Quem quiser dedicar o Mês da Consciência Negra à leitura de autores e temas que refletem sobre racismo, identidade, religião de origem africana e violência racial tem opções recentes assinadas por grandes nomes da literatura nacional e internacional.
Do Brasil, Miriam Alves vem com o livro de contos “Juntar pedaços”, uma coletânea de histórias concebidas a partir de situações de violência contra a mulher. Nascida em São Paulo em 1952, Miriam completa quatro décadas de carreira este ano. Ao lado de escritoras como Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, trabalha incansavelmente para ampliar o espaço à literatura produzida por autores negros no país.
Para celebrar os orixás
Quando idealizou “Contos de axé”, o escritor Marcelo Moutinho pensou em um livro que não fosse necessariamente para iniciados. Ele queria autores capazes de criar contos cuja temática girasse em torno das religiões de matrizes africanas. Escolheu 18 autores e pediu que criassem as ficções reunidas no livro. “A ideia foi ter uma diversidade de vozes do ponto de vista tanto de gênero quanto de raça e estilo literário”, avisa. “E minha ideia era que essa diversidade se estendesse à questão da iniciação.
"Moutinho não queria que todos os autores fossem iniciados nas religiões, mas que fossem capazes de criar em torno delas. Cada um escolheu um orixá como espécie de guia para a narrativa, cuja descrição didática antecede o texto. O resultado é muito diverso, com contos de diálogo mais direto com o mito ou com o próprio arquétipo, e outros em que os orixás serviram de ponto de partida para histórias passadas na contemporaneidade e sem refe- rência muito explícita.
“Contos de Axé — 18 histórias inspiradas nos arquétipos dos orixás”
• Organização de Marcelo Moutinho
• Editora Malê
• 224 páginas
• R$ 49,90
De Angola a Portugal
Vitória nasceu em Angola, é neta de colonos mestiços, cuja pele é escura demais para serem aceitos pelos brancos e clara demais para serem considerados iguais pelos negros. A menina foi entregue aos avós ainda bebê. A mãe se embrenhou na luta pela independência do país e desapareceu. A guerra veio e os avós carregaram Vitória para Portugal, onde cresceu certa de que, a essa altura, era órfã.
Mas não se apaga assim uma identidade e, adulta, a personagem criada por Yara Nakahanda Monteiro parte para a África em busca da mãe.“Essa dama bate bué!” é o primeiro romance da autora e narra uma trajetória que ela conhece bem. A própria Yara nasceu em Angola, em 1979, e cresceu em Portugal, para onde foi levada aos 2 anos. Já viveu no Rio de Janeiro e em cidades europeias como Londres, Copenhague e Atenas. Também poeta, a ficcionista é comentarista no programa “Avenida Marginal”, da RDP África, estação de rádio portuguesa da rede RTP.
Mas não se apaga assim uma identidade e, adulta, a personagem criada por Yara Nakahanda Monteiro parte para a África em busca da mãe.“Essa dama bate bué!” é o primeiro romance da autora e narra uma trajetória que ela conhece bem. A própria Yara nasceu em Angola, em 1979, e cresceu em Portugal, para onde foi levada aos 2 anos. Já viveu no Rio de Janeiro e em cidades europeias como Londres, Copenhague e Atenas. Também poeta, a ficcionista é comentarista no programa “Avenida Marginal”, da RDP África, estação de rádio portuguesa da rede RTP.
“Essa dama bate bué!”
• Yara Nakahanda Monteiro
• Todavia
• 96 páginas
• R$ 62
Encontros e desencontros
Sula e Nel eram amigas inseparáveis no Meio-Oeste pobre americano, até que a primeira decide deixar a região em busca de oportunidades. Quando retorna à terra natal, é vista com desconfiança pela comunidade negra na qual cresceu, enquanto Nel se tornou uma liderança local. Publicado em 1973, o romance de Toni Morrison reflete sobre raízes, identidade e o significado de comunidade em um país profundamente machucado pelo racismo. Liberdade sexual e econômica, conservadorismo versus progressismo, individualismo e coletividade são alguns dos temas tratados pela autora no romance.
“Sula”
• Toni Morrison
• Tradução de Débora Landsberg
• Companhia das Letras
• 176 páginas
• R$ 49,90
Mudança e diversidade
Escrito pela poeta Amanda Gorman, a mesma que recitou um poema durante a posse do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em janeiro, “Canção da mudança” é um livro infantil repleto de mensagens de esperança. Com ilustrações de Loren Long, a narrativa é protagonizada por uma menina negra que percorre as ruas de uma cidade a convidar crianças de diferentes origens e situações sociais para construírem juntas espaços e pontes de diálogo. Meio ambiente, equidade de gênero e racial e tolerância são alguns dos temas abordados no livro.
