“Quem em que mundo e em que tempo lerá essas palavras escritas?” (Stephen Dedalus)
Leitor, leitora, vocês escolhem: ler “Ulysses”, não ler “Ulysses”. A perda é de vocês, o ganho também, a depender da decisão. Cem anos que o livro de James Joyce está em circulação e aí começa a ficar complicado empilhar desculpas, além da óbvia de o livro ser, bem, difícil. O modelo pode ser o do Paul Valéry, que dizia: “Meu fácil me enfada, meu difícil me guia. Absolutamente todos os livros que li, e todos os que me foram úteis, foram difíceis”. Suemos a mente, além de suar os corpos, essa a proposta.
Então, vamos começar.
Bom-dia, distintos cavalheiros e damas. Estamos preparados? Este é um cursozinho rápido e despretensioso de introdução ao romance do senhor James Joyce, irlandês chegado a enfiar o pé na jaca (perdão pela redundância) e gênio irrequieto e tinhoso nas horas vagas, que são mais do que ele está disposto a admitir, autor desse livrão chamado “Ulysses”, em pelo menos dois sentidos: é grande porque é volumoso, é grande porque foi escrito com tinta de gênio. É também, lembrei mais um sentido gaiato aqui, porque é um tanto difícil de ler e muita gente tem gasto suor na tarefa e saliva para convencer novos incautos a adentrarem a arena das tentativas e outros tantos têm se mostrado contrários a qualquer forma de convencimento. Uns e outros se cansam a certa altura. Mas quase sempre é cansaço feliz, se houver uma pitada de boa vontade.
Um tantinho do Brasil pode estar de olho nas celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna, mas o resto do mundo, neste mês de fevereiro que entra (e pelo resto do ano, da década e possivelmente do milênio) está de olho é em outro centenário, o do lançamento do romance do senhor Joyce, em 2 de fevereiro de 1922, data em que o escritor comemorava 40 anos. Há motivos para badalações, claro. O livro é reunião de dois acintes, de bom e de difícil. Escolham, meus caros, minhas caras. Se estiverem com sanha de virar as costas ao gênio, vocês é quem perdem, só digo isso.
A edição comemorativa de “Ulysses” vem com tradução revista pelo Caetano W. Galindo, responsável pela façanha que foi lançada há 10 anos na coleção de clássicos da Penguin Companhia das Letras e a terceira feita no país (há também uma de Antonio Houaiss e uma de Bernardina da Silva Pinheiro, mas a de Galindo deixa ambas no chinelo).
Acrescida agora, além da revisão, de ilustrações de Robert Motherwell e graciosos ensaios de uma pá de gente, entre as quais Fritz Senn, que já presidiu a Fundação Internacional James Joyce, e Sandra Guardini Vasconcelos, renomada estudiosa da história do romance aqui deste lado do Atlântico, autora, entre outros, de “A formação do romance inglês”, vencedor de um Jabuti.
Os ensaios são aquelas barras laterais em que a gente pode se apoiar quando não sentir segurança para andar sozinho. Os que precisarem de ajuda extra contam também com a publicação de um guia escrito pelo tradutor, com o título de “Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao ‘Ulysses’ de James Joyce”. Favorzão que nos presta o senhor Galindo. Acho que posso dizer com tranquilidade que ficamos agradecidos.
Vai assim
Estamos em Dublin, é o dia 16 de junho de 1904, quando o romance se inicia. De manhã cedo até a madrugada do dia seguinte, mas para todos os efeitos ainda o mesmo dia, uma vez que ninguém foi dormir de vez, a trama de “Ulysses” acompanha algumas personagens centrais: Stephen Dedalus, arremedo de Telêmaco, Leopold Bloom, suposto Ulisses, sua ‘conje’ Molly, uma quase Penélope, em circulação pela cidade (bem, a não ser Molly-Penélope, caseira como era de praxe e necessidade de analogia com um dos textos mais fundamentais de base).
Pois é, algo no romance de Joyce remete mesmo ao universo do poema de Homero chamado “Odisseia”, mas não é pré-requisito ter lido este para entender aquele, até porque essas referências mais óbvias são desdobradas em muitas outras, bem mais sutis. Agora, que ajuda, ajuda, não vou mentir. Na biografia de Richard Ellmann, ele detalha: “Stephen não é só Dédalo, mas Ícaro, Hamlet, Shakespeare, Lúcifer” (‘veja também trecho do ensaio de Sandra Guardini’). E quando alguém (está bem, eu conto, se vocês realmente precisam saber, foi o Italo Svevo) perguntou a Joyce o motivo do título, ele sintetizou: “É meu sistema de trabalho”.
