Em 'Não é um rio', Selva Almada retrata quatro mortes unidas pela água
Autora argentina é uma das vozes mais instigantes da literatura contemporânea
Por
Stefania Chiarelli - Esp. para o EM
11/02/2022 04:00 - Atualizado em 11/02/2022 00:52
“O mais interessante da literatura argentina dos últimos 10 anos foi escrito por mulheres.” A frase consta da entrevista de Selva Almada concedida a Raphael Montes no programa “Trilha de letras”, da TV Brasil. Almada reforça que esse capital cultural marcado pela autoria feminina surge como característica forte na produção ficcional recente. Nascida na província de Entre Rios, em 1973, a autora expõe um ponto de vista que pode facilmente incluí-la, já que é uma das vozes mais instigantes da literatura contemporânea, fazendo parte de uma talentosa geração de escritoras argentinas que circulam por aqui, como Mariana Enríquez e Samanta Schweblin.
Almada esteve no Brasil em 2018, na Flip, para falar de “Garotas mortas”, obra de não ficção que traz à luz três casos de feminicídio ocorridos, e nunca solucionados, na Argentina, há mais de 20 anos. Ao relatar a história dessas mulheres assassinadas, a autora entrelaça suas próprias vivências, recuperando episódios em que a violência de gênero surge no cotidiano. No Brasil, pela extinta CosacNaify, também circulou a novela “O vento que arrasa”, que gira em torno do encontro de quatro personagens em uma velha oficina mecânica na província do Chaco argentino. A ação transcorre em pouco mais de um dia e as lembranças e memórias surgidas explicam muito do presente, à semelhança de “Não é um rio”.
A crítica Beatriz Sarlo, entusiasmada com o texto de Almada, há alguns anos sublinhava a presença de uma nova ficção dedicada a falar do interior do país, sinalizando uma retomada de temas ligados à província e não mais ao contexto urbano da metrópole Buenos Aires. Narrando esses espaços, a prosa da escritora se destaca, focalizando a vida de localidades interioranas, em que vigora com força a matriz familiar, com costumes que atravessam gerações. Marcada pelo tempo lento de um lugarejo qualquer, essa escrita olha para a banalidade da vida, transformando irrelevâncias em pontos de inflexão da trama, como a cerveja tomada no boteco em cadeiras de plástico, a menina que sonha cruzar o rio para ganhar o mundo, ou mesmo a visita inconveniente de estranhos a um território regido por regras próprias.
“Não é um rio” narra quatro mortes. Enero Rey e Negro saem para pescar com o adolescente Tilo, filho do amigo Eusébio, morto tempos atrás. O lugar escolhido é a ilha fluvial frequentada desde a juventude, e esse cenário será definitivo para o transcorrer da novela, em que memórias recentes se fundem a lembranças do passado. Distintas temporalidades se entrecruzam, instaurando no texto a sensação de que o tempo pretérito não acabou, ao contrário, ele se coloca ali como realidade concreta. Como leitores, acompanhamos essa montagem avidamente, e ela flui de modo manso. Almada reserva os solavancos para os momentos em que estamos desarmados, e o golpe é forte.
Enero, Negro e Tilo abatem uma enorme arraia com três tiros. Esse gesto, para Aguirre, morador local, é nada menos do que insuportável. “Basta um”, sustenta. Impossível não lembrar da famosa crônica de Clarice Lispector sobre o assassinato de Mineirinho, nos anos 1960: nela, a escritora constata a truculência de uma polícia movida pela vontade de matar, que atinge com 13 tiros o foragido já caído no chão. “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro, eu quero ser o outro”, alerta a autora. O mesmo pode ser pensado aqui. Bastaria uma bala, todo o demais é gana de extermínio. Além disso, Aguirre e um amigo não se conformam com o fato de o animal ter sido jogado de volta ao rio. A barbárie irá retornar na forma de revanche, agudizando o anta gonismo entre moradores locais e visitantes.
Quanto às mortes narradas no relato, já não importa se tais vidas pertencem ao mundo animal ou humano. Afinal, não era uma arraia, mas “aquela arraia”. Não é um rio, mas “este rio”. Reiteradas negativas, e o uso deliberado dos pronomes está longe da inocência. Tudo assim se particulariza, se torna próximo, e nessa intimidade entre o elemento humano e a natureza se sustenta muito da prosa de Almada.
Sangue e fogo
Para quem vive no espaço mítico da ilha, sangue e fogo surgem como resposta a quem transpassa esses lugares. A irmã de Aguirre, Siomara, se consome nesse fogaréu ao prantear as filhas Mariela e Lucy, mortas em um acidente de carro. Siderada pela dor, segue colocando todos os pratos na mesa, enxergando as filhas em lugares familiares, prolongando indefinidamente o tempo na esperança de encontrá-las vivas. Não parece gratuito que abundem no texto verbos no presente. Como se aqueles fatos estivessem sempre acontecendo, encarcerados na memória. Um futuro que nunca chega, nos deixando também um pouco cativos, presos à eterna paisagem da lembrança.
Nesse contexto se faz presente uma outra dimensão, em que os personagens acessam acontecimentos do porvir. Assim, sonhos perturbadores comparecem na condição de um mergulho no inconsciente – água, premonição e morte constituem espaços fluidos, materializando “ecos do futuro”, como sustenta o curandeiro Gutierrez. A água, que a tudo circunda, banha os corpos das moças cheias de ilusão, mas também devolve os afogados.
Não se deve abater um bicho com tanta truculência, sinaiza Aguirre, desejoso de vingança ao ver a arraia devolvida às águas. Um descaso surge com o mundo que os acolhe, restando ao espaço líquido a missão de acolher de volta o animal majestoso. É igualmente na água que Eusébio se afoga, sepultando rivalidades e intensos afetos. A água tornada barro, irmanada à terra, recebe também os corpos das irmãs mortas no acidente. O rio, sempre o mesmo e sempre outro, constitui um eixo na vida desses sujeitos. A prosa enxuta de Almada estabelece um contraponto a esse caudaloso cenário, nos instalando em um espaço de vida e morte, em que ser humano e natureza se encontram em contiguidade. Nessa perspectiva, uma arraia nunca é só uma arraia, e um rio nunca será apenas um rio.
TRECHO
“Entram de passo confiante no mato, na umidade do sereno que vem com o frio. Tudo escuro, mas eles, feito gatos, se movem melhor na escuridão. Sabem o nome de cada pássaro pelo pio; o nome de cada árvore pela cortiça sobre o tronco, de cada planta pelo tamanho ou pela dureza das folhas. Andam pelo mato como quem anda no próprio rancho. Sabem onde pisar para não atiçar as cobras. Para que o escorpião não pique. O mato conhece todos eles desde guris. Mais de um foi engendrado e até parido ali mesmo, entre os salgueiros, os amieiros, os algarrobos e os ipês-rosas! Mais de um teve o junco e o espadana como berço! Nascidos e criados na ilha. Batizados no rio.”
“Não é um rio”
• Selva Almada
• Tradução de Samuel Titan Jr.
• Todavia Editora
• 96 páginas
• R$ 52,90
*Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e coorganizou, entre outros, o volume “Falando com estranhos – O estrangeiro e a literatura brasileira” (7letras, 2016)