“Canção da mudança”
• Amanda Gorman
• Tradução de Stephanie Borges
• Intrínseca
• 32 páginas
• R$ 49,90
Violência contra a mulher
“Juntar pedaços” é um livro sobre violência contra a mulher. São 37 contos nos quais Miriam Alves constrói pequenas narrativas interligadas por uma temática comum. Uma das vozes mais antigas e importantes do movimento da literatura negra no país, com 40 anos de carreira, Miriam escolheu contar histórias de mulheres nesse pequeno livro que nasceu durante a pandemia e tomou corpo como forma de respiro após a autora concluir o romance “Maréia”, lançado em 2019 pela Editora Malê.
Miriam trabalhou durante 30 anos no serviço social de dois hospitais públicos em São Paulo. Na pediatria, ela ouvia muitas histórias de mulheres vítimas de todo tipo de abuso. “E tinha várias histórias bem complicadas, sobretudo o impedimento de sair da relação abusiva. Isso me marcou muito. Estou há 15 anos aposentada do serviço social, mas tinha muitas vozes gritando dentro de mim”, conta.
A violência costura todos os contos. “Quando monto um livro, faço questão de imprimir uma linha narrativa. Um livro só é absorvido pelo leitor quando existe essa linha, que tem altos e baixos, de montanha-russa, então nada é por acaso”, avisa a escritora, que estreou em 1983 com “Momentos de busca” e lançou também “Estrelas no dedo” (1985), “Mulher matriz” (2011) e “Bará na trilha do vento” (2015). A identidade, a discriminação e o racismo também são elementos que unem as narrativas. Miriam lembra que há vários tipos de violência contra a mlher e é por essas nuances que ela transita nesta reunião de contos.
Miriam trabalhou durante 30 anos no serviço social de dois hospitais públicos em São Paulo. Na pediatria, ela ouvia muitas histórias de mulheres vítimas de todo tipo de abuso. “E tinha várias histórias bem complicadas, sobretudo o impedimento de sair da relação abusiva. Isso me marcou muito. Estou há 15 anos aposentada do serviço social, mas tinha muitas vozes gritando dentro de mim”, conta.
A violência costura todos os contos. “Quando monto um livro, faço questão de imprimir uma linha narrativa. Um livro só é absorvido pelo leitor quando existe essa linha, que tem altos e baixos, de montanha-russa, então nada é por acaso”, avisa a escritora, que estreou em 1983 com “Momentos de busca” e lançou também “Estrelas no dedo” (1985), “Mulher matriz” (2011) e “Bará na trilha do vento” (2015). A identidade, a discriminação e o racismo também são elementos que unem as narrativas. Miriam lembra que há vários tipos de violência contra a mlher e é por essas nuances que ela transita nesta reunião de contos.
“Juntar pedaços”
• Miriam Alves
• Editora Malê
• 112 páginas
• R$ 42
Competição e frustração
Depois de três anos trabalhando no mercado editorial, a escritora Zakiya Dalila Harris publicou um romance que explora o cenário extremamente competitivo e hierarquizado da publicação de livros nos Estados Unidos. Em “A outra garota negra”, a personagem Nella Rogers é a única funcionária negra de uma editora. Contratada como assistente editorial, ela passa boa parte da vida profissional se sentindo deslocada até uma outra funcionária negra ser contratada e Nella se sentir em desvantagem. Para completar, ela passa a receber ameaças embutidas em pedidos para que deixe a empresa.
“Boa parte de Nella veio de mim e de minhas experiências trabalhando no mundo da edição. Frequentemente, fui a única garota negra sentada à mesa de trabalho”, conta a autora. “E quando você é a única, é difícil não ter a sensação de que seus colegas de trabalho pensam que você representa as pessoas negras. Quando você não é a única, não é incomum imaginar se você não será constantemente comparada com outras pessoas negras do escritório. Eu queria olhar para todos esses sentimentos frustrantes a partir da perspectiva da Nella.”
“Boa parte de Nella veio de mim e de minhas experiências trabalhando no mundo da edição. Frequentemente, fui a única garota negra sentada à mesa de trabalho”, conta a autora. “E quando você é a única, é difícil não ter a sensação de que seus colegas de trabalho pensam que você representa as pessoas negras. Quando você não é a única, não é incomum imaginar se você não será constantemente comparada com outras pessoas negras do escritório. Eu queria olhar para todos esses sentimentos frustrantes a partir da perspectiva da Nella.”
