Cerca de 140 anos antes de toda aquela festança, o mineiro Cândido José de Araújo Viana (1793-1875), futuro Marquês de Sapucaí, ainda era visconde e presidia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Ele estava incomodado com estudos publicados por pesquisadores europeus sobre o nosso país. Além dele, sócios do instituto defendiam que o Brasil deveria patrocinar um grupo de cientistas para estudar, sem nenhum tipo de controle estrangeiro, o ainda pouco conhecido território nacional. Até aquele momento, os nossos naturalistas apenas acompanhavam as expedições que aqui chegavam, sem qualquer autonomia.
Os integrantes do IHGB queriam conhecer a topografia, rios, minerais, plantas, animais e costumes do Brasil. A ideia foi levada a quem tinha o poder de decisão: o herdeiro do trono, Dom Pedro II. O jovem imperador aprovou o plano, assumiu a criação da Imperial Comissão Científica da Exploração das Províncias do Norte, e tornou lei a despesa prevista para o trabalho. Ficou definido, então, que o Ceará deveria ser o ponto de partida, pois havia relatos sobre indícios de minerais por aquelas bandas. Além disso, o governo já estudava com os franceses a possibilidade de aclimatação de camelos no Nordeste, o que no fim das contas se tornaria uma espécie de tragicomédia.
A saga da primeira expedição científica brasileira é contada no livro “Catorze camelos para o Ceará” (Todavia), do jornalista gaúcho Delmo Moreira. Com uma vasta pesquisa, o autor destaca personagens como o médico e botânico Freire Alemão, que via naquele desafio uma grande oportunidade para sua carreira de pesquisador, o Barão de Capanema, rico empreendedor formado em engenharia e mineralogia, além de ser amigo de infância de Dom Pedro II, e uma curiosa versão do poeta e etnólogo Gonçalves Dias, atribulado com um casamento que ia de mal a pior. Apesar das grandes diferenças de personalidade, os três viveram, juntos, grandes aventuras.
Em abril de 1859, três anos depois da criação da Comissão Científica, o naturalista Du Chantal, vice-presidente da Sociedade Imperial Zoológica de Aclimatação de Paris, recebeu a missão de comprar 14 camelos para o imperador do Brasil, que estava interessado em aproveitá-los como alternativa às mulas de carga muito utilizadas no sertão nordestino. Em viagem à Argélia, então sob o domínio francês, Du Chantal arrematou 10 fêmeas, quatro delas prenhes, e quatro machos. Todos os animais foram marcados com a letra B de Brasil. Aquilo seria uma espécie de experimento paralelo, mas a mistura de ineditismo e exotismo transformou o projeto na marca da missão de Dom Pedro II.
“A viagem de Argel a Fortaleza durou 34 dias. Apesar das fortes tempestades e das dificuldades com alimentação, os camelos chegaram bem-dispostos e com saúde para enfrentar os testes de aclimatação ao Nordeste. Numa ensolarada manhã de julho, foram empurrados, um a um, para uma baia móvel e içados até jangadas que os levaram, com água pelas canelas, ao trapiche do porto. Na praia, protegida por uma cobertura de panos leves, a comitiva de políticos e cientistas enviados pelo imperador acompanhou o desembarque. Logo atrás das autoridades, juntava-se uma multidão, assustada com os animais exóticos e desconfiada dos mouros”, diz Delmo Moreira no prólogo do livro.
O autor conta que os três principais expedicionários, o Barão de Capanema, Freire Alemão e Gonçalves Dias, encontraram, em suas andanças, um país muito castigado pela pobreza e pela escravidão. O jornalista destaca também que alguns integrantes da comissão promoveram grandes farras pelos grotões brasileiros do século 19. Por causa disso, políticos conservadores, que consideravam o investimento em ciência um grande desperdício, deram vários apelidos ao grupo. As principais alcunhas foram “Comissão de Defloramento”, pelos escândalos, e “Comissão das Borboletas”, por sua suposta inutilidade.
RELATÓRIO CENSURADO
De toda forma, a primeira expedição científica brasileira conseguiu reunir um bom material, voltando com coleções botânicas e zoológicas, pesquisas geológicas, dados geográficos e astronômicos. Os viajantes não contavam, porém, com a censura de alguns trechos do relatório final, que destacavam diversos problemas que deveriam ser resolvidos pelo governo. Um pouco dessa história foi contada no samba da Imperatriz, em 1995, e o recente incêndio registrado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, pode ter sido o golpe final para as coleções dos viajantes. A encrenca política – completa – está em “Catorze camelos para o Ceará”.