Durante o dia, as personagens correm daqui pra ali e dali pra lá e embora o senhor Bloom não seja um gênio da raça, antes pelo contrário, é até um cara bem tranquilo, na medida do possível, o senhor Joyce é de sua parte, sim, gênio, e lança mão de variadas técnicas literárias e mudanças de tom para erguer esse que é um monumento incontornável do modernismo.
“James preconizava que não há arte sem forma, sendo a técnica e a execução decisivas na metamorfose da matéria bruta em obra de arte”, escreve a senhora Guardini, não na maior intimidade de chamar o escritor pelo primeiro nome, mas referindo-se a Henry James, antecessor imediato do outro James, o Joyce que está no centro de nossas preocupações e homenagens hoje. Ela está mencionando, no caso, que a insatisfação com o estado do romance não era novidade, e vinha de pelo menos meio século antes do salto quântico provocado pelo irlandês exilado. Mas a contribuição dele foi além: “Joyce operaria uma implosão nessa forma literária que havia construído uma história ao longo de dois séculos”. Ou seja, Joyce, o demolidor.
O livro tem uma coisa qualquer de anticlimática, não vamos nos iludir, e não só porque nada de particularmente extraordinário acontece (de novo, é um dia comum, em que coisas triviais e corriqueiras se passam, só que magnificadas pelas lentes de aumento do escritor minucioso que enxerga demais), mas porque estava nos planos do autor fazer um romance sobre um dia comum na vida de um homem comum, embora com um método extraordinário. Trabalho de compactação, diga-se, a despeito do tamanho desmedido que o volume alcança. O próprio Joyce escreveu num texto crítico sua preocupação em pôr a vida real no palco: “Penso que, a partir da mesmice sombria da existência, pode-se extrair uma medida de vida dramática”.
Herança jovial e meio bêbada
Acontece que Leopold Bloom, de lá pra cá, deixou de ser sujeito comum, tanto que se fazem homenagens a ele (ou ao seu autor, é claro) com um dia especial, aquele em que o romance transcorre. Todo ano comemora-se o Bloomsday, o dia de Bloom, na data de 16 de junho, em múltiplos lugares do mundo. Em alguns lugares, há quem comemore também o Mollysday, ou seja, o dia da dona Marion, conhecida como Molly, a esposa do Leopold e responsável pelo famoso monólogo interior direto ao final do livro. Algo que faria a Penélope original ficar chocada, certeza. Longa vida ao Bloom e à sua senhora, longa vida ao Joyce. Também serve de desculpa para a rapaziada encher a cara, o que é possível imaginar que Joyce não só aprovaria como se juntaria à horda. Aliás, no meio do “Ulysses” está dito: “Um bom quebracabeças ia ser cruzar Dublin sem passar por um bar”, nessa grafia toda especial de Joyce de prescindir dos hifens (Galindo faz uma longa nota de tradutor na edição original para explicar por que Joyce não gosta nem de hífen nem de vírgula). Dirce Waltrick do Amarante diz, num ensaio a respeito do Bloomsday que faz parte da edição especial: “Nesse dia, Du- blin se espalha mundo afora, num cruzamento de culturas que sempre foi muito valorizado por um exilado, por opção, como James Joyce”.
O outro herói do livro é a língua, aquela que o senhor Joyce torce e retorce para fazer a dança mágica que pretendia, e que elevou a outra potência no livro seguinte e derradeiro da própria lavra, o “Finnegans Wake” (mas essa é outra história, para o curso avançado – paciência, senhoras e senhores, ele há de vir um dia). O escritor, como se vê, era genial e forçava a barra sempre um pouco além, esse danado. Se “Ulysses” era a substância de um único dia, o “Finnegans” representa o sonho noturno, não mais de uma personagem ou conjunto de personagens, mas talvez da humanidade como um todo.