“A outra garota negra”
• Zakiya Dalila Harris
• Tradução de Flávia Rössler e Maria Carmelita Dias
• Intrínseca
• 384 páginas
• R$ 46,90
A vida e as lutas e Sueli Carneiro
Da célebre frase “entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta” nasce o título da biografia de Sueli Carneiro, obra que apresenta a trajetória de uma das mais importantes feministas e intelectuais do Brasil. Escrita por Bianca Santana, “Continuo preta – A vida de Sueli Carneiro” (Companhia das Letras), a obra cumpre a função de passar o bastão para as gerações mais novas de negros e negras engajados na luta antirracista.
Fundamental para entender o Brasil contemporâneo, o livro resgata a atuação do movimento negro em momentos cruciais, seja na ditadura militar, nas Diretas Já, na Assembleia Constituinte ou nos primeiros anos do período democrático brasileiro. A frase de Sueli demonstra como as demandas da população negra foram ignoradas, em diferentes momentos, tanto pela direita como pela esquerda, sendo necessária uma forte mobilização dos movimentos negros para que a luta antirracista pudesse ser pautada e enfrentada no país.
Às vésperas do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, vale lembrar que, embora o racismo seja problema central no Brasil, do qual derivam outros como as desigualdades sociais, desemprego e tantos outros mais, coube ao movimento negro trazer esse debate para a esfera pública, e Sueli Carneiro foi uma das vozes fundamentais para que a discussão ecoasse.
Já no prólogo, Bianca anuncia a maneira pela qual Sueli dará prosseguimento ao legado do ator e intelectual Abdias do Nascimento, descrevendo o episódio em que essa relação tem início com ela espectadora, quando Abdias, no “Tribunal de Bertha Lutz”, destaca que não havia ali nenhuma mulher negra. O evento que pretendia homenagear uma das articuladoras do movimento feminista internacional foi a simulação de um julgamento.
Na primeira parte da obra, Escavação, a biógrafa apresenta as origens de Sueli, desde a árvore genealógica, passando pela apresentação dos pais, José Horácio Carneiro e Eva Camargo Alves; os primeiros anos escolares, com destaque para o fato de Sueli ser a única menina preta nas escolas pelas quais passou. Na segunda parte, a autora demonstra os caminhos percorridos para que Sueli se tornasse ativista do movimento negro. Um passo importante é a passagem pela Universidade de São Paulo, onde cursou filosofia, e o encontro com “quatro cavaleiros do Apocalipse” – Hamilton Cardoso, Milton Barbosa, Rafael Pinto e Vanderlei José Maria –, intelectuais que foram fundamentais na formação e na aproximação dela com o movimento negro.
Bianca também traz um pouco da vida pessoal e relata a união de Sueli com o judeu Maurice Jacoel. Eles se casaram em 8 de dezembro de 1973, o que era considerado uma transgressão, a relação entre os dois de origens e culturas tão diferentes e em um momento que a demonstração desse afeto era um ato político. Narra a aventura dela e de Maurice nos 1.371 quilômetros navegáveis do Rio São Francisco, em 1974, numa viagem de férias, e a relação de Sueli com o candomblé, religião que ela e Maurice começaram a frequentar por interesses estéticos e antropológicos, mas da qual ela se tornou seguidora, passando a integrar uma casa tradicional em Taboão da Serra.
A obra apresenta o encontro de Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez, parceria intelectual fundamental para trazer para a cena política a mulher negra, uma vez que o debate racial era conduzido pelo homem negro e o debate feminista pela mulher branca. Bianca destaca como Lélia travou um diálogo crítico com o feminismo branco no Brasil para apresentar as reivindicações e demandas das mulheres negras, bem diferentes de outras feministas.
A trajetória acadêmica de Sueli também foi fundamental na trajetória. Depois de ingressar no mestrado em filosofia na PUC, ela, em 1982, aprovou um projeto no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico para pesquisar o movimento negro paulista. A obra também conta a experiência de criação do Alafiá, bloco afro inspirado no Ilê Aiyè, criado no Bairro Curuzu, em Salvador.
Doutora em ciência da informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e organizadora de coletâneas como “Inovação ancestral de mulheres negras: Táticas e políticas do cotidiano”, Bianca Santana também apresenta as articulações para a criação de uma política nacional de defesa dos direitos das mulheres no governo de José Sarney, o primeiro depois do processo de redemocratização.
“A contribuição para o planejamento, a implementação e o monitoramento de políticas públicas de promoção de igualdade de gênero e raça se dão, então, a partir da sociedade civil”, descreve a autora ao citar a criação do Geledés e explicar a origem do nome: “Nas sociedades tradicionais iorubás, os geledés são organizações secretas de culto ao poder feminino, consideradas patrimônio da humanidade”. O Geledés foi criado em 30 de abril de 1988 e a articulação para a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995. Nos anos 2000, em entrevista à revista Caros Amigos, Sueli proferiu a frase célebre: “Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta”.
