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Estado de Minas LITERATURA

Augusto Massi: 'Me sinto herdeiro dessa militância a favor da crônica'

Poeta detalha a organização da antologia 'Os sabiás da crônica', o momento do jornalismo brasileiro e a relação dele com a literatura de Minas Gerais


17/12/2021 04:00 - atualizado 17/12/2021 17:20

 Rubem Braga, em Ipanema, no verão de 1967, o anfitrião recebeu Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, José Carlos Oliveira, Vinicius de Moraes e Fernando Sabino
Encontro marcado para divulgação da Editora Sabiá. Na cobertura de Rubem Braga, em Ipanema, no verão de 1967, o anfitrião recebeu Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, José Carlos Oliveira, Vinicius de Moraes e Fernando Sabino (foto: paulo garcez/divulgação)
Augusto Massi é um tipo raro na vida literária brasileira: com um pé na universidade, e outro no mundo editorial, o poeta e crítico paulista construiu, ao longo de mais de três décadas, uma carreira invejável. Seja no câmpus universitário, orientando teses como a de Guilherme Tauil, e que resultou em “Vento vadio”, seja como editor, com passagens por casas editoriais como Duas Cidades, 34, Cosac Naify e, mais recentemente a mineira Autêntica, a digital de Massi pode ser encontrada em muito do melhor que é produzido hoje na literatura brasileira.   

Leia a resenha: Antologia 'Os sabiás da crônica' celebra legado de sexteto de escritores
Este paulista de fala baixa, mansa e meditada, que de tão discreto às vezes parece ser mineiro, conversou com o Pensar. Na entrevista, falou, entre outros assuntos, da crônica brasileira, de seu trabalho como editor, de sua relação com a literatura mineira e do atual momento do jornalismo brasileiro.

Acompanho seu trabalho desde que você organizou, ainda nos anos 1990, a coleção “Claro enigma”. De lá pra cá, muita água passou debaixo da ponte: seu trabalho na Editora 34, na Cosac Naify. E, claro, o mais recente de todos: "Os sabiás da crônica". Você poderia falar um pouco da sua trajetória?
As pessoas sempre manifestam certa incompreensão, uma visão parcial ou fragmentada a respeito da minha trajetória intelectual. Não deixa de ser curioso, alguns não me reconhecem como alguém da esfera universitária: sou professor de literatura brasileira na USP desde 1990. Outros ficam perplexos quando ficam sabendo que durante 10 anos respondi pelo projeto editorial da Cosac Naify; por fim, muitos não se recordam das minhas várias passagens pela Folha de S. Paulo, onde fui editor de livros, crítico literário com coluna fixa sobre poesia contemporânea, entrevistador contumaz (Drummond, João Cabral, Ferreira Gullar, Raduan Nassar, Adélia Prado, Orides Fontela etc.), correspondente em Madri e em Paris etc.

E, por mais que soe como um absurdo ou um relato fantástico, em nome da USP e da Folha de S. Paulo, em 1984, trouxe Jorge Luis Borges ao Brasil. Tudo isso pode soar meio ‘faits divers’, um tanto de diletantismo e muita indisciplina intelectual. Mas, visto com alguma generosidade, também pode apontar para um diálogo permanente com a literatura.

A poesia sempre teve um papel central na sua trajetória, não é verdade?
A poesia sempre foi o nervo central. Como você bem lembrou, o primeiro ciclo da minha experiência editorial começa com a coleção “Claro enigma”, feita em regime de parceria com a Livraria Duas Cidades. Entre 1988 e 1990, publiquei 13 livros que se propunham a realizar um mapeamento da poesia brasileira contemporânea, seja pela reunião da obra completa de nomes como Francisco Alvim, Orides Fontela, Sebastião Uchoa Leite, Age de Carvalho, Maria Lúcia Alvim, seja poetas até então inéditos ou pouco conhecidos, caso do Paulo Henriques Britto, Alcides Villaça, Alberto Martins, Duda Machado etc. Tudo em sintonia com alguns dos melhores críticos literários que assinaram orelhas memoráveis: Roberto Schwarz sobre Francisco Alvim, Flora Sussekind sobre Ronaldo Brito, Antonio Candido sobre Orides, Murilo Marcondes de Moura sobre Alberto Martins, Júlio Castañon sobre Age de Carvalho, Rodrigo Naves sobre José Paulo Paes.

