O debate sobre a importância do jornalismo profissional ganhou muita relevância nos últimos anos. Continua necessário apurar, checar e informar de maneira isenta, mas também é preciso desconstruir falsas narrativas que, normalmente, chamam mais a atenção das pessoas e viralizam, colocando em risco a saúde pública, a democracia e as instituições. Em várias partes do mundo, jornalistas têm enfrentado dificuldades para exercer a profissão, sendo atacados através das redes sociais, ameaçados nas ruas e, no caso das mulheres, sofrido com o preconceito e o machismo. Na era da pós-verdade e das bolhas digitais, quem está disposto a investigar, contrapor e questionar pode ser visto erroneamente como um inimigo.
Um estudo publicado no primeiro semestre deste ano pelo International Center for Journalists (ICFJ) mostrou que a violência de gênero contra mulheres jornalistas tem acontecido por ameaças misóginas e assédio nas redes sociais. Além disso, aponta que a violação da privacidade e segurança digital aumenta os riscos físicos relacionados à violência sexual. Entre setembro e novembro de 2020, pesquisadores da Unesco fizeram mais de 900 entrevistas com profissionais de 125 países. A conclusão do relatório é preocupante: 73% foram vítimas de assédio on-line em algum momento da carreira por causa do trabalho.
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A história de Patrícia, como de tantos outros profissionais, ligou um sinal de alerta em várias partes do mundo, mas também gerou uma rede de apoio e reconhecimento. Vencedora do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa em 2019, Patrícia Campos Mello foi convidada para escrever o prefácio da nova edição de um livro que é considerado um clássico do jornalismo investigativo. Lançado pela Editora Fósforo, “Dez dias num hospício” conta a saga de Elizabeth Cochran Seaman (1864-1922), mais conhecida pelo pseudônimo de Nellie Bly, e mostra o sexismo, as dificuldades e angústias encaradas por uma grande jornalista no final do século 19, nos EUA.
Além de apresentar um tema extremamente atual, o livro destaca que o problema atravessa várias gerações. Afinal, as jornalistas sofrem com episódios de humilhação há mais de um século. Em 1887, Nellie Bly tinha apenas 23 anos quando foi autorizada pelo editor do jornal New York World, de Joseph Pulitzer, a se infiltrar como paciente em uma instituição psiquiátrica de Nova York e denunciar todas as suas irregularidades. Porém, aquela oportunidade não caiu do céu. A jovem teve que batalhar muito para provar sua competência, já que naquela época as mulheres não tinham direito ao voto e, em alguns estados americanos, também não podiam se divorciar ou mesmo usar calça comprida.
Bly, que foi escritora, inventora, empresária e filantropa, aliou perspicácia, sagacidade e inteligência para se tornar uma precursora da investigação jornalística. “Hoje, ocultar a própria identidade para fazer uma reportagem é considerado antiético em quase todos os veículos de mídia. Naquela altura, essa era uma das únicas maneiras de expor falhas graves existentes nas instituições. Além disso, era uma forma de as repórteres conseguirem cavar algum espaço no ambiente patriarcal das redações. Foi justamente estimulada por sua revolta contra a opressão das mulheres que Nellie Bly começou a escrever”, afirma Patrícia Campos Mello.
A norte-americana perdeu o pai muito cedo e viu sua mãe ser ameaçada pelo segundo marido, que era um alcoólatra violento. Aos 15 anos, estudava para ser professora e se indignava pelo fato de os meninos conseguirem tudo de maneira mais fácil. A gota d’água veio quando leu o artigo “Para que servem as meninas?”, publicado pelo Pittsburgh Dispatch. O conteúdo machista havia sido elaborado especialmente por causa da carta enviada por um pai preocupado porque suas cinco filhas ainda não tinham se casado. Mas a resposta não tardaria. Assinada por “Órfã solitária”, uma nova carta chegou à redação do jornal, agora questionando os motivos que levavam a sociedade a não dar às meninas as mesmas chances que dava aos meninos.
Aquela atitude seria a porta de entrada de Nellie Bly para o jornalismo. Aos 21 anos, foi contratada pelo Dispatch, mas teve passagem curta. Após nove meses, deixou o emprego porque só lhe davam assuntos “mais femininos”, como jardinagem, moda e sociedade. A jovem queria muito mais. Então, foi para o México com o objetivo de construir uma carreira de correspondente internacional. Seis meses depois, teve que ir embora do país porque escreveu reportagens críticas sobre a ditadura de Porfirio Díaz. Em meados de 1887, viajou para Nova York em busca de um emprego nos grandes jornais da cidade. Deu de cara na porta, ela era mulher.
