Jornal Estado de Minas

CONTOS

Poucas palavras, grandes histórias

Minas são muitas, e não há mais. Ou há, e tem, no diverso que a constitui, certa unidade. Essas múltiplas faces – na unidade identitária assim forjada – desfilam nos microcontos desse “Micros-Beagá”, lançamento da Editora Pangeia que integra a coleção Micromínimus, dedicada aos gêneros literários de pequena extensão. 





Até aquelas Minas e aquelas Geraes que não mais existem emergem desses microcontos, assinados por rapazes e moças desconhecidos, por autores e autoras em início de trajetória e por escritoras e escritores traquejados, maduros, que já colhem de há muito o aplauso do público e o reconhecimento da crítica literária.



O volume reúne 55 autores convidados, dos mais reconhecidos de Minas Gerais, como Alciene Ribeiro Leite, Alexandre Marino, Angela Leite de Souza, Antonio Barreto, Branca Maria de Paula, Cristina Agostinho, Lino de Albergaria, Luis Giffoni e Madu Brandão, para citar somente alguns. Ao lado dos autores convidados, figuram jovens escritores, selecionados em concurso aberto que foi amplamente divulgado.

“Micros-Beagá” traz, de cada autor, cinco microcontos e pequena biografia. Além dos 270 microcontos, há no livro uma pequena apresentação e referências de estudos sobre o microconto, um gênero novo, muito apropriado às mídias sociais. “Nas Minas e nas Geraes, o microconto se faz”, é a frase impressa na última capa, sob uma foto de Beagá.



Nas provas do livro, diversos dos antologiados me escreveram que essa é uma obra que nasce clássica, um marco – referência e inflexão – na literatura de Minas Gerais e do Brasil. Ao reler, agora, o volume pronto, impresso, sem a fragmentação imposta à tarefa de selecionar, escolher, revisar, etc., é que me dei conta do peso, da intensidade, da unitária variedade e grandeza estética colecionada no “Micros-Beagá”. E então concordei com o entusiasmo que me chegava: esses micros exalam originalidade, carregam a perene força e bebem nas melhores lições dos grandes autores, características essenciais da melhor literatura realizada desde sempre nas Minas Gerais.

Algumas histórias

UM HOMEM CARINHOSO
Alexandre Brandão

Do Edifício JK, onde se deitou com Remy, até o local do trabalho dele, na Nova Suíça, eram mais de três quilômetros. Sem dinheiro, cruzou a Amazonas a pé. Remy não estava, nunca tinha estado, ninguém conhecia Remy nenhum. No caminho de volta, suor e lágrima salgavam a perda de um homem carinhoso.

DOCE DE LEITE
Alexandre Marino

Menino ainda, sofria de tristeza. O remédio era o doce de leite feito pela avó no fogão a lenha. Quando se foi, a tristeza foi junto. Nunca esqueceu a avó e aquelas montanhas. Um dia, numa vendinha na estrada, provou o doce de leite ofe- recido por uma velhinha. Decidiu que ali misturaria o veneno. E deixaria a
tristeza para trás.



ENTRE QUATRO PAREDES
Caio Junqueira Maciel

Pintou-as com a cor do amanhecer, influenciada por um poema de Adélia Prado.
Ajeitou-se de tal modo a ficar diante do suposto nascente.
Riu das pessoas que a julgavam alienada.
Estava, enfim, a sós com seu mundo interior.
Deu graças a Deus de poder estar ali confinada.
Então, sabendo que elas têm ouvidos, começou a confessar.

RUA DO QUENTA SOL
Cristina Baracat

Quero uma rua assim, pra quando o inverno chegar, pra quando a minha asa quebrar, pra quando o meu coração sangrar, pra quando você partir, e não se lembrar mais de mim.

ECOS DRUMMONDIANOS
Denise Nascimento

Vi um galho cheio de pássaros, eram vários, era uma algazarra. Comparei com as casas mineiras, quando todos se juntam na cozinha, conversas no rabo do fogão a lenha; quando às seis rezam a novena e tal qual namoradeiras debruçadas na janela veem o de fora passar, e a vontade de perguntar:
“Cê fii de quem?”

SONHO
Luís Giffoni

Sonhou que era uma barata. Um pé enorme apareceu do nada. Seus restos foram encontrados sob a pedra que rolou do morro

DESPERDÍCIO
Rafael Sette Câmara

Moço, que horas é a missa? Não tem missa aqui, senhora. Uai, desde quando? De sempre! Aqui não é igreja. É Museu da Moda. Mas tem torre de igreja, janela de igreja, jeitão de igreja, e num é? Juro. Já foi biblioteca, Câmara Legislativa.




É um prédio M A N U E L I N O. Pensou nos sinais da cruz dados em vão.
Desperdício.

BOM DIA
Rita Espeschit

A janela sonolenta range um começo de fresta. Na cama, a língua amarela do sol mata a memória moribunda de um sonho.

FUGA
Ronaldo Cagiano

Quando saiu em busca de sua Pasárgada, ele olhou os pombos que defecavam na estátua de Getúlio Vargas e teve certeza de que a vida ali era mediocridade e alienação. Foi num domingo de missa e famílias mergulhadas na mesmice e falta de horizontes que Heleno gritou bem alto seu recado: saio dessa cidade para não ficar menor que ela.

* “Micros-Beagá”
* Org: Rauer Ribeiro Rodrigues
* Coletânea de microcontos
* Editora Pangeia
* 336 páginas
* R$ 60
* Lançamento neste sábado,
11 de dezembro, das 10h às 15h,
na Livraria Ouvidor da
Savassi, com a presença
de diversos autores.