeiro dia de aula.
Custódia reviveu a vontade arrebatadora de odiar Antunes. Que raiva ela sentia daquela estupidez.
— Você resolva isso — disse a ele, quebrando uma rotina de poucas palavras que mantinha a convivência entre os dois possível.
Trecho de “Véspera” (Record), terceiro romance de Carla Madeira, que chega às livrarias na próxima segunda-feira (25/10). Nascida em Belo Horizonte, em 1964, Carla publicou antes “Tudo é rio” (2014) e “A natureza da mordida” (2018). Formada em jornalismo e publicidade, foi professora de redação publicitária na UFMG e é sócia e diretora de criação da agência de comunicação Lápis Raro