Algum tempo depois, sem sucesso, tentou uma última cartada. Foi ao New York World e se propôs a voltar de navio da Europa para descrever as agruras enfrentadas pelos imigrantes que chegavam à América do Norte. A pauta não foi aprovada, mas desta vez lhe deram uma opção: ser internada em uma instituição conhecida pelo mau atendimento aos pacientes e relatar os problemas do local. Claro que Bly topou. Sem levantar qualquer suspeita, a repórter enganou policiais, juízes, enfermeiras e médicos para concluir aquele desafio. O resultado dessa aventura é narrado em primeira pessoa no livro “Dez dias num hospício”.
Na série de reportagens, Nellie Bly conta como foi a experiência de ser internada em um local hostil, onde a comida era horrível, os banhos gelados e as pacientes, muitas delas vítimas da indiferença, do abandono e do descaso, sofriam humilhações, ameaças, violência física e psicológica. A jornalista sentiu na pele e presenciou os abusos cometidos por aqueles que deveriam cuidar dela e de suas colegas. Colocou sua sanidade mental à prova e denunciou todas as irregularidades do asilo de Blackwell’s Island. Dois anos depois, a norte-americana faria uma viagem ao redor do mundo em 72 dias, estabeleceria um recorde mundial e contaria a saga em um novo livro.
Trecho
“Deixei o hospital de alienados com prazer e remorso — prazer por ter uma nova chance de respirar o ar livre do paraíso; remorso por não poder levar comigo algumas das mulheres desafortunadas que viveram e sofreram ao meu lado, e que acredito serem tão sãs quanto eu mesma era e sou. E permitam-me dizer uma coisa: desde o momento em que entrei no hospício da ilha, não fiz nenhum esforço para me manter no suposto papel de louca. Falei e agi exatamente como faço no meu dia a dia. Por incrível que pareça, quanto mais eu agia e falava com lucidez, mais louca me consideravam, com a exceção de um só médico, cuja bondade e delicadeza não esquecerei tão cedo.”
Entrevista
Patrícia Campos Mello
Jornalista e autora do prefácio da edição brasileira
“Esse tipo de jornalismo tem uma finalidade cívica”
Quais são as semelhanças e diferenças que você observa entre as dificuldades enfrentadas por Nellie Bly no fim do século 19 e as que jornalistas mulheres ainda encontram em 2021? Por quê?
Acho que é muito louco pensar o quanto a gente não evoluiu. Obviamente que a vida dela era muito mais difícil. Ela estava em um momento em que, por exemplo, resolveu que queria ser correspondente internacional e teve que ir para o México levando a mãe, porque não podia viajar sozinha, pois não pegava bem.
A condição da mulher, no geral, melhorou muito, mas eu acho mais chocante o quanto algumas coisas ainda resistem. Hoje em dia, principalmente nos últimos anos, com essa ascensão de go- vernos populistas de direita, como voltou a ser um problema gigante ser mulher e ser jornalista. Você ser um alvo, ser criticada pelo gênero e não pelo trabalho que faz. Óbvio, existe mais autonomia, existem muitas repórteres, várias redações que têm jornalistas em sua maioria, mas algumas coisas se mantêm. Por exemplo, poucas mulheres em cargos de chefia; a misoginia, tanto dos leitores quanto das fontes, dos governantes, isso tudo ainda é muito presente e não deveria ser, mais de cento e poucos anos depois.
Na sua opinião, como a história de Nellie Bly pode inspirar profissionais de jornalismo, principalmente os que vivem e trabalham no Brasil? Por quê?
Eu acho que, principalmente, o que deveria e poderia nos inspirar é entender e mostrar como funcionam os serviços públicos e quando eles falham, quando não oferecem um serviço bom para as pessoas. A gente mostrar esse tipo de jornalismo, que é um jornalismo cívico. Que é quando a gente pode fazer alguma diferença, quando os repórteres vão lá e, com uma denúncia tipo a da Nellie Bly, provocam uma reforma para atender melhor as pessoas que dependem daquele tipo de serviço público.
