Jornal Estado de Minas

ULYSSES, 100

Caetano W. Galindo: 'Leitor comum tem plenas condições de acesso a Ulysses'

Craque dos dribles e nós górdios que as línguas professam, Caetano Galindo traduziu, além das diabruras joycianas, os não menos complicados Thomas Pynchon, J. D. Salinger e David Foster Wallace, todos detentores de relações manhosas e complexas com a própria língua.



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Pela tradução de “Ulysses”, Galindo ganhou um Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. A mesma Associação que lhe deu outro prêmio pelo empenho de levar à língua portuguesa “Graça infinita”, o grande romance de David Foster Wallace.

Nesta entrevista exclusiva ao Pensar, o escritor, tradutor e professor de história da língua portuguesa da Universidade Federal do Paraná Caetano Galindo comenta as próprias revisões feitas em “Ulysses” e a tradução em andamento — desde 2005 — do “Finnegans Wake”. 

Nesta edição especial, você revisita o texto da própria tradução e faz uma releitura “que reflete algo do que hei de ter aprendido”. Mas na nota do tradutor, há 10 anos, você dizia se despedir do livro. O que mudou na sua abordagem da obra de Joyce? 
Sobre me despedir da tradução, bom... só termina quando acaba, né? Não é a coisa mais comum do mundo você retornar e revisar inteira uma tradução que continua sendo editada, mas o “Ulysses” também não é o livro mais comum do mundo! O que mudou pra mim, se for pra sintetizar, tem a ver com uma meia dúzia de soluções que de fato não me deixaram feliz na época, e que agora eu pude substituir e, acima de tudo, talvez uma sensação geral ler o livro com mais distanciamento, menos preocupação (inclusive preocupação de impressionar), mais atento ao efeito geral e ao impacto humano. Acho que este novo “Ulysses” está mais “redondo”, e que a minha mão ali está um tanto menos pesada.



 
Qual o retorno que você teve do tal “leitor comum” a quem você dirige o seu guia “Sim, eu digo sim”? O leitor brasileiro abriu mão de só relegar o romance ao conceito de difícil e já se dispõe a saboreá-lo ou ainda se encontra no ponto de só reclamar das pedras no caminho?
Olha, tenho a impressão de que, entre a publicação da tradução do Houaiss (em 1966) e o dia de hoje, o livro foi gradualmente saindo desse lugar de “clássico hermético intocável” e assumindo uma posição mais central e mais acessível. A tradução da professora Bernardina da Silveira Pinheiro teve um impacto importante, e acho que a minha (e depois o guia) também deu uma mão. O livro continua sendo difícil, é claro, mas há mais vias de acesso, mais auxílio, e o próprio leitorado brasileiro também se sofisticou um bocado nesse tempo. Não sei se o “Ulysses” chegará um dia a ser um livro tipicamente destinado a esse “leitor comum”. Mas acho que já estamos numa situação em que esse dito leitor comum tem plenas condições de acesso ao livro.
 
Qual foi o critério usado para selecionar os ensaios que iriam comparecer neste volume? Sobretudo quando se leva em conta que existem alguns “aparatos de auxílio” em português.
Os ensaios são todos originais, até pra dar conta desse fato, de que há outros conjuntos de textos por aí. Mesmo os dois exemplos da recepção dos anos 1920 estão sendo publicados aqui pela primeira vez. E todos os textos produzidos para a nossa edição partem desse novo momento. É muito diferente escrever sobre o “Ulysses” nos anos 1980-1990, quando a presença do livro no Brasil era uma, e escrever agora, no centenário, com três traduções circulando e o livro muito mais lido. A gente está em posição de olhar com mais tranquilidade pro livro. Menos polêmica, menos propaganda, menos academicismo.
 
Tendo enfrentado as dificuldades (e, vá lá, as delícias) na tradução, você se sente estimulado a seguir adiante e traduzir o ainda mais complicado “Finnegans Wake”? No final do seu guia você diz que a tradução está “em curso”. É possível pensar em prazos ou ainda é cedo?
A tradução do “Wake” está “em curso”, sem exagero, desde 2005, mais ou menos. Agora em março deve sair na Penguin/Companhia o volume com o teatro e os livros de poesia de Joyce, e com isso fica faltando apenas este livro pra gente publicar a obra completa de Joyce. Eu espero conseguir me dedicar mais diretamente a isso nos próximos dois anos, porque minha meta pessoal é publicar a tradução, e quem sabe algum tipo de “guia” até 2024.




 
Sendo James Joyce tão inteligente e erudito, capaz de misturar referências e línguas no ensopado do romance, por que você acredita que ele criou um personagem central tão ao rés do chão? O artefato teria falhado se Leopold Bloom fosse um intelectual tão sofisticado quanto o criador? 
Essa é uma superpergunta. Vem comigo. Joyce começa (em “Dublinenses”) escrevendo sobre uma cidade. Dali ele retira um “eu” (no “Retrato do artista quando jovem”), e não um eu qualquer, mas um alter ego, baseado muito diretamente nele mesmo. Ele olha pro umbigo, portanto. No “Finnegans Wake”, ele vai olhar pro mundo todo, e além. Os personagens vão se derreter e se misturar com tudo mais. Mas esse último passo só foi possível porque o “Ulysses”, que começa como uma segunda parte do “Retrato”, passa pelo lindíssimo choque térmico que é a entrada de Leopold Bloom, e, depois, pela coda com a voz de Molly. O projeto todo do livro se baseia nesse contraste, e na decisão acertadíssima de ir gradualmente abandonando o alter ego, o umbigo, o mundo conhecido, pela vida real de um cidadão qualquer. Porém, vale lembrar que Bloom é tudo, menos um cidadão “qualquer”. Ele é encantador, esquisito, divertido, pervertido, interessado, acima de tudo curioso.

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