Quem conta a história é o próprio Antônio Maria na crônica publicada mais ou menos um mês antes de sua morte. Convidado por Carlos Drummond de Andrade para participar do livro “Rio de Janeiro em prosa & verso”, que o poeta mineiro e Manuel Bandeira organizavam para a Editora José Olympio – volume que reuniria os melhores textos escritos sobre a Cidade Maravilhosa –, o menino grande recifense hesita. Fica surpreso com o convite. O nosso mais completo cronista, na opinião do mestre Luis Fernando Verissimo, não acreditava na força dos seus textos.
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Troca de afetos em tempos sombriosAugusto Massi: 'Me sinto herdeiro dessa militância a favor da crônica'Poucas palavras, grandes históriasAntologia 'Os sabiás da crônica' celebra legado de sexteto de escritoresCom a morte prematura aos 43 anos, em outubro de 1964, Maria não viveria o bastante para ver suas crônicas ganharem o respeitável formato do livro. Uma primeira reunião de seus textos só apareceria em 1968: “O Jornal de Antônio Maria”, com apresentação de Ivan Lessa e Paulo Francis, além de ilustrações do próprio cronista. Depois dela, outros volumes seriam publicados: os melhores foram organizados pelo jornalista, e excelente cronista, Joaquim Ferreira dos Santos, autor ainda de uma divertidíssima biografia do escritor pernambucano.
Mas confesso que só fui entender por que Verissimo considera Antônio Maria o mais completo de todos os nossos cronistas depois da leitura de “Vento vadio: As crônicas de Antônio Maria”. Com o volume, organizado pelo pesquisador Guilherme Tauil, podemos finalmente ter a noção da grandeza do escritor pernambucano. Um cronista que fazia humor, mas também fazia textos mais sérios: que podia ser lírico ou sarcástico. Com a mesma intensidade. E qualidade.
Recorte limitador
“Como pesquisador de literatura brasileira, sempre tive interesse em estudar a crônica. É um gênero ainda pouco examinado pela academia, e embora recentemente tenham surgido trabalhos importantes, ainda há muito a se fazer”, conta Tauil, que no ano passado defendeu mestrado sobre Antônio Maria na Universidade de São Paulo (USP). “E entre nossos principais cronistas, achei que Antônio Maria era o mais lacunar, que rendia um trabalho de fôlego. Primeiro porque, de fato, tínhamos acesso a muito pouco de sua obra: menos de 10% estava compilado em livro. Segundo, tinha a impressão de que o recorte das antologias era excessivamente limitador.”
O livro organizado por Guilherme destrói, definitivamente, um certo lugar-comum criado, desde sua morte, de que Maria seria apenas o cronista das agitadas noites cariocas dos anos 1950 e 1960. E que quase todas as edições anteriores ajudaram a criar. Maria acabaria virando apenas o “informante em coisas noturnas”. (Leia box.)
“Podíamos ler um excelente Antônio Maria noturno, um grande personagem das boates de Copacabana, daquela badalação que foi a noite do Rio de Janeiro, então capital federal. Mas não estavam ainda estabelecidos momentos e assuntos que, na minha opinião, são fundamentais para entender bem a sua obra, como, por exemplo, uma constante sensação de deslocamento e de inferioridade”, afirma Guilherme Tauil.
Segundo o pesquisador paulista, esse sentimento de deslocamento e inferioridade passava por sua origem nordestina, sua afrodescendência (o único daquela geração de cronistas) e pela trajetória profissional. “Diferente dos outros cronistas, que vieram todos de registros da literatura, Maria deu seus primeiros passos no rádio, no mundo da oralidade. Então fui estudar isso, e dessa reinterpretação de sua poética nasceu ‘Vento vadio’, uma antologia pautada por resgatar essas questões, explica Tauil.
