“Os tiros pareciam muito próximos e era assustador para mim, enquanto para as pessoas ao meu redor não parecia nada fora do normal. Ao mudar para o Rio, morei próximo ao Morro da Mangueira, onde os tiroteios eram sempre frequentes. Pensar na situação de quem tinha que conviver com esses conflitos frequentemente era triste e confrontante.” Renan Porto, doutorando em direito pela Universidade de Westminster, em Londres, hospedara-se, naquele 2016, na casa de um amigo carioca.
Natural de Florestal, distrito do município de Jequié (BA), preparava-se para se deslocar até a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde faria o concurso para mestrado em direito. Foi quando, pela primeira vez, mergulhou nos sons da guerra urbana. Enquanto para os moradores o tiroteio não passava da rotina banal, para o imigrante baiano era profundo o estranhamento, sobretudo, da naturalização da guerra civil nas regiões vulneráveis do Rio, que expunha a brutalidade a que estavam submetidos aqueles moradores.
Natural de Florestal, distrito do município de Jequié (BA), preparava-se para se deslocar até a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde faria o concurso para mestrado em direito. Foi quando, pela primeira vez, mergulhou nos sons da guerra urbana. Enquanto para os moradores o tiroteio não passava da rotina banal, para o imigrante baiano era profundo o estranhamento, sobretudo, da naturalização da guerra civil nas regiões vulneráveis do Rio, que expunha a brutalidade a que estavam submetidos aqueles moradores.
Renan Porto, que naquele momento lia o clássico “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, constatava que o projeto de modernização e desenvolvimento nacional nunca superou as estruturas arcaicas das relações de poder baseadas no coronelismo e nas relações entre políticos e máfias. Ao contrário, constata, é um processo de desenvolvimento que carrega consigo um modo de gerir os conflitos políticos em que sempre se conservam as relações de poder e seus privilégios, ao mesmo tempo em que há uma forma de distribuição espacial da violência bastante desigual e marcada pelo racismo.
Porto refletia sobre a violência moderna canalizada para certas periferias, sem evitar a analogia: assim como os jagunços de Guimarães Rosa cooptam negros e pobres para seus exércitos, bandos que existiam, na maioria das vezes subordinados aos líderes políticos, fazendeiros e coronéis; também as facções criminosas que controlam as comunidades cariocas reproduzem igual lógica da violência.
MESTRADO
Nascia, assim, o livro “Políticas de Riobaldo: A justiça jagunça e suas máquinas de guerra”, desdobramento da dissertação de mestrado defendida em 2019, que acaba de ser lançado pela Cepe Editora. Não se trata de análise da obra de Guimarães Rosa com viés literário. Mas, antes, foi objetivo do livro trabalhar o conceito de justiça.
“Meu trabalho tem como foco principal o conceito de justiça. O romance de Rosa me permitiu explorar uma justiça da perspectiva nômade e anárquica dos jagunços, em oposição a uma justiça do Estado, dos juízes e dos tribunais, que decidem sobre a vida de corpos marginalizados e oprimidos pelas mesmas forças hierárquicas do Estado. O ímpeto insaciável por liberdade dos jagunços traz a possibilidade de uma justiça que coloca em questão o que subjuga os corpos e os confina a imposições e hierarquias alheias aos seus modos de vida”, afirma o autor.
Em seu sentido histórico, a jagunçagem foi, segundo Renan Porto, um sistema de banditismo ligado às figuras dos coronéis e o modo como o poder era exercido territorialmente no sertão, para além das instituições do Estado.
“O contexto de crescente controle territorial das periferias urbanas por parte de facções criminosas e suas ligações com poderes do Estado – vide o caso da morte de Marielle –, quando visto do ponto de vista da jagunçagem, parece reatualizar uma estrutura de poder mais antiga que antes funcionava no sertão e hoje é ativo nas grandes cidades”, sustenta Renan Porto, considerando ser a forma de poder das milícias e do uso da violência armada que mantém certos poderes políticos.
“No caso de Riobaldo, ele entra na jagunçagem meio que de surpresa. Ele de repente se vê inserido numa prática atuante no território onde ele cresceu, prática ligada às formas de poder territorial do local. Tal como ele, crianças que são expostas às formas de poder local controlando os territórios onde crescem acabam sendo absorvidas por uma guerra que lhes foi imposta e perdem suas vidas nisso. Não podemos atribuir o destino desses garotos às escolhas individuais, quando não pudemos oferecer-lhes outros caminhos possíveis, que não demandam tanto esforço e sacrifício para serem trilhados”, diz Renan Porto, acrescentando saber como é difícil acessar a universidade quando a partir do contexto periférico e de uma família de baixa renda.
