O cinema brasileiro está muito bem inserido na longa e rica tradição dos road movies ou “filmes de estrada”. Basta pensar em filmes como “Iracema – Uma transa amazônica”, “Mar de rosas”, “Bye bye Brasil”, “Sargento Getúlio”, “Central do Brasil” e “Cinema, aspirinas e urubus” para constatar isso. Na medida em que o nosso país, além de geograficamente enorme, é marcado por toda sorte de deslocamentos internos, é natural que diretores recorram com frequência a esse gênero ou subgênero cinematográfico. Há espaço de sobra para se perder e se reencontrar no Brasil. E “Deserto particular”, novo longa-metragem de Aly Muritiba (“Para minha amada morta”, “Ferrugem”), baiano radicado no Paraná, reitera isso de forma exemplar.
Para um filme que se mostrará tão enamorado pelos deslocamentos, tanto exteriores quanto interiores, é curioso como o início situa o espectador em um ambiente de extrema imobilidade. Daniel é policial militar curitibano. Suspenso por ter agredido um colega durante o treinamento, ele aguarda o resultado da investigação interna fazendo bicos como segurança, cuidando do pai enfermo, lidando com a irmã e se relacionando virtualmente com Sara.
Tudo está em compasso de espera. O futuro profissional de Daniel é incerto. O vídeo da agressão circula pela internet. A doença degenerativa do pai piora a cada dia. Ele não se permite compreender as escolhas da irmã. Quando Sara deixa de responder as mensagens que ele envia, Daniel decide cair na estrada, viajar até a cidade baiana de Sobradinho, em que ela vive, para descobrir o que está acontecendo.
A aproximação física não se dará sem surpresas e distanciamentos. Para além do deslocamento exterior, estrada afora e adentro, está o deslocamento interior e, de tantas formas, inesperado. Daniel não está preparado para o que encontrará. E, de certa forma, tampouco Sara está — ela é elusiva também para se proteger, pois não é quem Daniel esperava que ela fosse.
Surpresa e indecisões
Mas, seja pelas circunstâncias, seja pelo que sentem um pelo outro, Daniel e Sara precisarão superar a surpresa e o desencontro (de ambos) para que consigam efetivamente se encontrar.
Os problemas de Daniel são mais evidentes: ele não sabe o que é, e precisa descobrir e se aceitar como tal. Os problemas de Sara são mais urgentes: vivendo no interior nordestino, admoestada pela avó repressora, pela igreja, pela lembrança e pela expectativa da violência paterna (infligida justamente por ela ser quem é), precisa encontrar uma saída ou, pelo menos, um respiro.
Muritiba e o roteirista Henrique dos Santos lidam com esses personagens de forma impecável, apresentando primeiro Daniel e depois Sara. É como se, para chegar a Sara, o espectador precisasse fazer um esforço similar ao de Daniel, lançando-se na estrada e no imponderável. Graças a essa divisão narrativa, quando chegamos a Sobradinho e à outra vida que se descortinará, estamos melhor preparados para compreender as indecisões e dificuldades de Sara.
A surpresa de Daniel é tão grande quanto aquela que os espectadores (e o protagonista) tiveram com “Traídos pelo desejo” (título brasileiro infeliz para “The crying game”), obra-prima de Neil Jordan lançada no começo da década de 1990. Embora sejam filmes bem diferentes, é interessante notar como toda a conversa sobre a “natureza” de cada indivíduo que pontua o premiado longa de Jordan possa ser aplicada a “Deserto particular”. Nesse sentido, a sequência da conversa de um dos protagonistas com um “ex-gay” é de uma violência muito peculiar e perturbadora. Vemos ali alguém cuja individualidade foi estripada, um sujeito divorciado da própria natureza, morto em vida.
Na estrada, a resposta
A coisa sempre passa ou começa pelo indivíduo. É ele quem pode ter (ou não) a coragem de se lançar na estrada (real ou figurativamente) e de descobrir e de aceitar (ou não) a própria natureza, por assim dizer. Todos somos desertos particulares, nesse sentido. Claro que seria estupidez ignorar ou minimizar a força e os efeitos que a violência do outro tem sobre muitas pessoas em diversos contextos — e, dada a atmosfera reinante no Brasil, em contextos cada vez mais comuns e generalizados.
Mas, em se tratando de Sara, a estrada está aberta, e os primeiros passos já foram dados. Parafraseando a canção de Bonnie Tyler (“Total eclipse of the heart”) que comparece na trilha-sonora, o coração de Sara não resta eclipsado por nada, nem mesmo pelo medo ou pela violência física ou simbólica. Há, claro, a necessidade de investir em um novo deslocamento, na procura de um ambiente um pouco menos intolerante, por mais que ela saiba que, desgraçadamente, não existem oásis no Brasil. Nada disso pode ser menosprezado. Mas, em muitos casos, a resposta está mesmo na estrada.
Por fim, é curioso como “Deserto particular” concentra-se sobretudo nos efeitos interiores dos deslocamentos que enseja, até porque os efeitos exteriores são muito evidentes e já foram abordados à exaustão.
Talvez seja lícito pensar que enquanto filmes como “Bye bye Brasil” devassam o Brasil ou uma certa ideia de Brasil, “Deserto particular” devassa o brasileiro ou, mais especificamente, dois brasileiros, dois desertos possíveis, duas pessoas tão diferentes entre si que acabam se apaixonando.
André de Leones é autor do romance “Eufrates” (José Olympio), entre outros.
Três perguntas para Aly Muritiba (diretor de “Deserto particular”)
“O filme pode ser considerado um road movie de amor”
Como nasce “Deserto particular”?
Estava com uma vontade muito grande de falar sobre os afetos masculinos contemporâneos, mas de uma perspectiva diferente. Já tinha trabalhado o tema sob a ótica da vingança e do arrependimento; no caso de “Deserto particular”, queria falar de amor. Queria compartilhar o que estava sentindo na minha vida e, neste momento difícil que vive nosso país, no qual o discurso de ódio ressoa tanto, seria importante para a audiência entrar em uma sala escura e sentir um pouco de carinho.
“Deserto particular” pode ser considerado um road movie?
Do ponto de vista formal, “Deserto particular” tem uma parte que é road movie, com o deslocamento do protagonista de Curitiba para a Bahia. Mas pode também ser considerado um road movie porque, emocionalmente, os personagens fazem viagens nas quais os contato deles com outras pessoas, outros ambientes, provocam transformações. Nesse sentido, “Deserto particular” pode ser considerado um road movie de amor.
O que “Deserto particular” tem a dizer ao público brasileiro?
Que a tolerância, o afeto, a escuta podem transformar, destruir barreiras e preconceitos. No fim das contas, se nós quisermos, o amor vence. E não precisa ser apenas na ficção.
“Deserto particular”
• Aly Muritiba
• Brasil, 2021, 120 minutos.
• Com Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Thomas Aquino, Laila Garrin e Cynthia Senek.
• Em cartaz às 16h, no Cine Una Belas Artes 3