O resultado da grande pesquisa de arquivo feita por Guilherme é um alentado volume, de quase 500 páginas, com 185 crônicas selecionadas: 132 inéditas em livro. E que se lê com um enorme prazer. Com vocês, mais uma vez, Antônio Maria.
Para Drummond, um “moderno João do Rio”
O convite feito por Drummond ao cronista pernambucano para participar do livro sobre o Rio não renderia apenas a crônica de Antônio Maria. Inspiraria o próprio Drummond, que numa crônica publicada em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois da morte de Maria, também se recordaria do episódio. E num dos trechos escreve: “Poeta que trocou a poesia em miúdos, jornalista que não aspirou a ser escritor, largava todos os dias uma prosa cheia de sabor e vivacidade, como um João do Rio Moderno. Fica-se imaginando que livro não poderia ele ter deixado, reunindo lembranças pernambucanas, de que guardava a nostalgia, as visões da noite carioca, de que foi o intérprete mais sensível”.
Uma crônica
“Destemor acima de tudo”
Estava espanado na cama, morto de fome, sem um tostão no paletó que eu via sobre o espaldar na cadeira. Era o ano de 1941, quando este gordo cronista pesava menos cinquenta quilos e cinquenta remorsos. Morávamos no edifício Andraus e acreditávamos num sol de praia que nos dava a pigmentação necessária à dignidade de um moço de Copacabana. Passava do meio-dia, o banho de mar tinha sido muito agradável, mas dele só restava aquela fome sem remédio, sem ter onde matar, ali, nas redondezas do Posto 5. O jeito era fechar os olhos e pedir a Deus umas horas de sono para o santo esquecimento da nossa pobreza. Pensei em vender o canário-do-império, comprado na véspera pelo meu companheiro de apartamento. Ou seria mais fácil comê-lo frito? Enquanto rejeitava essas duas soluções, entrou de quarto adentro um cheiro de comida gostosa que, de tão ativo, devia ser um assado de novilha rondando a minha miséria. Levantei-me num pulo e abri a porta.
Ao lado, no 29, o mensageiro da pensão acabava de deixar uma marmita de razoável gabarito, rescendendo carne feita no torresmo. Lembrei-me de coisas honestas e sagradas — minha mãe e a fita azul da Congregação Mariana —, mas lembrei-me muito mais de mim, um andarilho, um coitado, a quem a Comissão de Inquérito do céu jamais negaria perdão por crime de gula. Tirei a tampa da primeira panelinha e dei com três fatias de carne assada (dessas que são escuras e tomam todo o gosto do molho) ao lado de um purê sem importância e de uma folha de alface própria para canário. Não perdi mais tempo. Revi a solidão do corredor, meti a mão e ia tirando as três fatias quando a porta se abriu.
Agachado, humilhadíssimo, vi primeiro os pés da moça; depois, os tornozelos, os joelhos, as coxas e, finalmente, a sunga amarela. Estávamos, agora, frente a frente. Os olhos dela (verdes), indignados. Os meus (marrons mesmo), suplicantes. Ela cheia de razão e eu, apenas, com fome. O silêncio demorava, quando ela o quebrou: “Faça o favor de me dizer seu nome”. Respondi, com a maior dignidade deste mundo, disposto a todos os males que porventura caíssem sobre minha culpa: “Fernando Lobo, minha senhora”.
Agachado, humilhadíssimo, vi primeiro os pés da moça; depois, os tornozelos, os joelhos, as coxas e, finalmente, a sunga amarela. Estávamos, agora, frente a frente. Os olhos dela (verdes), indignados. Os meus (marrons mesmo), suplicantes. Ela cheia de razão e eu, apenas, com fome. O silêncio demorava, quando ela o quebrou: “Faça o favor de me dizer seu nome”. Respondi, com a maior dignidade deste mundo, disposto a todos os males que porventura caíssem sobre minha culpa: “Fernando Lobo, minha senhora”.
“Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria”
• Organização de Guilherme Tauil
•Todavia
• 469 páginas
• R$ 89,90