Além disso, no melhor espírito modernista, procurei estabelecer uma conversa entre poetas e artistas plásticos: Mira Schendel e Orides, Amílcar de Castro e Sebastião Uchoa Leite, Nuno Ramos e Rubens Rodrigues Torres Filho, Tunga e João Moura Jr., Guto Lacaz e Duda Machado. Boa parte desses autores vingaram. E até mesmo Maria Lúcia Alvim, que, na época, não havia sido bem compreendida, foi resgatada com o premiado “Batendo pasto” (Relicário, 2020), graças ao olhar atento e generoso do Ricardo Domeneck e do Guilherme Gontijo Flores. A Claro Enigma foi minha primeira intervenção crítica. A coleção correspondia ao esforço de escrever um ensaio. Naquele período, editar um livro era caríssimo. E ainda tínhamos que lutar contra o preconceito de que “poesia não vende”.

A Claro Enigma não só vendeu bem como me abriu os olhos para uma produção ignorada que chegava pelo correio, vinda de diferentes cantos do país. Parte do material foi incorporado num grande evento, “Artes e ofícios da poesia”, realizado em maio de 1990. Poetas e editores do Brasil todo  – Cléber Teixeira, Massao Ohno etc. – ocuparam o Masp durante uma semana intensa, frenética, fanática, manhã, tarde e noite. Poetas que não pude publicar na Claro Enigma foram contemplados no evento e, posteriormente, participaram de uma antologia homônima, na qual foram convidados a redigir uma espécie de “itinerário de Pasárgada”.

Nessas duas aventuras editoriais, contei sempre com a Livraria Duas Cidades e com uma amiga de todas as horas, Gisela Creni, que a partir dessa experiência acabou por escrever “Editores artesanais brasileiros” (Autêntica, 2017). Encerrado este primeiro ciclo, entrei na Universidade de São Paulo. E, paradoxalmente, foi na condição de professor que me senti forçado a retomar as antigas tarefas de editor. Para ficarmos num só exemplo, era impossível ministrar um curso sobre modernismo sem falar do Raul Bopp. No entanto, os livros do poeta não estavam disponíveis sequer na biblioteca da faculdade. Como oferecer aos alunos uma visão de conjunto da sua obra poética? Não restava outra alternativa: mãos à obra! Organizei a primeira edição das “Poesias completas de Raul Bopp” (José Olympio, 1998).

Anos depois, em 2013, preparei a segunda edição revista e ampliada. Nesse caso, contei com a cumplicidade da editora Maria Amélia Mello, à frente da José Olympio. E que também me convidou para organizar “Os sabiás da crônica”, pela Autêntica. Para encurtar, o segundo ciclo de minha intervenção crítica surgiu em função do exercício da docência. Comecei a observar que estava se abrindo um abismo entre a geração de grandes críticos formados pela USP e os alunos de graduação e pós-graduação que já estavam perdendo contato com um repertório de obras de referência. Então, propus à Editora 34 montar uma coleção de crítica voltada para o público universitário.

A receptividade da editora foi tão boa que montamos um conselho editorial – Antonio Candido, Alfredo Bosi, Gilda de Mello e Souza, Davi Arrigucci, Flora Sussekind, Roberto Schwarz –  e começamos a republicar títulos que constavam do catálogo da extinta Livraria Duas Cidades. Foi uma experiência muito bem-sucedida, tanto do ponto de vista pessoal como do editorial. Pude desfrutar do convívio e da amizade intelectual com várias dessas figuras. O Antonio Candido abraçou o projeto. Não só batizou a coleção, “Espírito crítico”, como cedeu materiais inéditos para a reedição de “Os parceiros do Rio Bonito”. Tive ainda o privilégio de organizar a última coletânea de ensaios de Gilda Mello e Souza, “A ideia e o figurado!”, onde se encontra um ensaio notável sobre Fred Astaire.

