Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Antologia 'Os sabiás da crônica' celebra legado de sexteto de escritores

Presente nos periódicos do país desde pelo menos o século 19, a crônica foi praticada por nomes como Machado de Assis e José de Alencar, que resistiram, entretanto, à ideia de publicá-la em livro, já que, por muito tempo, seu conteúdo era tido como algo menor, passageiro, destinado ao esquecimento.  Mesmo assim, ela não deixou de seduzir Lima Barreto, Olavo Bilac, Mário e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles e Raquel de Queiroz. Com o passar dos anos, a crônica superou preconceitos (especialmente dos críticos – os leitores sempre a prestigiaram) e conquistou seu lugar no mercado editorial, ocupando prateleiras de destaque nas livrarias e nas listas dos mais vendidos.



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Organizado e prefaciado por Augusto Massi, “Os sabiás da crônica – antologia” (Autêntica) celebra o legado de Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) e José Carlos de Oliveira, publicando 15 textos de cada um. Na capa e nas páginas iniciais, as imagens feitas em 1967 pelo fotógrafo Paulo Garcez no apartamento de Braga mostram sua convivência fraterna, baseada em sólidos vínculos de amizade e num sentimento de grupo, embora pertençam a pelo menos três gerações, como explica Massi na abertura do volume. 

Algo semelhante ocorre quanto à sua origem. Se todos foram identificados pelo imaginário popular, em alguma medida, como “cronistas do Rio”, a verdade é que somente Vinicius e Sérgio Porto eram, de fato, cariocas. O amor à cidade, no entanto, era comum a todos, e a crônica, gênero tipicamente urbano, o meio que mais usaram para expressá-lo. 

 Os “sabiás” reunidos por Augusto Massi integram um ciclo por ele situado entre o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e o fechamento da Editora Sabiá, em 1972. Extraídos de obras de estreia e até de coletâneas póstumas, os 90 textos fornecem um rico panorama da produção de cada um. A animá-lo, o propósito de armar um quadro histórico e cultural útil para compreender o Brasil do período retratado. 





O que também fica em evidência é o poder de comunicação do gênero, caracte rizado pela linguagem clara, simples e direta e pela dicção humanizada e empática da voz do cronista, capaz de cativar numerosos leitores, responsáveis por sua popularidade. 


Relação com o espaço


 Mais um elemento digno de nota é a relação com o espaço. Os territórios pelos quais se movem os seis autores são dotados de encantos que escapam aos menos avisados. A começar pela natureza que os rodeia. Plantas e bichos, principalmente pássaros, vão para o centro do palco, assim como o sol e o mar. O “Tuim criado no dedo”, de Rubem Braga, assim como “O conde e o passarinho”, de Vinicius, que trata da notória afeição do amigo capi- xaba pelas aves, são apenas alguns exemplos.

 O modo de lidar com a cidade também chama a atenção. O Rio de Janeiro, sobretudo, sai da condição de cenário para ganhar status de protagonista. Muitas vezes, aparece como mulher sedutora, cheia de encantos, capaz de enfeitiçar os que dela se aproximam. Copacabana – e, principalmente, Ipanema – ganham uma centralidade inédita. Em longo texto, Paulo Mendes Campos conta a história do bairro desde quando era vila e reunia poucas casas, como as de Aníbal Machado e Vinicius de Moraes. A menção à cobertura de Rubem Braga, na Rua Barão da Torre, atrás da Praça General Osório, em Ipanema, é inevitável. Tida por Mendes Campos como o lugar onde todos se encontram, é responsável por conferir ao seu proprietário o epíteto de “fazendeiro do ar”.





Na pena dos seis cronistas, outra tarefa fundamental é descobrir os incríveis personagens que habitam a cidade. Braga relembra Noel Rosa; Vinicius cita Grande Otelo, Ciro Monteiro, Dorival Caymmi e Antônio Maria; Paulo Mendes Campos imortaliza Garrincha e Lamartine Babo; José Carlos de Oliveira evoca Lúcio Cardoso. Os tipos comuns se tornam extraordinários. “O balé do lei- teiro”, de Fernando Sabino, e “O cego de Ipanema”, de Paulo Mendes Campos, são provas de que na existência aparentemente banal é também possível enxergar o que é único. Cenas da “vida miúda” vivida por “gente miúda”, facilmente desprezada pela maioria, viram pedras preciosas. “A última crônica”, texto já clássico de Sabino, lança sua luz radiante sobre um modesto casal anônimo festejando o aniversário da filha num botequim da Gávea, quando a megalópole deixa de ser fria e impessoal para situar-se como o lugar da realização de sonhos, e, por que não, da produção de pequenos milagres...

Matéria sempre farta para a boa literatura, a memória é também alimento de que se servem os seis. Para nutrir a sua prosa, Rubem Braga retorna ao Córrego Amarelo, da Cachoeiro do Itapemirim natal. Fernando Sabino volta aos tempos de estudante do Ginásio Mineiro, quando era colega de sala de Hélio Pellegrino, e ao Instituto Padre Machado, também em Belo Horizonte, onde lecionou ao lado de Otto Lara Resende, filho do diretor da escola. Paulo Mendes Campos lamenta as mudanças urbanísticas sofridas pela capital mineira (“Enterram a minha cidade e muito de mim com ela”).  Sérgio Porto chora a “Casa demolida”.

Em óbvia referência autobiográfica, José Carlos Oliveira relembra sua “Chegada ao Rio”. Os ecos da infância e da juventude de todos eles, quase sempre, se fazem sentir nos textos reunidos por Augusto Massi.




Leitura para fruição e deleite (e ótimo presente de Natal...), “Os sabiás”, no entanto, oferece mais. Dá espe- rança e alento. É testemunho vigoroso de que já existiu uma “época de ouro” em vários circuitos da vida cultural brasileira (literatura, música, cinema, teatro...), quando foi possível cultivar, bem mais que hoje, a liberdade do espírito, a fala solta e a convivência prazerosa e bem-humorada com os amigos, sem as precauções e cautelas tão em voga na atualidade, dominada, certamente, por uma paisagem mais sombria e mais triste.

*Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras

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