“Catorze camelos para o Ceará – A história da primeira expedição científica brasileira”
. Delmo Moreira
. Todavia Editora
. Zahar Editora
. 288 páginas
. R$ 74,90 (edição impressa) e R$ 39,90 (e-book)
Entrevista com Delmo Moreira
“Os personagens me atraíram para a história”
Como foi o processo de pesquisa para escrever o livro? O que o atraiu para contar essa história?
Caótico, no começo. A pesquisa era um divertimento, que eu tocava nas horas livres. Há uns 10 anos, bati com uma referência histórica do projeto dos camelos quando lia documentos sobre as secas nordestinas para uma reportagem. Só co- nhecia o caso pelo enredo da (escola de samba) Imperatriz (Leopoldinense): “Mais vale um jegue que me carregue do que um camelo que me derrube lá no Ceará”. O projeto era citado como piada, uma das tantas soluções inúteis que os governos inventaram para combater as secas.
Tinha sempre esse tom tra gicômico, de absurdo. Achei que dava um livro e comecei a pesquisar o que havia sobre o episódio, sobre esse mundo das expedições científicas e sobre o que era o Brasil daquele tempo. Vi que ali não tinha um fracasso, mas uma grande história para ser contada, cheia de sucessos e de fracassos.
O livro reúne personagens peculiares, camelos, ciência e um vasto Brasil a ser conhecido. O que mais chamou a atenção na primeira expedição científica brasileira?
Além dos fatos que a pesquisa ia revelando para mim, foram, sem dúvida, os personagens que me atraíram de vez para a história. Gonçalves Dias, Capanema e Freire Alemão foram figuras notáveis, de histórias riquíssimas. Cada um ao seu jeito, com origens, formação e personalidades muito diferentes.
Freire Alemão partiu para o sertão para fazer a grande pesquisa de sua carreira de botânico; Capanema, mineralogista, corria atrás de aventura; Dias, etnólogo, além de poeta, tentava fugir de um casamento infeliz. Para contar a história da primeira expedição científica brasileira tinha de contar também sobre a vida desses homens e do tempo em que eles viveram.
A expedição foi uma espécie de tragicomédia? Quais outras características você destacaria e qual o legado deixado pelas pesquisas realizadas durante aquele período?
Apesar de a Comissão Imperial ter ficado co- nhecida como “Comissão das Borboletas”, pela suposta inutilidade, ou “Comissão de Defloramento”, pelos escândalos causados no Ceará, ela executou um grande e inédito trabalho científico. Nunca uma missão de cientistas e pesqui- sadores brasileiros tinha feito algo parecido.
Trouxe importantes coleções botânicas e zooló- gicas, fez estudos geográficos, etnológicos e astronômicos. Ela não empacou no sertão, mas na corte. Nada estava preparado para receber o trabalho e houve um boicote político violento por parte dos gabinetes conservadores que lide- ravam os governos da época.
A comunidade científica no Brasil ainda enfrenta muitos obstáculos pela falta de infraestrutura, de incentivo ou mesmo devido à burocracia. Há semelhanças com a época de Dom Pedro II?
A publicação do relato de viagem dos expedicionários foi censurada pelo gabinete ministerial. O governo achava que os relatos sobre miséria e dificuldades administrativas da expedição iriam prejudicar nossa imagem no exterior. Os expedicionários tinham feito um retrato precioso do que era a vida nas províncias na metade do século 19.
A corte não conhecia essa realidade, mas gastar dinheiro com educação ou pesquisa científica não era coisa que passasse pela cabeça dos donos do Orçamento. O que se tinha ali eram senhores de terra disputando interesses em cima de verbas que sempre consideravam curtas.
Mas é uma comparação difícil com os dias de hoje. Dom Pedro II era um homem culto, ilustrado, realmente incentivador das artes e da ciência, preocupado de verdade em melhorar a educação do país. Seria uma injustiça com o monarca brasileira.
Por que essa história é pouco conhecida entre nós, brasileiros? Você teve dificuldades para encontrar informações sobre aquele período?
Primeiro, sem dúvida, o culpado pelo desco- nhecimento é o caso dos camelos: não houve interesse oficial em divulgar a experiência. A tentativa de aclimatação não foi feita realmente. Os bichos alimentaram as fofocas políticas e acabaram doados para zoológicos particulares de fazendeiros.
Foi um fiasco, com gente importante envolvida, que preferiu inventar um caso de inadaptação da espécie ao Ceará. Também colaborou para essa pouca repercussão a maneira como o país lidou com as coleções e os projetos de pesquisa da comissão. Mas há dezenas de ótimos trabalhos e estudos sobre a comissão e pude contar com muito material sobre a época.