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No primeiro conto, uma mulher é sequestrada e colocada num leilão. A violência desmedida concentra-se num curto espaço de tempo, e o jogo de linguagem que Ampuero desenha abre a guarda do leitor, preparando-o para as últimas páginas. Contudo, talvez somente o quarto conto, “Nam”, seja de fato incontornável. A história de uma adolescente que se relaciona com um casal de irmãos não demora para se transformar numa crônica dos horrores da guerra e de tudo de ruim que pode vir dos Estados Unidos.
As quase 140 páginas são um relicário do pertencimento: pessoas, instituições, corrupções cotidianas, a saga imigrante, o que significa criar raízes em algum lugar. Se ao final o resultado padece de uma opacidade morna – ontem é “uma eternidade” –, a jornada redime pelo cruzamento das diversas linhas que compõem uma família – o primo Agustín, sua mãe, Nélida: são eles que trazem a Ania a certeza de que “não quer se reproduzir em ninguém, salvar ninguém”.
Prêmios no Chile
A estratégia de anunciar uma inevitável tragédia que parece nunca vir faz de “Kramp” um dos grandes livros de combate aos saudosistas da barbárie. Trata-se de uma obra mezzo bela, mezzo recheada de horrores factíveis, que nunca perde de vista a boa literatura. Ao contrário de Ampuero e Costamagna, María José Ferrada nunca mostra o ouro: “Kramp” existe no espaço necessário, sem truques ou excessos, uma característica que se repete no espetacular “Space invaders”, de Nona Fernández, também em tradução de Silvia Massimini Felix.
Se “Kramp” apostava na baixa luminosidade antes do inevitável, Nona Fernández opta pela escuridão total – vozes se confundem, discursos se sobrepõem, certezas são postas à prova e crescem na tensão exata entre denúncia e narrativa de formação.
“Space invaders”, ao fim da leitura, deixa claro que existe uma tendência, para não dizer projeto, de retomar a América Latina sem idílios ou filtros literários. O que sua autora e as colegas María Fernanda Ampuero, Alejandra Costamagna e María José Ferrada parecem nos dizer é que não há mais espaço para veredas bifurcadas. Em “Rinha de galos”, “as pessoas não são capazes de ver a si mesmas e esse é o princípio de todos os horrores”. Quiçá o mesmo valha para os continentes. (MB)