Pouco a pouco, a coleção foi ampliando sua proposta inicial e passou a publicar obras clássicas de Georg Lukács, Erich Auerbach, Benjamin, Adorno. A coleção continua bastante ativa e atualmente é tocada pelo Milton Ohata. Em 2001, surgiu o convite para criar uma coleção em uma nova editora: Cosac Naify.  A porta de entrada foi a “Prosa do mundo”, coleção composta por clássicos da literatura universal, coordenada por Davi Arrigucci, Samuel Titan e por mim.

Foto de Augusto Massi,
Augusto Massi, organizador daantologia lançada pela Editora Autêntica (foto: DIVUlGAÇÃO)
Foi na Cosac que você permaneceu por mais tempo...
Quando entrei, a editora tinha pouco mais que 70 títulos; quando saí, o catálogo exibia mais de 800 títulos. Posso dizer que a minha intervenção crítica no mundo editorial passou por três ciclos: a coleção “Claro enigma”, pela Editora Duas Cidades; a coleção “Espírito crítico”, pela Editora 34, e o projeto mais amplo de todos, pela Cosac Naify, pensado para ser uma editora que pudesse integrar todas as artes, num diapasão teórico que pudesse ser ao mesmo tempo universitária [trazendo índice onomástico, fortunas críticas, muitas notas] e artística [departamento gráfico dentro da editora, projetos gráficos originais]. Isso ainda hoje não foi inteiramente percebido pelo mercado.

Éramos identificados por edições luxuosas. Mas tínhamos coleções e livros baratos que conceitualmente pareciam um luxo, porém a liberdade total para ousar, correr riscos, repaginar o livro. Outro ponto interessante, havia um propósito de articular o catálogo infantil com os livros de arte, os livros de antropologia com os de fotografia, os de arquitetura. A ideia era ampliar os territórios do livro, fazer o leitor compreender a materialidade deste objeto: expor as lombadas costuradas e coladas, fazer o leitor sentir a gramatura e a textura do papel, jogar as páginas tradicionais de abertura (todo aquele esqueleto de ficha catalográfica, páginas de créditos fossem para o final e que o leitor penetrasse logo naquele cinema de imagens e palavras).

Nunca desejei ser um editor profissional ou proprietário de uma editora. A minha atuação dentro do meio sempre esteve vinculada a projetos. Por isso, gosto de falar em intervenções críticas. Editar é uma forma de meditar sobre a cena cultural. Por que toda esta longa exposição? A resposta pode ser resumida do seguinte modo: no prefácio que escrevi para “Os sabiás da crônica” procurei reconstruir uma sociabilidade literária que se formou em torno da Editora do Autor e da Editora Sabiá; talvez essa sinuosa linha de pesquisa revele ligações clandestinas e subterrâneas com a minha experiência pessoal. De alguma forma, me sinto herdeiro e continuador dessa militância a favor da crônica realizada pelo Rubem Braga e pelo Fernando Sabino.   

Você é um dos principais críticos literários da sua geração. E ajudou a desfazer o preconceito que existia ao gênero crônica. Poderia falar um pouco sobre sua visão da crônica na literatura brasileira? 
Sinceramente, não me considero um dos principais críticos literários da minha geração. Estou bem longe disso. E mesmo com relação à discussão em torno da crônica, escrevi muito pouco. Entre o que julgo relevante, está um livrinho bem simpático que inventei, “Retratos parisienses” (José Olympio, 2013), reunindo crônicas inéditas do Rubem Braga. Mais recentemente, venho me dedicando à crítica com a devida concentração. Nesse sentido, creio que a Flora Sussekind é a principal crítica da minha geração, com trabalhos originais, de fôlego, renovando a história literária, com alta voltagem teórica e um recorte agudíssimo da produção contemporânea.

