“A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado...” Esses simples e tocantes versos de Manoel Barros, um dos mestres da poesia brasileira, brotaram em minha memória ao tentar compreender o alcance existencial de “Véspera”, terceiro romance da escritora mineira Carla Madeira, a segunda autora nacional que mais vendeu livros de ficção adulta no Brasil em 2021, depois de Itamar Vieira Jr. e seu “Torto arado”.
Uma mulher desesperada com o casamento fracassado e para se vingar do marido arranca o próprio filho do carro a caminho da escola e o abandona no meio da rua. E por esse ato cruel viverá atormentada. Um homem, para se vingar da mulher religiosa que o rejeita na cama, registra os seus dois gêmeos idênticos como Caim e Abel. E também sofrerá pelo resto dos seus dias diante da dor da mulher inconformada com tanta insensatez. Se para o poeta a incompletude significa sabedoria, para os protagonistas de “Véspera” são tormentos carregados de rejeição, vingança e culpa. Provocam a erupção da narrativa, pode-se dizer assim, considerando-se a bela capa do livro, que traz a imagem de magma transbordando como lava.
Contado em dois tempos, a partir da terrível culpa de Vedina – que tenta reaver o filho de 5 anos que abandonou e assim repassa sua vida de casada com Abel –, e, décadas antes, da trajetória de Caim e Abel – marcados pelo trauma da mãe, Custódia, em renegar os nomes bíblicos batizados pelo marido, Antunes –, “Véspera” desnuda conflitos psicológicos. No foco, está a implacável condição humana e suas vésperas de desfechos imprevisíveis.
''Não se sai de uma tragédia com os cabelos molhados ao vento como se sai de um banho nas férias de verão, quando, depois de lavar areia, óleos e suores pegajosos, veste-se uma roupa leve a tempo de voltar para a cria, sentir a brisa suave e ver a luz do dia cair na beirada dourada do mar. Um paraíso não é suficiente contra determinados infernos. É verdade que algum alívio os banhos demorados trazem, mas logo tudo se ressente, repuxa. Quando há uma ferida aberta, nem os dias ensolarados melhoram as coisas. Nem o mar. E até a brisa, musa da delicadeza, machuca.”
Assim reflete o narrador, a certa altura da obra, sobre as consequências dos atos de cada um. “A descida até o lugar onde somos capazes de tudo é, por vezes, um desmoronamento lento misturado à banalidade dos dias. Ou abrupta avalanche”. A vida como ela é, diria Nelson Rodrigues.
Como Caim e Abel lidarão na escola e na vida adulta com o estigma do nome? E na vida afetiva? Caim ama a bela Veneza, que não ama Abel, que a ama, mas está casado com Vedina. O que cada véspera reserva aos irmãos? E o que terá acontecido ao menino abandonado? Como se chega ao extremo? São perguntas que fisgam e intrigam o leitor desde as primeiras páginas. Em “Tudo em rio”, primeiro livro de Carla, o extremo já se apresenta num doloroso triângulo amoroso. Em “A natureza da mordida”, o segundo, ele está na dores da alma das duas protagonistas. E em “Véspera” se manifesta nos atos e nas reflexões da vida de cada personagem, em erupções temperadas com beleza poética e filosófica. E ponto final. Ir mais além aqui seria não resistir aos quase irresistíveis spoilers da também irresistível “Véspera”.
TRECHO DO LIVRO
“Fiquei pensando... Outro dia... Que ideia foi aquela de me pedir para tirar a roupa? Que bobagem, Antunes!
– Há quanto tempo não vejo seu corpo, Custódia?
– Pra que isso, agora, ver meu corpo?
– Você é minha mulher.
– E daí?
– Quero apenas olhar.
– Para um corpo velho?
– Para você – disse Antunes, olhos úmidos enquanto lhe vinha à mente a primeira vez que viu Custódia.
(…) Custódia ficou parada olhando para ele, a travessura solta no peito. Aos poucos, com as mãos tímidas, desabotoou o vestido. Na penumbra delicada, ficou nua para Antunes.
Ele, distante, abriu os olhos e a viu. Sentiu a emoção mais forte de toda sua vida. Olhou para o corpo de sua mulher. Ela, encabulada diante de olhos tão desimpedidos... o peito disparado... pôs apressada a roupa de volta e saiu do quarto.
No dia seguinte, Antunes acordou cedo e apareceu na mesa do café da manhã sozinho, coisa que não fazia havia tempos. Estava mais bem-disposto. Ao se olharem, os dois tiveram a sensação de compartilhar uma vida.”
VÉSPERA
Carla Madeira
Editora Record
278 páginas
R$ 49,90
Lançamento: 6 de novembro,
11h às 14h, Vila 211, Rua Professor Estevão Pinto, 211, B. Serra, em BH.
Entrevista
CARLA MADEIRA
Escritora
“A história de Caim e Abel é a história dolorosa da rejeição”
A que você atribui o sucesso de “Tudo é rio” e de ser uma das campeãs de venda de livros de ficção para adultos em 2021, num país tão carente de leitores e leitura?