Dessa discrepância entre narrador e personagem, no caso do “Ulysses”, se fez um planeta, senhoras e senhores. Um planeta no qual toda pompa sofrerá menosprezo e recebe tratamento de ridículo, para tirar o fedor de escolástica. Agora, não se pode negar: é um romance que transborda de si para virar referência em toda parte. O senhor Joyce é tão genial que de lê-lo a gente se sente um pouco contaminado e um tico mais inteligente do que nossa bestice de todo santo dia deixa transparecer.
Aparatos
Os ensaios que compõem a edição especial do romance joyciano são, para dizer pouco, excelentes. Vão desde um histórico das traduções do escritor no Brasil e sua recepção entre intelectuais e afins (a cargo de Vitor Alevato do Amaral, coordenador de um grupo de estudos joycianos no Brasil), até a recepção irlandesa ao romance, no ensaio de John McCourt, texto produzido especialmente para a edição, embora no fundo seja um compilado do livro “Consuming Joyce: 100 years of ‘Ulysses’ in Ireland”, no prelo. São ensaios não só bem escritos, mas que apontam caminhos e traçam mapas de leitura e potencialidades de discussão e formam aquilo que o filósofo Jacques Derrida chamou de “o ‘software’ Joyce de hoje, o ‘Joyceware’”, que está sendo estudado pelo mundo inteiro, pelo “James Joyce Inc.” que é a coletividade de interessados e pesquisadores, estudiosos, literatos.
É claro que às vezes os textos passam rápido demais por algumas questões. Por exemplo, o McCourt dá uma canetada para falar da recepção do livro de Joyce na Irlanda, quando o texto do biógrafo (a biografia de Richard Ellmann chama-se simplesmente “James Joyce”) explica, em miúdos pormenores, o longo e tortuoso caminho, cheio de espinhos, que o senhor Joyce enfrentou quando o livro foi acusado de obsceno e obscuro e proibido nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ou seja, a questão não é tão jovial quanto o texto do ensaio leva a crer num primeiro momento. Mas evidente que são abordagens distintas que só podem resultar em percepções diferenciadas. No ensaio de Fabio Akcerlrud Durão ele faz, como o título entrega, “Em defesa da dificuldade”, um incitamento ao leitor mais acomodado, com inclusive uma escala das dificuldades a serem enfrentadas e dicas de como contornar (ou melhor, adentrar) os obstáculos.
Há ainda duas resenhas da época, uma delas de Joseph Collins, publicada em 28 de maio de 1922 no The New York Times, ou seja, pouco mais de três meses depois do lançamento do livro. Outra é do historiador francês Louis Gillet, e foi publicada em 1925 na Revue des Deux Mondes. “‘Ulysses’ é um desses mastodontes que alcançam a glória como um tanque: jamais um autor havia jogado na cabeça do público uma montanha de papel tão grande”, reclama Gillet, numa sucessão de mal-entendidos que ele lista na sua, vamos dizer, compreensão do romance.
Importante é pensar que essas coisas se completam umas às outras e que os interessados nos estudos joycianos têm a quem recorrer quando em apuros, ou seja, o que é praticamente o que ocorre o tempo todo. Essa multiplicação de textos críticos só aumenta a reputação do autor e melhora a recepção. Um dia terminamos a tradução completa. O senhor Joyce, aliás, requisitava, entre debochado e sério, um leitor insone que se debruçasse a vida inteira sobre seus escritos.
Os finalmentes
Agora que estamos próximos do fim, um breve recado. Se vocês esperam um final arrepiante e tudo, não posso dizer outra coisa, vocês vão se decepcionar. Outra coisa curiosa ao fim da leitura é que a gente fica assim com vontade de escrever de maneira meio desbragada, um pouco como o tradutor Caetano Galindo faz (e muito bem, diga-se de passagem) o senhor Joyce soar, como se ele fosse não um tiozão das antigas – que ele não era mesmo sendo, apesar de centenário e pimpão –, mas um garotão de hoje em dia, novo em folha, cheio das manhas e das gírias mais atualizadas, renovado e reflorescido.
