João Moraleida
Especial para o EM
Em “Poesia sem fim”, último filme do chileno Alejandro Jodorowsky, o poeta Nicanor Parra e o cineasta deambulam pela Santiago da década de 60. São jovens e conversam sobre literatura e novas formas de vida, na esteira das experimentações undergrounds da década. Decidem, junto a um grupo de anarquistas, amarrar a estátua do Nobel Pablo Neruda num ritual para pôr fim a influência do poeta sobre sua geração. Uma espécie de morte ao pai, contra o lirismo masculino nerudiano, celebram o surrealismo, o esoterismo e a comicidade na arte. A revolta é contra o cânone e seus valores comportamentais, contra o Neruda que é lembrado por Hans Magnus Enzensberger em “Tumulto” por seu desmaio ao descobrir que não havia sido escolhido Nobel um ano antes de sua nomeação.
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Aproximando-se do romance de formação, é Vicente, personagem-poeta quem nos guiará por suas descobertas. Acompanhamos o seu choque ao ler pela primeira vez Emily Dickinson e não a compreender, seus primeiros amores e as longas conversas sobre literatura entre Vicente e Gonzalo, seu amigo e ex-padrasto. Ao contrário de “Poesia sem fim”, Vicente não precisa de um esforço árduo para romper com seu pai e se afirmar como poeta, porque Zambra examina em seu romance o percurso na vida de um jovem, cujo pai é suficientemente cômico e enganador. Nele são as experiências de vida e histórias de amores que conduzem, de maneira incerta, os personagens a descobrirem a si próprios através da literatura. Sem sentimentalismo, Zambra fornece um panorama que percorre duas gerações e suas relações com a literatura, o sexo e o amor. Numa escrita prazerosa e estimulante, recupera, com o auxílio de um narrador irônico e opinativo, a relação que muitas vezes os modernistas insistiram: a proximidade entre vida e obra, porque em “Poeta chileno”, são as contingências e decisões equivocadas de seus personagens o material para as suas criações.
Diferentemente de contemporâneos como o norueguês Karl Ove Knausgard, cuja série autobiográfica esgota até mesmo as ações mais banais e cotidianas como material para sua ficção, Alejandro Zambra brinca com a ideia de contar uma história, ao criar, até mesmo, uma lista de supostos poetas chilenos imprescindíveis para que a personagem Pru os entreviste. É que força de uma boa ficção reside, talvez, naquilo que o crítico literário James Wood aponta para a presença dos detalhes.
Como um demiurgo de sua criação, o escritor dá vida a ações que no mundo comum nos esquecemos e que só poderão ser transmitidas por um bom narrador, capaz de dar e retirar vida de objetos, ações, diálogos e sensações. Essa é a capacidade meditativa da literatura, ao enquadrar uma vida de experiências em tantas páginas, e é o que pensa o personagem Gonzalo sobre um conto de Raymond Carver. Ao se recordar com perfeição por ter lido diversas vezes, deixou que o texto fizesse parte de sua vida intimamente: “Havia uma janela iluminada, alta demais para que se pudesse olhar lá dentro. Gonzalo se concentra nessa frase de Carver, ou melhor, refugia-se, esconde-se nela: o livro é uma máscara, e essa frase qualquer, escolhida ao acaso, é o elástico a prendê-la.”
Retrato das gerações e seus valores, Zambra nos conduz ao seu mapa afetivo da literatura e sugere que a poesia chilena não se faz somente com os cânones, como Neruda, Gabriela Mistral ou mesmo Nicanor Parra, e sim das efervescências constantes nas ruas e nos encontros entre pessoas. Efervescências essas que se dão não somente ao se entregar às experiências de vida com paixão e ânimo, mas por conseguir extrair disso uma forma de vida única, capaz de distanciar da vida alienante e burocrática. Não é à toa que escolheu bem para uma de suas epígrafes a frase do poeta e ensaísta Fabían Casas: “Uma técnica que serve para escrever deve servir também para viver.”
"POETA CHILENO''
Alejandro Zambra
Tradução de Miguel del Castillo
Companhia das Letras
432 páginas
R$ 59,90