Num âmbito mais amplo, temos críticos como o Murilo Marcondes de Moura, autor de “O mundo sitiado: A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial” (Editora 34, 2016), livro vazado numa linguagem equilibrada e limpa, que ergue pontes entre o principal acontecimento histórico do século passado e os poetas do alto modernismo. Embora não se debrucem sobre a crônica, José Miguel Wisnik, Nuno Ramos, Lorenzo Mammì, Viviana Bosi, Eduardo Sterzi, entre outros, vêm publicando livros de ensaios notáveis. Dentro do terreno da crônica, tenho a convicção de que o crítico que realmente representou um ponto de virada foi John Gledson.

Ele vislumbrou um viés interpretativo para a ficção de Machado de Assis a partir da crônica do escritor. O modelo de edição proposto e consolidado por ele – estabelecimento confiável dos textos, ótimas notas explicativas, introduções que combinam contexto histórico e análise detalhada – tornou-se uma referência obrigatória.

De lá para cá, surgiram trabalhos de fôlego: “Toda crônica” (Agir, 2004), de Lima Barreto, organizada em dois volumes por Raquel Valença e Beatriz Resende (esta última responde por vários resgates e incursões enriquecedoras pelo território da crônica); “Bilac, o jornalista” (Editora Unicamp/ Edusp/ Imprensa Oficial do Estado, 2006), organizada em três volumes por Antonio Dimas, as crônicas de Manuel Bandeira (Cosac Naify, 2011), organizadas por Júlio Castañon Guimarães, também em três volumes: “Crônicas da província do Brasil” (2006) e dois volumes intitulados “Crônicas inéditas” (2008, 2009). De algum modo, contribui com a organização de duas obras extraordinárias de Carlos Drummond de Andrade:  “Confissões de Minas” e “Passeios na ilha”. 

Na web, o trabalho do cronista Humberto Werneck, feito no Portal da Crônica, também me parece importante...
Sem dúvidas e ia falar dele agora. É visível que o estudo da crônica vem adquirindo maior centralidade. O “Portal da crônica”, do Instituto Moreira Salles, coordenado de forma competente pelo cronista  Humberto Werneck confirma o crescente interesse pelo gênero como uma ferramenta para a reflexão e para o estudo mais amplo da nossa cultura. Curiosamente, no contrapé dessas observações, é preciso tomar alguns cuidados com os critérios editoriais que têm pautado as edições dos nossos cronistas modernos.

Ao preparar "Os sabiás da crônica", constatei que existem sérios problemas com relação a fixação dos textos. Por vezes, as crônicas são simplesmente transcritas dos jornais e das revistas, sem nenhuma preparação ou checagem no sentido de verificar se aquela crônica, por exemplo, foi publicada posteriormente em livro. As crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos foram muito modificadas pelos próprios cronistas quando passam para o livro. Outra questão, quando um organizador opta por não reeditar os livros originais e opta por diluir o conjunto das crônicas em uma antologia temática,  perde-se a organização original proposta pelo cronista: lendo os livros podemos entender por que ele escolheu determinada crônica para abrir o volume e outra para fechar? Do meu ângulo, essa escolha sugere uma preferência ou um gosto pessoal do cronista que sempre deve ser levado em conta.

O volume de crônicas de Antônio Maria, organizado pelo Guilherme Tauil, é resultado de um mestrado defendido sob sua orientação. Poderia falar um pouco deste trabalho?
"Vento vadio" (Todavia, 2021), organizada pelo Guilherme Tauil, representa uma das alegrias da vida universitária. Toda orientação não deixa de ser também uma forma de aprendizado. O orientando, seja de mestrado ou doutorado, possibilita uma ampliação do nosso horizonte de leituras, nos obriga a enveredar por novos territórios. Em alguma medida, nos rejuvenescem, desenferrujam e reacendem a curiosidade pela pesquisa. Alguns chegam quase prontos. Esse parece ser o caso do Guilherme Tauil. Desde a graduação, cultivava um interesse quase obsessivo pela crônica: organizou ciclos de debates, criou um blog, A Quarta Capa, e aos 22 anos, publicou um volume de crônicas, "Sobreviventes do verão" (2015), prefaciado por Ivan Angelo e com orelha assinada pelo Luís Henrique Pellanda.

