Jornal Estado de Minas

PRIMEIRA LEITURA

'Balta'

Pedro Kalil 

O sol batia forte no rosto; o gosto do café ia se arrefecendo em minha boca. Esperava M., que se demorava. Contava os carros como quem gira uma ampulheta gasosa. Mais quatro carros azuis poderiam passar; senão, iria embora. Pensava no mingau de minha mãe. Um carro. No cheiro de um peito seco como o do fim da infância. Outro carro. Na natureza escorregadia da língua enquanto lambia o céu da boca. M. aparece virando a esquina carregando livros e passa direto por mim, como se eu tivesse me tornado um fantasma.





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O problema era metade da bandeira da Paraíba, um pequeno pedaço da de São Paulo, uma faixa na do Rio Grande do Sul, alguns riscos na do Maranhão, aquela estrela do Acre e um triângulo na de Minas Gerais, era o que ouvia meu pai comentar com Floriano em um raro momento em que fisguei um segredo côncavo e que pagava com obnubilação. Ao ouvir o que não poderia ser ouvido e processar o que não poderia ser processado, minha boca se descontrolou enquanto mordia um pão na cozinha e entendia que o problema de meu sangue era por eu ter uma língua e por eu ter dentes. Das veias só corroeriam o quadrilátero fétido de uma uretra cauterizada. 

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A primeira vez que Albert retalhou a boca para proferir algum tipo de sentença foi para detalhar, não sem um sorriso espantado na boca, a forma com que o joelho de R. havia sido esmagado, a ponto de ter a finura de uma tênia. Sua pestilência ressoava mais segura na parte baixa da casa, onde dava para redigir melhor a explanação sobre como o sangue começara a sair pelos ouvidos à medida que um torniquete era embalsamado entre as costelas do rapaz. Na sua vívida representação de uma urna mortuária, eu imaginava os corpos dos meus pais esmagados no carro quando a carga de mármore se desprendeu de um caminhão e assaltou em cheio o vidro, que voava, anunciando o júbilo da solidão. 

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A sensação de não ter o mínimo controle sobre nossa percepção do tempo é tão esclarecedora quanto a de um afogamento. A diferença é que, quando o corpo é invadido pela água, sentimos no pulmão o apaziguamento de todas as latitudes. Impossibilitado do sabor da variação dos dias, da Lua e das luzes, é só a sensação térmica que ajuda a perceber que o mundo em sua volta não morreu e que só você ali sobreviveu, mesmo que trancado em um bunker, sem saber quando tudo poderá ser habitável de novo. De alguma maneira, você não deseja mais sair, porque algum perigo lá fora é mais do que pronunciado. Entretanto, o impulso para ver todo o desastre te faz andar em direção à porta até perceber que ela está trancada por fora e que o fim do mundo não é alhures, mas aqui, na companhia de uma barata, matando o tempo e toda interpelação.   


* “Balta – Fragmentos de deformação”
* Pedro Kalil
* Fotografias de Patrick Arley
* Relicário Edições
* 126 páginas
* R$ 36,90 
* Lançamento nesta sexta, às 18h, na Livraria 
Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi 

Sobre o livro

“Balta” é o nome recebido pelo narrador do livro por um amigo de seu pai, 
Floriano, que acreditava que o jovem seria de suma importância para o futuro da pátria. Apesar dos acontecimentos de “Balta” se concentrarem em um período histórico – a última ditadura brasileira –, o tempo é expandido,  constituído por vários pedaços da história de nossa república. Narrado em primeira pessoa, mas somente com fragmentos, “Balta” é novela construída como aporia: a interrupção de formação se torna deformação, a impossibilidade de uma narrativa teleológica se transforma em fragmento, a confissão é para nublar os acontecimentos, aquilo que se mostra ao mesmo tempo se esconde e a linguagem rebusca na hora de deixar crua a violência. O projeto gráfico, realizado por Mariana Mist Oeste, explora não só o concreto na capa, mas o contraste com a abertura costurada da lombada e a flexibilidade das páginas, entre o texto do livro e as tarjas que emolduram os fragmentos.





Sobre os autores

Pedro Kalil é doutor em teoria da literatura e literatura comparada pelo PosLit da Fale/UFMG. Publicou “O menino que queria virar vento” (Aletria, 2012), “Charlotte-peixe-borboleta” (Relicário, 2016), 
“O ano da fumaça” (Urutau, 2020) e “Autor/Autoria: Roland Barthes e Cahiers du Cinema” (EdUFAL, 2021). 

Patrick Arley é antropólogo e fotógrafo, com mais de 10 anos de experiência, com participações em exposições no Brasil e no exterior. Em 2015, foi selecionado para “The Exposure Award – Portraiture Collection”, no Museu do Louvre (Paris), com uma das imagens do trabalho que fez em Moçambique. Participou, em 2017, da exposição “Reinado de Chico Calu – Repertórios Sagrados da Irmandade Os Carolinos”, no Museu Inimá de Paula, em Belo Horizonte.

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