Acredito que “Tudo é rio” traz questões universais: sexualidade, religiosidade, violência, maternidade, perdão. A história tem uma dinâmica envolvente. Frases curtas, capítulos curtos, personagens intensos. Um narrador acessível que fala de coisas complexas de uma maneira simples. Quem lê quer dividir, falar sobre. Os livreiros contam que alguns leitores voltam na livraria para agradecer a indicação de “Tudo é rio”. É o velho boca a boca, ampliado pela tecnologia, o grande responsável pelo sucesso do livro.
Como em “Tudo é rio” e “A natureza da mordida”, “Véspera” explora a conflituosa condição humana, suas virtudes e seus defeitos. Por mais que os dramas familiares se pareçam, essa é mesmo uma fonte inesgotável para a (sua) literatura e para a arte em geral?
Sim. Eu me interesso muito por este aspecto da nossa condição humana: a potência do bem e do mal e como essas forças vão ganhando território em nós. Como vamos sendo enredados por nossas circunstâncias. O livro começa com a pergunta: Como se chega ao extremo?. Em retrospecto, percebo que essa questão atravessa todos os meus livros, e, em todos eles, as famílias ocupam o lugar primordial na dinâmica dessas forças.
“A memória é um estômago em permanente refluxo, e a culpa é ácida como um suco gástrico”, que atormenta Vedina após abandonar o filho. Lidar com a culpa, principalmente quando vem de uma terrível vingança, seria uma das tragédias insuperáveis da vida?
Vedina é uma mulher destroçada por um casamento marcado pelo desamor. Abandona o filho em um momento de descontrole, arrepende-se dois minutos depois, volta ao lugar onde o deixou, mas não o encontra mais. É este triz que nos espreita ao longo da vida: o do acontecimento que nos aprisiona. E não há confins no mundo onde possamos nos esconder dos nossos próprios olhos.
Do que sabemos que fizemos, do que deixamos de fazer, do que sentimos que deveríamos ter feito. Do que somos capazes. A culpa é uma presença sem trégua. Quando estava escrevendo “Véspera”, conheci um poema de Victor Hugo chamado “A consciência”, que fala da culpa sentida por Caim ao matar Abel. É de uma beleza impressionante, e, ao lê-lo, sentimos o quanto a culpa é a tragédia do inescapável. Não há como fugir dos olhos vigilantes que estão dentro de nós.
A “Bíblia” cobriu a humanidade com o dilema cruel do maniqueísmo. “Véspera” subverte esse estigma. Caim, o vilão bíblico, aqui é belo, inteligente, bem-sucedido, tem a simpatia do leitor. Abel é fraco, pouco inteligente e agride a mulher. Afinal, o peso do nome é o que o menos importa sobre o caráter de uma pessoa? Por que sua opção por Caim e Abel?
A história de Caim e Abel é a história dolorosa da rejeição. A rejeição que nasce da comparação entre duas pessoas que possuem diferentes coisas a ofe- recer. Não aceitar as diferenças, as singularidades de cada um, é o espaço por onde a violência, muitas vezes, entra em nossas vidas. Foi com esse olhar que escolhi enxergar esta história. O julgamento das oferendas a que somos submetidos de maneira recorrente talvez seja o grande mal que nos assombra. Como diria Borges: “Houve pela primeira vez a morte. Já não me lembro se foi Abel ou Caim”. Porque não importa, morremos e matamos o tempo inteiro, é uma dinâmica.
Em uma leitura inicial, pode-se concluir que há uma troca de lugares entre Caim e Abel, mas, aos poucos, muitas camadas vão sendo colocadas para provocar uma outra compreensão – e eu espero ter provocado – de que há inúmeras maneiras de matar e morrer. Não há uma só culpa. Há muitas culpas e muitas vésperas pelo caminho. Sob a bandeira do “bem matar o mal” (os bons matarem os maus), vamos vendo o mal se esconder sob toneladas de narrativas. As palavras permitem todo tipo de realidade.
O romance enlaça as vidas de Caim e Abel, inclusive pelo amor da bela Veneza. Caim, em certo momento, questiona o irmão por ter batido na mulher, Vedina, e sobre a morte do melhor amigo. E “o rosto de Abel se contorceu como se, finalmente, tivesse sido esfaqueado”. A vida dos dois irmãos é de confronto?
A história de Caim já foi resolvida pela “Bíblia”: ele ganhou um lugar para onde ir e uma numerosa descendência. Deus o cumulou de bênçãos. Caim não é o mal, como andam dizendo por aí há séculos. E Abel – aquele que morre – o que pode nos inspirar? Em “Véspera”', os dois irmãos, Caim e Abel, não lutam por amor. Lutam para se separar. Para que cada um exista sem ser por aquilo que o define em relação ao outro.
Se você é o irmão que morre, quer dizer que eu sou o irmão que mata? O Abel de “Véspera” talvez nos dê a chance de pensar que se pode morrer pelas próprias mãos. Os dois irmãos ganharam nomes difíceis de carregar. E um nome não é só uma palavra. Como uma palavra nunca é só uma palavra, a ela é dado ser poema ou cativeiro. O que faremos ser? Para mim, só fazia sentido um desfecho em “Véspera”: o que ilumina a perspectiva de que, quando olhamos para uma história, sempre inventamos uma verdade.
A véspera é a nossa última chance de mudar o destino? Ou “somos o que somos”, independentemente de tudo e a véspera é mera expectativa?
Nossas vésperas podem muito. E há nisso muita esperança.