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Estado de Minas À SOMBRA DA MALDADE

Com 'Uma tristeza infinita', Xerxenesky revive traumas da 2ª Guerra Mundial

Apesar de ambientado na Suíça, romance estabelece uma uma poderosa conexão ficcional com os tempos de hoje no Brasil


04/02/2022 04:00 - atualizado 03/02/2022 23:51

Ilustração do Quinho
Trama de Xerxenesky transita em um mundo ainda emocionalmente devastado pela Segunda Guerra Mundial (foto: Quinho)

Um autor brasileiro lança, no século 21, um romance que tem como protagonista um psiquiatra francês e é ambientado na Suíça, pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Ainda bem que Antônio Xerxenesky, gaúcho radicado em São Paulo, ignorou o plano inicial de fazer uma radiografia do presente e decidiu mergulhar no passado de um outro continente para escrever “Uma tristeza infinita”. De forma indireta, pelos recursos da ficção, estabeleceu uma poderosa conexão ficcional com os tempos que vivemos.

Conflitos entre o obscurantismo e a ciência, o conhecimento e a barbárie, o posicionamento (e a omissão) de cidadãos anônimos diante do avanço do autoritarismo em seu país, a discussão dos limites na relação entre médico e paciente... Questões reais e imaginadas no século 20, questões atuais. E indagações que atravessam os séculos, como a origem da melancolia, definida no livro como “um vírus que instaurava em sua vítima, em seu hospedeiro, um solipsismo de achar que o mundo era apenas o que podíamos ver sob aquelas lentes sujas e embaçadas”.    
Em uma narrativa elegante, límpida e apenas aparentemente distanciada, Xerxenesky nos apresenta Nicolas, um jovem psiquiatra que, durante a escolha do tratamento de um paciente com traumas de guerra, é confrontado com o próprio passado e com os limites entre a razão e o assombro, a sanidade e a loucura. “Saímos do livro com a sensação de que a tristeza é, na verdade, quase infinita”, descreve Daniel Galera na apresentação. “No embate entre o caos da vida e o intelecto, surgem, no fim das contas, as centelhas da transcendência e do afeto”, aponta o autor de “Barba ensopada de sangue”.   

Na trama de Xerxenesky, Nicolas e a mulher, Anna, transitam em um mundo ainda emocionalmente devastado pela Segunda Guerra Mundial – e pelas consequências do colaboracionismo dos que “sabem a extensão do seu equívoco: estão andando por cidades que não passam de detritos, tentando sobreviver, em uma economia incerta, em um país dividido e pilhado”. São pessoas influenciáveis pela “sedução da autoridade”, aponta o narrador. “Podemos localizar uma predisposição na personalidade das pessoas para se deixarem levar por discursos como os de Hitler e Mussolini. Como ovelhinhas que sonham em um dia ser o lobo que irá torturar todos os outros animais”, compara o autor. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é mera coincidência. E o que fazer com essas pessoas? “Jamais esquecer, jamais perdoar. Mas é preciso seguir a vida.”   

“Trata-se de um livro sobre depressão e fascismo. Ainda que o significado dos termos tenha passado por metamorfoses ao longo da história, esses tópicos não envelheceram um dia”, observa Antônio Xerxenesky em entrevista ao Estado de Minas. Nascido em 1984, ele também lançou “Areia nos dentes” (2010), “A página assombrada por fantasmas” (2011), “F” (2014, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e “As perguntas” (2017). Suas obras, com influências de gêneros diversos do cinema (faroeste, horror) e da própria literatura, foram traduzidas para o francês, espanhol, italiano e árabe. 

Antônio Xerxenesky
Xerxenesky: acerto de contas com os próprios erros (foto: Renato Parada/Divulgação)

De São Paulo à Suíça 

Nos agradecimentos do livro, Xerxenesky revela que começou a escrita de “Uma tristeza infinita” em 2017, na Suíça, durante residência literária no vilarejo de Montricher bancada pela Fundação Jan Michalski. O objetivo inicial era escrever sobre São Paulo, para seguir o que chama de “espécie de instinto brasileiro de que devemos abordar nossa realidade direta”. Mas, felizmente, mudou de ideia. “Demorei para aceitar que a ficção tem outro tempo e que a opacidade da linguagem me permitia escrever sobre o Brasil mesmo situando a trama em um contexto absolutamente distinto”, explica. 