Segundo Porto, em “Grande sertão: veredas” o Brasil é narrado a partir de suas margens, onde a guerra se atualiza sem ser percebida como uma ameaça ao projeto institucional moderno. Tal fantasma, contudo, ainda persiste, diz ele, sempre se reconfigurando em novos conflitos nas regiões periféricas do país. “A história de Riobaldo é a passagem da guerra à institucionalização da propriedade, da lei e de um novo comando sobre a terra; do nomadismo da vida jagunça de Riobaldo à sua sedentarização como fazendeiro, proprietário de terra, fixado nos limites de suas fronteiras. Essas duas experiências distintas de habitar e distribuir o espaço, que serão apresentadas aqui não como identidades fixas e absolutamente exteriores entre si, mas como dois polos que indicam tendências e inclinações que perpassam a vida daqueles personagens”, observa o autor.
Assim, ao mesmo tempo em que o jagunço nômade experimenta a terra como espaço de navegação sem fronteiras determinadas, o fazendeiro converte o espaço em propriedade, delimitando suas fronteiras. “Riobaldo produz uma posição ambígua: um fazendeiro narrando suas memórias da jagunçagem. O que é apenas uma das muitas ambiguidades que podemos encontrar na obra de Guimarães Rosa. Porém, Riobaldo continua sendo assombrado pelo fantasma da guerra, e para se proteger distribuiu quinhões de sua propriedade entre outros jagunços que protegiam suas terras”, aponta o autor.
FACÇÕES
Para Renan Porto, o livro de Guimarães Rosa poderia ser reescrito hoje a partir dos conflitos entre facções que controlam as favelas, que assim como os bandos jagunços, cooptam negros e pobres para seus exércitos. “Bandos que existiam sempre em relação – na maioria das vezes numa relação de serviço – com líderes políticos, fazendeiros e coronéis”, sustenta. Segundo ele, hoje, Riobaldo seria uma criança pobre abandonada pelo pai e com a mãe já morta.
Teria tentado estudar, mas abandonara os estudos. “Sem alternativa para sobreviver, se vê inserido numa facção, com uma arma na mão e posto diante de uma guerra que não era sua e que, além da morte, só poderia lhe oferecer o prestígio de ser um guerreiro”, considera Porto, para quem o Riobaldo da atualidade passaria um bom tempo lidando com conflitos morais sobre a violência e a brutalidade que seu grupo e ele mesmo promovem. No caso da personagem de Guimarães, após assumir um pacto diabólico, torna-se líder do seu bando e promotor direto da guerra, tendo a “infame fortuna de terminar a vida como fazendeiro”, que é sua condição como narrador.
Teria tentado estudar, mas abandonara os estudos. “Sem alternativa para sobreviver, se vê inserido numa facção, com uma arma na mão e posto diante de uma guerra que não era sua e que, além da morte, só poderia lhe oferecer o prestígio de ser um guerreiro”, considera Porto, para quem o Riobaldo da atualidade passaria um bom tempo lidando com conflitos morais sobre a violência e a brutalidade que seu grupo e ele mesmo promovem. No caso da personagem de Guimarães, após assumir um pacto diabólico, torna-se líder do seu bando e promotor direto da guerra, tendo a “infame fortuna de terminar a vida como fazendeiro”, que é sua condição como narrador.
Instável e imprevisível, a política jagunça, segundo Renan Porto, faz emergir permanentemente o confronto de forças diversas, atores desconsiderados e invisibilizados, que desestabilizam a comunicação pública, com um discurso descolado da lógica racional.
“Isto me parece estar acontecendo de modo ainda mais explícito nos últimos anos no Brasil, depois do bolsonarismo, inclusive considerando aí a reemergência de milícias rurais atuando em favor de fazendeiros. Jagunços”, diz ele. Para Porto, a recriação estética que Rosa faz desses homens – opõe jagunços a serviço de coronéis e deputados, como o Hermógenes e o Ricardão, a um outro bando anárquico e insubmisso, aquele de Diadorim e Riobaldo.
“Esses doces bárbaros atravessam essa atmosfera contraditória, impura e conflitiva de um território em guerra, numa afirmação audaz de sua liberdade. Eles não eram bons mocinhos. Não é uma luta dos cavaleiros do bem contra as forças do mal. São corpos recusando a submissão de suas vidas a interesses alheios que não os beneficiam em nada”, diz o autor.
“São corpos que não cabem na ordem social repressiva e impositiva da sociedade patriarcal e coronelista do sertão. São corpos inquietos, se mexendo, não se contendo de liberdade, criando relações entre si, fazendo e desfazendo seus bandos, mas sempre e sempre em movimento, impulsionados de vida e vontade. Não podemos deixar que nossa vontade de viver seja consumida pela imposição de uma vida de trabalho e consumo que suga nossas potências criativas. Escrevi este livro sobretudo para instigar esse desejo e essa potência que todos nós temos. E como o Rosa disse, o sertão é o mundo”, sublinha Renan Porto.
“Políticas de Riobaldo: A justiça jagunça e suas máquinas de guerra”
.Renan Porto
.Cepe Editora
.132 páginas
.R$ 30 (impresso) e R$ 12 (e-book)