“A contribuição para o planejamento, a implementação e o monitoramento de políticas públicas de promoção de igualdade de gênero e raça se dão, então, a partir da sociedade civil”, descreve a autora ao citar a criação do Geledés e explicar a origem do nome: “Nas sociedades tradicionais iorubás, os geledés são organizações secretas de culto ao poder feminino, consideradas patrimônio da humanidade”. O Geledés foi criado em 30 de abril de 1988 e a articulação para a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995. Nos anos 2000, em entrevista à revista Caros Amigos, Sueli proferiu a frase célebre: “Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta”.
Três perguntas para ...
Zakiya Dalila Harris (autora de “A outra garota negra”)
“Somos sub-representados no mundo da
edição e em outras indústrias corporativas”
O quanto ficção e realidade se encontram no livro?
Eu dei a Nella minhas próprias experiências pessoais e características. Trabalhei no mundo da edição e era uma das poucas mulheres negras. Muitos personagens da Wagner Books são exagerados, mas eu realmente trouxe o ambiente — antiquado, peculiar e muito branco — da vida real para o livro. Também entendo a relação complicada de Nella com sua identidade negra. Frequentei uma escola básica predominantemente branca e cresci em uma vizinhança predominantemente branca, então, quando passei para o ensino fundamental e para o ensino médio em escolas com muito mais diversidade, experimentei um choque cultural.
Às vezes eu era zombada pela maneira como falava (“como uma garota branca”). No entanto, enquanto Nella nunca teve um primeiro amigo verdadeiro negro até os 20 anos, eu tive a sorte de me enturmar em um maravilhoso grupo de amigos negros no meu primeiro ano do ensino superior. Outra diferença grande entre Nella e eu são nossas aspirações. Enquanto ela sonha em se tornar editora, meu maior sonho sempre foi escrever.
Às vezes eu era zombada pela maneira como falava (“como uma garota branca”). No entanto, enquanto Nella nunca teve um primeiro amigo verdadeiro negro até os 20 anos, eu tive a sorte de me enturmar em um maravilhoso grupo de amigos negros no meu primeiro ano do ensino superior. Outra diferença grande entre Nella e eu são nossas aspirações. Enquanto ela sonha em se tornar editora, meu maior sonho sempre foi escrever.
Como é a presença de pessoas negras no mercado editorial norte-americano?
O mercado editorial tem sérias lacunas quanto à presença de pessoas de cor — especialmente negras. Quando eu estava no mercado, a maioria das pessoas negras com as quais eu estava em contato no trabalho eram guardas de segurança, recepcionistas ou o staff da correspondência. As pessoas que trabalhavam na área editorial eram, na maioria, brancas. Quando eu decidi sair da editora para terminar de escrever este livro, me senti culpada, como se estivesse desistindo de uma posição tão preciosa enquanto tantos outros lutam apenas para conseguir entrar.
Eu sentia que tinha um senso de responsabilidade de tentar ajudar a fazer do escritório um lugar mais diversificado. Mas o problema é que isso pode ser um peso e essa pressão pode levar você para todo tipo de coisa: burnout, virar um troféu, se sentir isolado. Isso é o que faz muitas pessoas negras quererem cair fora — elas não se sentem valorizadas. Eu acho que essa é uma das muitas razões pelas quais nós ainda somos sub-representados no mundo da edição e em outras indústrias corporativas similares.
Eu sentia que tinha um senso de responsabilidade de tentar ajudar a fazer do escritório um lugar mais diversificado. Mas o problema é que isso pode ser um peso e essa pressão pode levar você para todo tipo de coisa: burnout, virar um troféu, se sentir isolado. Isso é o que faz muitas pessoas negras quererem cair fora — elas não se sentem valorizadas. Eu acho que essa é uma das muitas razões pelas quais nós ainda somos sub-representados no mundo da edição e em outras indústrias corporativas similares.
E como isso se reflete nas publicações?
Eu acredito que há mais livros publicados por autores negros do que negros trabalhando no mercado editorial. A contribuição artística dos negros tem, historicamente, sido mais aceita na cultura americana do que as próprias pessoas. Mas não é toda a cultura, porque, com frequência, espera-se de escritores negros que escrevam um certo tipo de histórias, normalmente sobre lutas e racismo. Ter mais pessoas negras no mercado editorial diminui as chances de empregados negros se sentirem troféus ou isolados e poderia aumentar não apenas o número de autores negros publicados, mas também a diversidade entre as histórias publicadas.