Quando me procurou para ingressar no mestrado, o seu objeto de estudo já estava definido: Antônio Maria. Como eu estava mergulhado na pesquisa de "Os sabiás da crônica", pude ajudá-lo criando um contraponto com a trajetória do Antonio Maria. Passamos tardes inteiras conversando sobre a crônica. Quando ocorre essa troca de ideias - no plano da pesquisa, da bibliografia e da própria fatura dos textos – temos a percepção irrefutável de que este é o núcleo central e decisivo da cultura universitária. Dispensa qualquer métrica ou avaliação imposta por Capes, CNPQ ou Fapesp. Desde o título, "Vento vadio", é o resultado de uma ampla pesquisa que resgatou inúmeras crônicas que permaneciam inéditas em livro e eram desconhecidas até mesmo dos leitores mais fiéis de Antônio Maria. O prefácio traz uma interpretação nova e original da obra do cronista com grande poder de síntese. O único reparo: a edição ganharia em poder de exposição se tivesse optado por uma estrutura composta por blocos cronológicos. Mas, posso estar redondamente enganado e quem sabe revelando preconceitos de uma sensibilidade crítica formada no século passado. A verdade é que a publicação de "Vento vadio" deve ser saudada como uma contribuição rara, notável e bem-vinda.

Dito isso, percebo que na universidade há um interesse crescente pela crônica. Tenho participado de muitas bancas e, nota que entre os autores mais estudados, figuram Lima Barreto, Cecília Meireles e Rubem Braga. Este último teve suas "Crônicas de guerra" revisitadas numa dissertação de mestrado exemplar escrita por Rafael Ireno. Trata-se de outro leitor fanático e praticante do gênero. Neste momento, está em Paris, elaborando um roteiro das afinidades entre Rubem Braga e Jacques Prévert.

De quais nomes da nova geração de cronistas você gosta?
Tem uma trinca que está na linha de frente: Antônio Prata, Fabrício Corsaletti e Gregório Duvivier. E para trazer de volta a velha política café com leite (e pão de queijo), considero Adélia Prado um braço desarmado da boa crônica. Existe na sua prosa uma fabulação do boato, da fofoca e do romanesco. Numa outra escala, aprecio a elegância discreta da cronista Fernanda Takai. Tostão é um cronista à parte. Escreve bem com os dois pés. E usa a cabeça como ninguém. Médico e monstro da crônica. Estou tentando me colocar em dia com a crônica atual. Não me sinto à vontade neste terreno. Precisaria dominar melhor o universo dos sites e dos blogues. Tarefa a que estou me dedicando, pretendo ir além da categoria de seguidores.

Como jornalista experiente, como você vê hoje o jornalismo que é feito no país?
O jornalismo está passando por mudanças significativas. Algumas tão radicais que ameaçam devorar a própria profissão. Por conta dos fortes vínculos que sempre pautaram a relação entre jornal e crônica esta, certamente, sofrerá transformações profundas. Hoje, por exemplo, já temos mais colunistas do que cronistas. A fidelidade do leitor diário de jornal me parece ser muito distinta da cultura do cancelamento praticada pelo leitor das redes sociais. Quem escreve um diário íntimo num blog não tem o mesmo repertório literário do cronista de jornal.

O que dizer do abismo que separa as notícias publicadas na imprensa escrita da fragilidade da informação que circula pelo mundo online? E o que me parece alarmante é como os novos meios estão alterando completamente a vivência cotidiana do tempo, uniformizando os dias da semana. Os ritmos de trabalho invadiram todos os recessos do descanso. A precarização dos contratos de trabalho desconsidera dia e noite, semana e final de semana, hora extra, adicional noturno. É impressionante como o “domingo” está perdendo seus contornos. Na crônica praticada pelos "Sabiás", o domingo traduzia dimensões coletivas concretas e abria um leque íntimo de sentimentos líricos. Não é que levantamos tarde aos domingos. Era a crônica domingueira que nos despertava para o mundo. Assim como Eric Hobsbawm descreveu desde a "Era dos Impérios à Era dos Extremos", um cronista teria matéria para "A era dos domingos". Por que hoje é sábado? 

