Jornal Estado de Minas

AMÉRICA FEMININA

Escritoras latinas escancaram a herança brutal das ditaduras militares

Tomada do Palácio de La Moneda, no Chile, levou Pinochet ao poder no país andino em 1973 (foto: AFP )
Não faz muito tempo, o mercado editorial brasileiro parecia ter olhos apenas para a América Latina desenhada pelos homens. Em meio a tantas odes a Borges e as tentativas masculinas de decifrar a literatura – como se fosse possível –, sobrava pouco para as mulheres – uma Isabel Allende, uma Laura Restrepo e olhe lá. É um alívio, portanto, que nos últimos anos as editoras tenham decidido publicar uma verdadeira avalanche de autoras cujos livros iluminam todo um continente fervilhante, repleto de histórias prontas para dinamitar as noções de sociedade e, obviamente, de literatura.



 

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Uma dessas editoras, a mineira Moinhos, lançou quatro livros curtos que, lidos em par, criam um interessante panorama do Cone Sul. Ao mergulharem fundo na herança das ditaduras que varreram as últimas décadas, essas obras ajudam a discutir o colonialismo pelo seu viés mais óbvio (e similar aos governos militares): a brutalidade. 

Em “Rinha de galos”, traduzido por Silvia Massimini Felix, a equatoriana María Fernanda Ampuero parte (também) de uma epígrafe de Clarice Lispector – “Sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?” – para narrar 13 histórias recheadas de horror. Seus personagens estão marcados pela monstruosidade, mas não só: esse caráter destrutivo, que afinal lhes torna humanos, também atrai um fascínio dúbio – e inquietante. Por um lado, cada história parece dobrar a aposta no insólito; por outro, o excesso de violência torna o percurso uma rinha com o leitor.

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No primeiro conto, uma mulher é sequestrada e colocada num leilão. A violência desmedida concentra-se num curto espaço de tempo, e o jogo de linguagem que Ampuero desenha abre a guarda do leitor, preparando-o para as últimas páginas. Contudo, talvez somente o quarto conto, “Nam”, seja de fato incontornável. A história de uma adolescente que se relaciona com um casal de irmãos não demora para se transformar numa crônica dos horrores da guerra e de tudo de ruim que pode vir dos Estados Unidos.





Esse tipo de livro algo turvo, algo muito cristalino já havia aparecido no segundo semestre de 2020 com o romance “Sistema do tato”, de Alejandra Costamagna, em tradução de Mariana Sanchez. Órfã de mãe desde criança, Ania topa atravessar a cordilheira e ir à Argentina representar o pai nos momentos finais de um parente moribundo. Conforme avançamos, a escritora chilena enche as páginas com fotos de família, bilhetes e até mesmo exercícios de datilografia.

As quase 140 páginas são um relicário do pertencimento: pessoas, instituições, corrupções cotidianas, a saga imigrante, o que significa criar raízes em algum lugar. Se ao final o resultado padece de uma opacidade morna – ontem é “uma eternidade” –, a jornada redime pelo cruzamento das diversas linhas que compõem uma família – o primo Agustín, sua mãe, Nélida: são eles que trazem a Ania a certeza de que “não quer se reproduzir em ninguém, salvar ninguém”.

Prêmios no Chile

Reprodução seria um bom nome para aquilo que o pai de M busca para a filha em “Kramp”, de María José Ferrada, o primeiro livro a receber os três principais prêmios chilenos. D é caixeiro-viajante, e começou sua carreira vendendo os produtos da marca Kramp. De tanto olhar o catálogo, M acaba por desenvolver uma forma de ver o mundo que passa por uma ética dos olhos mágicos, alicates e serrotes. Em menos de 100 páginas – com tradução de Silvia Massimini Felix –, ela nos conta como foi crescer ao lado desse homem viajando por um país marcado pela selvageria da ditadura, ainda que essa guerra interna não esteja muito clara.



A estratégia de anunciar uma inevitável tragédia que parece nunca vir faz de “Kramp” um dos grandes livros de combate aos saudosistas da barbárie. Trata-se de uma obra mezzo bela, mezzo recheada de horrores factíveis, que nunca perde de vista a boa literatura. Ao contrário de Ampuero e Costamagna, María José Ferrada nunca mostra o ouro: “Kramp” existe no espaço necessário, sem truques ou excessos, uma característica que se repete no espetacular “Space invaders”, de Nona Fernández, também em tradução de Silvia Massimini Felix. 

Nas palavras de Patti Smith, o livro é uma pequena joia ambientada no Chile de Pinochet: “este tempo sombrio é narrado à luz da memória da infância, misterioso, mas preciso”. Valendo-se da simbologia do videogame oitentista, traz um grupo de colegas de escola cujos pais apoiam ou combatem o governo, e que começam a entrar na adolescência no horror de uma ditadura.

Se “Kramp” apostava na baixa luminosidade antes do inevitável, Nona Fernández opta pela escuridão total – vozes se confundem, discursos se sobrepõem, certezas são postas à prova e crescem na tensão exata entre denúncia e narrativa de formação.



“Space invaders”, ao fim da leitura, deixa claro que existe uma tendência, para não dizer projeto, de retomar a América Latina sem idílios ou filtros literários. O que sua autora e as colegas María Fernanda Ampuero, Alejandra Costamagna e María José Ferrada parecem nos dizer é que não há mais espaço para veredas bifurcadas.  Em “Rinha de galos”, “as pessoas não são capazes de ver a si mesmas e esse é o princípio de todos os horrores”. Quiçá o mesmo valha para os continentes. (MB)


* Mateus Baldi é jornalista e escritor, autor de “Formigas no paraíso”. Mestrando em letras (PUC-Rio), criou a Rese- nha de Bolso, voltada para a crítica de literatura contemporânea.


“Rinha de galos”

.María Fernanda Ampuero
.Tradução de Silvia Massimini Félix
.Moinhos
.112 páginas
.R$ 55


“Sistema do tato” 

.Alejandra Costamagna
.Tradução de Mariana Sanchez
.Moinhos
.144 páginas
.R$ 50


“Kramp”

.María José Ferrada
.Tradução de Silvia Massimini Félix
.Moinhos
.96 páginas
.R$ 45


“Space invaders”

.Nona Fernández
.Tradução de Silvia Massimini Félix
.Moinhos
.88 páginas
.R$ 50