“A epidemia que se espalha abruptamente é o sopro da morte que vem de todas as direções.” Impossível avançar nas páginas de “De cada quinhentos uma alma” (Companhia das Letras) sem lembrar os acontecimentos no mundo da COVID-19. “É uma guerra contra o invisível e ninguém tem ideia do que é essa porra de vírus”, afirma um dos personagens do mais recente romance de Ana Paula Maia.
Mas o ambiente no qual se movem as criações da escritora carioca, atualmente morando em Curitiba, é mais perto de um cenário apocalíptico (“terra desolada e afligida”) do que do mundo em que ainda estamos. Entre a ira dos céus e a indiferença dos homens, Edgar Wilson (personagem apresentado pela escritora em romances anteriores) tem a missão de recolher e transportar carcaças de animais mortos. Ao vagar por estradas quase desertas, ele enfrenta o autoritarismo de militares e se depara com cenas angustiantes e brutais.
Afinal, “a morte está em toda parte” e é “tempo de matar e morrer”; mesmo a beleza, “que o vento espalha simulando um inverno rigoroso”, é mórbida, pois “carrega o cheiro dos ossos e das vísceras incinerados.” O que resta, então? “Alguma misericórdia; depois só restará a escuridão”, sentencia Tomás, ex-padre, companheiro de Edgar Wilson em suas andanças nas estradas e “vilarejos apagados do mapa”.
Duas vezes vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura, Ana Paula Maia é também roteirista: a série que criou para o Globoplay, “Desalma”, está na segunda temporada. A seguir, uma entrevista com a autora, que, com frases curtas e fortes, construiu uma narrativa tensa e perturbadora até o desfecho, arrebatador.
Além de alguns personagens, o que há em comum entre “De cada quinhentos uma alma” e seus romances mais recentes?
Tudo começa em 2013, com “De gados e homens”, meu quinto livro. Aliás, o título “De cada quinhentos uma alma” pode ser encontrado num parágrafo em “De gados e homens”. Ou seja, tudo interligado. Minha obra é costurada num imenso arco dramático. O prenúncio de um fim dos tempos, seja do mundo ou de um ciclo, está presente em “De gados e homens” e os acontecimentos desse livro já mostram uma perturbação aproximando-se de nós.
O novo livro cita uma epidemia que “se instalou, as estradas estão desertas, assim como ruas, praças e parques”. Como a pandemia do coronavírus – e as consequências, como o isolamento social – impactaram na criação de “De cada quinhentos uma alma”? E na sua vida pessoal?
Iniciei o prenúncio de uma perturbação na ordem social e no ecossistema em “De gados e homens”, como já mencionei. Quando publiquei “Enterre seus mortos”, em 2018, continuei com a ideia de uma perturbação se aproximando, agora não mais no confinamento de gados, e sim nas estradas do interior do país. Neste livro, que é a primeira parte da trilogia, cujo “De cada quinhentos uma alma” é a segunda parte, eu tive a experiência sombria e angustiante de escrever minha ficção, porém assistindo ao mundo real afundar num colapso epidêmico. Isso foi novo. Até então, eu escrevia, fechava a tela do notebook e voltava ao mundo real mais comum. Porém, eu fechava a tela do notebook e o mundo do lado de fora da ficção se tornava cada dia mais imprevisível e mortal.
Como se estabelece a relação entre os homens e os animais em “De cada quinhentos uma alma”?
A relação entre os homens e os animais, em minha obra literária, inicia-se em “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, meu terceiro livro, publicado em 2009. O homem é bestializado à medida que o animal irracional é humanizado. O homem se integra ao animal à medida que come e bebe do seu sangue, tornando-se, assim, parte do animal. Sendo seu predador, que suga sua vida para viver. Com esse pensamento, somado à outras ideias inerentes ao meu pensamento crítico, fui construindo uma obra literária em que essa relação é colocada em evidência em diversos momentos da narrativa. Em “De cada quinhentos uma alma”, o prenúncio do fim, seja do mundo ou de um ciclo, vem alardeado pelos animais e insetos. Em “De gados e homens”, as vacas são os animais em destaque, e uma cena horrível de pessoas que faziam fila na porta do matadouro em busca de restos de vacas mortas para comer foi retratado em 2013. O horror da vida real é ainda pior que o da ficção, pois em 2021 estamos assistindo a isso.
Acredita que “De cada quinhentos uma alma” pode ser lido como uma alegoria do Brasil atual?
Depende do filtro de leitura de cada um. Difícil falar. Mas, sim, é possível. Eu acho que é uma alegoria do que ocorre no mundo.
Como surgiu a ideia de trazer o arrebatamento, descrito na “Bíblia” e retratado em romances recentes como “Os deixados para trás” (Tom Perrotta), para o novo livro? O que mais a impressiona na “Bíblia” do ponto de vista da narrativa?
As questões bíblicas começaram a ser retratadas em minha obra quando escrevi “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, de 2009. Já faz mais de 10 anos que trabalho sobre essas questões bíblicas. Quem leu meus livros pode identificá-las. Sempre gostei da “Bíblia” como um livro para identificar comportamentos, porque possui uma gama rica de personagens e, claro, é um livro que ajudou e muito a construir a sociedade ocidental. Enquanto narrativa, é fascinante e potente.
“A morte está em toda parte”, você escreve. O que representa a morte na sua ficção?
É o principal tema da minha ficção. O segundo tema seria a origem do mal. Nunca encontrei a resposta, mas vale especular.
“Os três homens avançam pela estrada tentando conter o horror de um iminente apocalipse.” E para onde vai a sua literatura depois do apocalipse?
Aí, você vai ter que esperar o próximo livro para descobrir.
Como tem sido a experiência de escrever roteiros, como no caso da série “Desalma”? Consegue enxergar conexões entre os seus livros e a série? Pretende escrever os roteiros de eventuais adaptações audiovisuais de seus romances?
A melhor experiência possível. Gosto muito e “Desalma” possui uma temática que me fascina há muito tempo. Sempre há uma conexão aqui outra ali. Impossível quando se trata de uma obra autoral. Ainda não tenho planos de levar meus livros para o audiovisual, mas gostaria, sim, em algum momento.
Trecho“Tomás não obtém resposta e respira fundo ao acender seu charuto e fumar em silêncio por alguns segundos. Pensa rápido e profundamente. Diante do cenário de horror, compreende que por todos esses anos ele foi preparado para estar exatamente neste lugar, neste exato momento. Seu lugar definitivamente não é em uma paróquia, mas recolhendo corpos, seja de animais ou de homens. Os propósitos do Senhor são mistérios para seus escolhidos, pensa Tomás. Em sua cabeça, somente uma frase ecoa como o som das trombetas dos mensageiros do céu... A morte é chegada. É tempo de matar, é tempo de morrer.
O caos é silencioso. Move-se insuspeito. Penetra pelas brechas ordinárias que ignoramos. Instala-se, e, assim como um organismo vivo, seu instinto é expandir-se, sulcando camada após camada até enraizar-se. Quando nos damos conta, ele é quem já dita as ordens e os próximos movimentos. Nem mortos nem impotentes; estamos dominados.
“De cada quinhentos uma alma”
.Ana Paula Maia
.Companhia das Letras
.108 páginas
.R$ 44,90
audima