Quero falar da sua poesia: você recentemente publicou "Borra", um poema sobre a tragédia de Brumadinho. Poderia falar sobre ele?
Minha trajetória poética é meio acidentada. O meu livro de estreia,  "Negativo" (Companhia das Letras, 1991), tem trinta anos. De lá pra cá, só voltei a publicar por pequenas editoras e com tiragens reduzidas: "A vida errada" (7 Letras, 2001) e "Gabinete de curiosidades", escrito em parceria com Lu Menezes (Coleção Luna Parque, 2016). Até os amigos mais próximos me consideram um poeta póstumo. Mas, na verdade, nunca parei de escrever. Publiquei pouco. Em 2020, lanço um livro novo. "Borra" (Tipografia do Zé, 2020) é um poema que devo ao amigo de todas as horas, Mário Alex Rosa. Foi quem precipitou. Estive em Belo Horizonte para falar sobre "Boca do inferno", contos de Otto Lara Resende (obra-prima relativamente ignorada). No dia seguinte, o Mário me levou para conhecer a Tipografia do Zé, do Flávio Vignoli. Foi a crônica de uma amizade anunciada. Viramos, imediatamente, velhos amigos e de longa data. Coisas de Minas. Amizades se misturam no tempo.

Quando ambos me convidaram para participar da belíssima coleção "Lição de Coisas", o poema começou a se compor na minha cabeça. "Borra" tem uma dimensão política que passa pela tipografia. Recolher letras mortas e compor palavras vivas. A tragédia precisava ser traduzida. Pensei que a sensação de impotência diante da catástrofe podia ser transformada na potência de um berro coletivo mixado num cartaz. O Flávio reciclou com recursos construtivos o alto poder de destruição. O poema tensiona dois movimentos estruturais: luta e luto, berro e borra. Barrar o discurso da empresa. Não deixar que borrassem Brumadinho. Todo poema deve provocar ruído.

Você sempre teve forte relação com a literatura mineira. Pode falar um pouco desta sua paixão?
Este pode ser um bom fecho para nossa conversa. Se você me permitir, vou tomar certa liberdade e enveredar por um caminho pessoal. Queria registrar aqui a predileção que tenho por um tema que perpassa a literatura mineira: a infância. Penso em escrever um ensaio onde seja possível reunir “O iniciado do vento”, de Aníbal Machado, “Teleco o coelhinho”, de Murilo Rubião, “O porão", de Otto Lara Resende, “Minha vida de menina”, de Helena Morley, “Miguilim” de Guimarães Rosa e tantos outros. Há muito tempo convivo com essa linhagem familiar. E, no fim da linha, confesso minha profunda admiração pelo mestre da narrativa curta: Luiz Vilela.

Também não posso deixar de comentar a literatura “dita infantil”: Angela-Lago, Wander Piroli e Nelson Cruz. Três autores simplesmente geniais. Tenho orgulho de ter sido editor de Angela Lago e Nelson Cruz. E tenho inveja do poeta Fabrício Marques que marcou um golaço ao escrever a biografia "Wander Piroli, Uma manada de búfalos dentro do peito" (Conceito, 2018).

O primeiro título de literatura infantil que publiquei na Cosac Naify foi "Conto de escola" (2002), de Machado de Assis, ilustrado por Nelson Cruz. Com este título inaugurei uma coleção, Dedinho de Prosa, coordenada em parceria com Odilon Moraes. No finalzinho de 2021, diante do atual quadro político, nacional e internacional, não deixa de ser uma alegria que a crônica esteja viva e vacinada, disponibilizando para os leitores, três doses (digo títulos!): “Vento vadio”, “Os sabiás da crônica” e “A fina flor de Stanislaw Ponte Preta”. Uma ótima vacina para combatermos qualquer risco de variantes ou novas cepas do mau humor.


capa do livro 'Os sabiás da crônica'

“Os sabiás da crônica”
• Antologia com crônicas de Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, • Stanislaw Ponte Preta e Vinicius de Moraes
• Organização e prefácio de Augusto Massi
• Autêntica
• 350 páginas
• R$ 74,90



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