Se os convenci a darem nova chance ao livro, tanto melhor, era uma das intenções deste texto. De minha parte, sei que estou na boa companhia do biógrafo de Joyce, Richard Ellmann, que lembra o quanto o senhor Joyce é um sujeito difícil: “Ele não deseja conquistar-nos, mas que nós o conquistemos. Em outras palavras, não há convites, mas a porta está entreaberta”. Se não os convenci, vou de citação de escritor local, pago-lhes com um piparote e adeus. Mas eu, se fosse vocês, dava uma nova oportunidade ao recado centenário do livro. Duvido vocês não virarem bloomistas, bloomólogos, bloomólatras inveterados, joycianos convictos todos. Basta um empurrãozinho e uma pitada daquela boa vontade que foi mencionada lá no início, espargida sem contenção. Sobre a literatura modernista de modo geral, madame Sandra Guardini diz que ela “representa o esforço de dar forma à experiência da perda de sentido, de estabilidade e de ordem em um mundo em crise”. É triste e é real, mas também pode ser bem divertido e inteligente, como prova Joyce. Estamos, portanto, com dona Guardini. E rezamos pela cartilha do escritor irlandês. Ele mesmo, em conversa com Arthur Power, chegou a dizer que literatura não pode ser mais feita em plano único: “O tema moderno são as forças subterrâneas, aquelas correntes ocultas que governam tudo e conduzem a humanidade contra o fluxo aparente”.
Como falou e disse Fritz Senn num ensaio deste volume comemorativo, “o ‘Ulysses’ pode facilmente passar em brancas nuvens – e pode também se tornar um vício”. Ele sugere inclusive que venha com aquele tipo de advertência aos incautos: “Este livro pode gerar dependência”.
Evidente que tem uns detalhes que não pudemos tratar, porque a pressa nos comove. Ficam para uma próxima oportunidade, se houver. Era esse o recado possível neste dia em que estamos, paciência. Declaro a aula de hoje ‘encerada’. Trocadilho bobo, só para rirmos juntos um bocadinho aqui. Vão e sejam felizes. Boa sorte, bom dia. Ergam seus copos, por favor.
* Paulo Paniago é professor de jornalismo na Universidade de Brasília
Trechos dos ensaios
“‘Ulysses’: Um jogo inesgotável”, de Fritz Senn
“Nós confrontamos obstáculos, obscuridades, e alguns deles resistem, teimosos, enquanto outros, mais novos, continuam surgindo. O trajeto pode ser difícil, já que Joyce não se dá ao trabalho de estender a mão. Experiências singulares de leitura, achados, epifanias se misturam com trechos impenetráveis, frustrantes e densos, nos quais a escuridão se ilumina só muito tarde, e às vezes nem assim. Alguns dos pronunciamentos de Stephen continuam crípticos. Nós nem sabemos por que Bloom comparece ao enterro de alguém de quem nem era assim tão próximo; ali enlutado, ele definitivamente não parece estar de luto. Joyce mostra também que não entender, na vida, pode ser a regra, e não a exceção. Há mistérios não resolvidos, passagens não esclarecidas, mais perguntas novas que respostas satisfatórias, mais ou menos como a vida real. O ‘Ulysses’ pode ser o primeiro livro da modernidade que já ao surgir necessitava do tipo de anotação que considerávamos necessária para os clássicos do passado distante. Talvez, ironicamente, uma pergunta dentro dele é de fato respondida com elegância, feita pelo intelectual Stephen Dedalus: por que eles colocam as cadeiras em cima das mesas à noite?. Bloom, desta vez, está à altura do problema: ‘Pra varrer o chão de manhã’ – o que não é a maior das revelações; não seria necessário atravessar centenas de páginas para perceber isso.”
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“James Joyce:
Um mestre do romance”, de Sandra Guardini Vasconcelos
“Bloom é o herói problemático, um desterrado, mas cuja humanidade lhe confere, ao mesmo tempo, uma feição representativa das qualidades e experiências humanas, tornando-o uma figura simultaneamente particular e universal. Stephen é, por sua vez, o jovem irlandês de formação jesuítica que carrega no nome a conjunção do primeiro mártir cristão, de Dedalus e Ícaro, de ressonâncias mitológicas, e é ainda Telêmaco em busca do pai. Molly, a irlandesa carnal e voluptuosa, é tanto Calipso quanto Penélope, sendo ainda, para alguns, arquétipo do feminino. Se Joyce parece ter se arrependido de compartilhar o quadro de referências à ‘Odisseia’ com alguns de seus primeiros interlocutores, as ressonâncias homéricas continuaram a fazer parte do aparato crítico sobre o romance. Seja como for, uma vez erigido o edifício joyciano, o paralelo homérico – espécie de andaime de que Joyce se valeu – seria, como em qualquer construção, totalmente desmontado com a obra pronta.”