Então, eu acho que esse tipo de jornalismo que tem um resultado, uma finalidade cívica, é muito importante hoje em dia. É manter a função de guardião, de vigia, e o resultado é que, ao expor deficiências, erros ou até crimes, conseguir reformas que melhoram a qualidade do serviço público para as pessoas.
Se você fosse uma colega de Nellie Bly no fim do século 19, sobre qual tema gostaria de escrever com ela? E se ela estivesse viva hoje, sobre o que vocês poderiam investigar juntas?
Eu adoraria ter feito essa exata matéria que ela fez, eu amaria. Óbvio que hoje em dia a gente não usa mais isso, de falsear a sua identidade, embora seja interessante lembrar que em nenhum minuto ela fingiu que tinha um distúrbio psiquiátrico.
Ela ficou como ela era e, mesmo assim, esses supostamente médicos especialistas, vários que a examinaram, não acharam que ela não tinha um problema psiquiátrico. Mas eu amaria ter feito essa matéria, entrar numa instituição psiquiátrica e mostrar. Porque ali estava uma parte muito marginalizada da sociedade, eram imigrantes que já tinham uma situação secundária ou submissa por serem mulheres, e, além disso, com pouco dinheiro. E ela (Nellie Bly) consegue mostrar isso vivendo, mostrando o dia a dia.
Você vê nos pequenos detalhes como era o pão com a manteiga rançosa, a sopa, as pequenas coisas, como era ficar sentado na cadeira, esses detalhes tornam a denúncia e a reportagem muito mais eficiente, ao conseguir trazer mudanças. E sobre o que a gente poderia investigar juntas? Bom, eu acho que ela seria uma parceira maravilhosa de matérias. Eu a vejo muito animada, com muito “sangue nos olhos”. Um tema que eu fiz um pouco, mas que gostaria de ter feito mais e mais aprofundado, é sobre a qualidade do atendimento de pessoas com COVID.
Ir aos hospitais públicos, ver como é que essas pessoas são atendidas, se os hospitais têm equipamento ou não têm, se estão tentando emplacar kit COVID, esse tipo de coisa. A outra seria, por exemplo, acompanhar pessoas que participam de manifestações, como as ocorridas no último 7 de setembro. Não as pessoas que estão ali por um motivo legítimo de manifestar apoio ao presidente e festejar a data da Independência, mas as pessoas que realmente acham que uma intervenção militar seria boa no Brasil e a gente acompanhar e entender a cabeça dessas pessoas. Pegar um ônibus e ir com eles para Brasília e ver como é.
Eu acho que essa seria uma reportagem sensacional, inclusive para entender por que uma parcela da população acha que seria bom ter um regime ditatorial.
Por que o jornalismo investigativo é tão necessário, mas, ainda assim, há uma escalada de violência contra repórteres em vários países? Como mudar essa situação?
Eu acho que o jornalismo investigativo está sob ataque porque o ideal dessa última safra de líderes populistas, de esquerda e de direita, é controlar completamente a comunicação política com os seus apoiadores. Eles querem ter controle sobre a mensagem. E as redes sociais, nesse sentido, são muito úteis, porque tentam desviar do filtro da imprensa profissional se comunicando diretamente, muitas vezes com mensagens descontextualizadas ou realmente mentirosas, falsas.
Aí vem o jornalista, principalmente o investigativo, que é a pessoa que vai puxar o fio da meada e mostrar: “Olha, estou com esse documento, não é assim, isso que você falou não é verdade”, etc. Então ele é visto como um obstáculo para o controle da mensagem política desses líderes, que não querem ser questionados. No meio disso, eu acho que, como temos uma ascensão de governos mais autoritários, eles se sentem autorizados a fazer ataques cada vez mais agressivos contra os jornalistas.
O que a gente tem que tentar fazer é continuar investigando, seja quem for, seja da direita, seja da esquerda, governo ou oposição, e não se intimidar. Claro, é difícil. Esses ataques estão cada vez mais assustadores, mas a gente tem essa obrigação de continuar investigando. Uma parcela da sociedade, no meio dessa “infodemia”, avalanche de desinformação, eleições, voto impresso, valoriza o papel do jornalismo em tentar responsabilizar os atores do governo.
Estão valorizando mais o jornalismo e entendendo que ter um jornalista profissional ali, não se posicionando a favor de A, B ou C, mas tentando ouvir todos os lados, consultando os documentos para chegar à verdade, é importante. E a única coisa que a gente pode fazer é continuar investigando.