Xerxenesky admite que “Uma tristeza infinita” enfoca não apenas as consequências de ações, mas de omissões, qualificadas como “uma forma de apoio”. “Já caí no discurso de ‘tudo é inútil, melhor ficar aqui no meu canto, somos impotentes para qualquer mudança’. Esse livro acaba sendo um acerto de contas com esses meus erros”, revela. Afinal, como escreve o francês Éric Vuillard no premiado “A ordem do dia” (Tusquets), outro romance que recria as consequências de se fecharem os olhos para a ascensão do descalabro, “quem dançou sobre o cadáver da liberdade não pode esperar que ela subitamente voe em seu socorro”. 

A seguir, outras respostas de Antônio Xerxenesky a respeito de “Uma tristeza infinita”, dedicado pelo autor aos psiquiatras e psicanalistas que o atenderam e o auxiliaram na última década. O romance foi lançado em 2021, mas poderia ter sido em 1961 ou 2061, não importa, porque as virtudes de “Uma tristeza infinita” o fazem ser um livro à prova do tempo.  

Quais as semelhanças e diferenças entre “Uma tristeza infinita” e seus romances anteriores? 
Acho que os principais temas dos meus livros, que estavam presentes desde o primeiro romance, persistem: a solidão que deriva de não sentir pertencimento a nada e os embates entre racionalidade e metafísica. No entanto, os livros anteriores propunham um diálogo com gêneros populares – o faroeste, o terror, o policial – que não aparece em “Uma tristeza infinita”.

O que foi mais importante para a construção da narrativa e dos personagens? A pesquisa, a observação ou a invenção?
A pesquisa é importante somente até certo ponto. Uma hora, é necessário deixá-la de lado. Não estou publicando uma tese, mas um romance. Preciso ter liberdade, inclusive para falsificar certas datas, tudo a serviço da narrativa. O mais importante, creio, é a reflexão, definir diferentes visões de mundo e colocá-las para se chocar no texto.

Um dos conflitos mais fortes de “Uma tristeza infinita” se estabelece entre a razão e a irracionalidade. O que o estimulou a explorar esse conflito?
Sou um ex-estudante de física e tive uma criação familiar que sempre botou a ciência em um pedestal e que desconfiava e criticava todas as grandes religiões. No entanto, como artista, descobri que buscava algo mais que a racionalidade pura não oferecia. A partir daí, nasceu um interesse muito grande por esse conflito.

Há passagens sobre pessoas que “estão tentando sobreviver em uma economia incerta, em um país dividido” ou sobre a importância de ouvir “em meio ao mundo colapsando, aos avanços fascistas de norte a sul”, que podem ser lidas como referências aos dias de hoje no Brasil e no mundo. Sentenças como “vamos, juntos, abraçar a ciência” já estavam escritas antes da pandemia? E a definição da melancolia como um vírus?
Sim, os trechos mencionados foram escritos antes da pandemia. Claro, os paralelos com o avanço de um pensamento autoritário e preconceituoso por todo o país foram propositais, pensando justamente na nossa situação política no Brasil. A ideia de uma loucura contagiosa, na verdade, foi uma ideia que tirei de “A parte de Amalfitano”, de “2666”, obra de Roberto Bolaño que foi tema de minha tese de doutorado na USP. A relação que os personagens têm com a ciência diz menos a respeito de uma eventual defesa da vacina ou algo do gênero e mais da minha experiência como paciente de psiquiatras e psicanalistas. Existem psiquiatras que acreditam que tudo se resolve com o medicamento correto e que qualquer forma de terapia pela fala não passa de charlatanismo. Quis colocar em xeque essa posição e pensar na saúde mental por diferentes facetas. De fato, houve um período na história da psiquiatria que se imaginou que tudo seria resolvido com ajustes nos neurotransmissores. Hoje, acho que é consenso que a saúde mental depende de fatores sociais e culturais também.

Quais cuidados você tomou ao abordar a psiquiatria e a psicanálise no livro?
Tomei cuidados no sentido de que fiz muita pesquisa e consultei especialistas. Mas, por outro lado, precisei desaprender alguns cuidados, pois minha trama se passa nos anos 1950, quando ainda se acreditava em coisas que caíram por terra (como a ideia de uma “cura” definitiva). Além disso, meus personagens são pessoas humanas, com defeitos, não psiquiatras perfeitos, que detêm a verdade.

O que um livro que se passa na Suíça, logo depois da Segunda Guerra Mundial, tem a dizer ao Brasil do século 21? Acredita que “Uma tristeza infinita” pode ser lido como uma parábola da nossa realidade?
Bom, trata-se de um livro sobre depressão e fascismo. Esses tópicos não envelheceram um dia, ainda que o significado dos termos tenha passado por metamorfoses ao longo da história. Walter Benjamin, um fantasma com o qual meu livro dialoga, sempre afirmou a necessidade de olhar o passado para capturarmos a força e a valentia de suas lutas para enfrentar os desafios do presente. Meu romance propõe justamente um olhar para como essas questões – de saúde mental e enfrentamento político – eram vistas décadas atrás, tudo mediado pela linguagem literária do presente.

“A escrita é uma atividade solitária, lenta, demorada. Pode vir a piorar quadros depressivos”, afirma um dos personagens. Esse ‘diagnóstico’ se aplica a você? 
(Risos) Não, o diagnóstico não se aplica a mim. Acho que a escrita – no meu caso – pode ter propriedades terapêuticas, me permitindo articular ideias que estavam guardadas em algum canto obscuro do inconsciente. Mas cada caso é um caso.

Viver no Brasil atenua ou acentua um quadro de melancolia? Como escritor brasileiro, qual é a sua “tristeza infinita”?
Com certeza. Mark Fisher dizia que há uma epidemia de depressão no Reino Unido e que, para estar enquadrado como “caso de risco”, basta ser um jovem nos dias de hoje. O Brasil passou por um desmonte severo nas áreas da cultura e da educação, que são, digamos, “as minhas áreas”. A tristeza vem de não ser capaz de enxergar um futuro melhor. No entanto, temos que tomar cuidado para não nos deixar ser desmobilizados por esse desânimo e encontrar forças em algum lugar para reconstruir o país algum dia.

Podemos considerar que “Uma tristeza infinita” é também um livro a respeito das consequências não apenas de ações, mas de omissões?
Sim, sem dúvida. Há algo de muito sedutor em um niilismo de “tudo é inútil, melhor ficar aqui no meu canto, somos impotentes para qualquer mudança”, e eu mesmo caí nesse discurso muitas vezes. Esse livro acaba sendo um acerto de contas com esses meus erros.

Capa do livro Uma Tristeza infinita
(foto: Companhia das Letras)

“Uma tristeza infinita”
• Antônio Xerxenesky
• Companhia das Letras
• 256 páginas
• R$ 64,90


Trecho

“E assim a solidão se amplificava, e a floresta se distanciava tanto da cidade a oeste, como do Centro a leste, e não havia mais ser humano algum em um raio de centenas de quilômetros, talvez milhares, e ele estava só, absolutamente só no universo, na natureza, e podia compreender como ele era irrelevante, como toda a vida e o drama humano eram irrelevantes diante da indiferença da natureza, e a melancolia que experimentava podia causar um verdadeiro mal-estar físico, de modo que ele acelerava o passo em direção ao Centro, pensando que talvez agora compreendesse melhor a melancolia, mas que isso no fundo de nada adiantava, pois ainda não sabia como tratá-la.” (De “Uma tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky)


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