Eles podem se chamar Klaus, Snow Dragon ou Coronel Sanders. Estão dentro da casa, assistem à sua rotina, interagem de diversas formas. Com um corpo de pelúcia, são recheados de espuma, e têm o formato de coelhos, ursos, corvos, toupeiras. Mas seu coração é um chip. Os kentukis são a febre japonesa do momento, custam US$ 279 e do alto de seus 30 centímetros se instalam na vida de pessoas de todas as partes do mundo. O instigante romance de Samanta Schweblin narra várias histórias que nunca se conectam, mas estão unidas pela experiência de partilha com essa espécie de mascote, um “celular com patas”, no dizer de Alina, protagonista de uma das melhores tramas que compõem a obra.
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A escritora argentina, radicada em Berlim, já publicou os volumes de contos “Pássaros na boca” e “Sete casas vazias”, além do romance “Distância de resgate”. Por este livro, assim como “Kentukis”, foi finalista do International Booker Prize, e premiada pelo último com o Casa de las Américas. Nele, o insólito irrompe na rotina de gente de todo tipo e lugar, e nesse clima Schweblin mergulha fundo na vida contemporânea mediada pela tecnologia e atravessada pela discussão sobre privacidade. Em tempos em que se busca a fama a qualquer preço, almejando alguma forma de distinção, é intrigante pensar em como o livro pensa o anonimato, o outro lado dessa moeda que parece comportar mais do que dois lados. Ver, ser visto, cruzar a fronteira do desconhecido, estabelecer intimidade com alguém distante são ações que ganham novos sentidos em uma realidade povoada de câmeras instaladas nesses peculiares bichos de estimação.
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Nada é assim tão novo, e os tamagotchis dos anos 1990 já indicavam formas de interação que demandavam atenção de seus proprietários. Celulares, tablets e tantos outros dispositivos hoje mostram que a escuta e a filmagem se impõem, mesmo à nossa revelia. Nesse caminho, os kentukis surgem como expressão máxima do voyeurismo atual: carregam câmeras embutidas nos olhos e nunca podem ser desligados, se desconectando para sempre apenas quando deixam de ser carregados. Essa é uma senha para indagar a relação com a tecnologia: vários estudos já assinalaram o forte parentesco da dependência do uso das redes sociais com a adição às drogas; basta notar que ambas as situações são nomeadas da mesma forma – todos são usuários.
Seja em Antigua, Oaxaca, Vancouver, Umbertide ou Erfust, cidades em que se passam algumas dessas histórias, há sempre uma polaridade em questão. De um lado, alguém adquire o robô, associando-se a uma pessoa qualquer em outro ponto do planeta, que por meio de um computador ou tablet o manobra remotamente, desempenhando a função de “amo”. Quem compra um kentuki aceita ser observado, alguém é kentuki; outro alguém tem um kentuki.
Ilusão de onisciência
A excitação de conectar-se a um desconhecido expõe a falta de controle da situação, já que não se escolhe quem será o mestre. A ilusão de onisciência se mistura ao elemento enigmático do não sabido, desse outro que invade a privacidade alheia com consentimento: é como “dar as chaves da sua casa a um desconhecido”, afirma um personagem: “‘Ser’ kentuki, (...) essa era uma condição muito mais intensa. Se ser anônimo nas redes era a máxima liberdade de qualquer usuário – e além disso uma condição à qual já era quase impossível aspirar –, como se sentiria então se fosse anônima na vida de outro?”
Não à toa, nesse mundo mediado pela fibra ótica os livros aparecem de modo acessório e são descritos como objetos silenciosos, por vezes rústicos. Uma realidade de bibliotecas cujos corredores estão vazios, como observa a funcionária Carmen, habituada a espaços sem leitores. Ou, como na narrativa de Marvin, o garoto que finge estudar para convencer um pai preocupado, abrindo os livros “como se fossem relíquias de uma civilização anterior”.
Para que mesmo leríamos, se podemos assistir à vida dos ou- tros? Um big brother caseiro se instala, trazendo fragmentos de vidas banais – ir ao banheiro, cozinhar, falar ao telefone, trabalhar. A condição solitária da leitura e o denso mergulho em um mundo interior parecem estar na condição oposta à prática kentuki: aqui se estabelecem frágeis pontes com o outro, pairando a (falsa) sensação de proximidade. “Tinha duas vidas, e isso era muito melhor que ter apenas meia vida e coxear aos solavancos”, pensa Emilia, cujo filho cria uma insuspeitada conexão com a própria mãe ao presenteá-la com o dispositivo. “Era toda uma atenção”, conclui, cativada por esse companheirismo remoto.
Bonecos enterrados
Oráculo dos tempos modernos, os mascotes preenchem carências com laços precários. Como na estação Termini, em Roma, em que um sujeito tem a ideia de fazer seu kentuki responder a perguntas, e as pessoas pagam cinco euros para consultar seu destino. Ao “morrer”, eles deixam saudade – seus donos fazem funerais à semelhança de quem perdeu um ente querido, e assim surge a perturbadora imagem de centenas de bonecos enterrados à sombra de jardins em lugares públicos.
Mas, da doce nostalgia ao conto de terror, o passo é curto. A rotina de afetos pode se transformar em cruel e sádico espetáculo, como quando uma jovem é chantageada por alguém que afirma ter filmagens íntimas e comprometedoras de membros da família. Ou quando um pedófilo se instala do outro lado da tela de uma criança, enquanto o pai, distraído cuidando da horta, acredita que o bicho de pelúcia fazia apenas saudável companhia. Ou ainda na história de Sven, artista plástico que passa uma temporada em uma residência artística, e sua mulher, Alina, decide não interagir com seu kentuki, desafiando a lógica da relação. Controlar o nível de invasão desse pequeno robô surge como insurreição, e o surpreendente desenlace do livro evidencia o quão exposta é a nossa rotina. No romance, Schweblin escancara o quanto estamos inseridos de modo inexorável dentro de práticas que incluem ver, ser espiados ou controlados. Os kentukis são mais que inofensivos mascotes, pois condensam e expressam um modo de vida contemporâneo em que o botão de desligar está inacessível e estar fora é categoria que não existe mais.
Se nesses relatos a prática da leitura está em baixa, talvez a chave esteja na própria resposta da escritora em uma entrevista: “A literatura é útil para fazer este exercício sem violar ninguém. Existe outra tecnologia tão eficaz para isso quanto a literatura? Imagine: mergulhar em um espaço onde você pode enfrentar seus piores medos, olhá-los bem de perto e perguntar a si mesmo as perguntas importantes – como eu poderia sobreviver a isso? (...) colocar-se no lugar de outra pessoa e entender o quão longe é possível ir com ela. E depois voltar para a vida real, para a sua vida, sem uma única ferida, mas com todas aquelas novas informações existenciais sobre você”.
Circulando por entre verbos, comandos e desejos, a autora acerta ao desenhar um cenário atual, e se desse romance voltamos à vida sem feridas, como permite a literatura, retornamos também mobilizados pela perturbadora imagem que Schweblin faz do que nos olha e para o que olhamos.
TRECHO
“Os olhos piscaram sem tirar a vista de cima dela. Era bonitinho que não falasse. Uma boa decisão dos
fabricantes, pensou. Um ‘amo’ não quer saber o que seu animal pensa. Em seguida entendeu que era uma
armadilha. Conectar-se com esse outro usuário, averiguar quem era, também dizia muito sobre a pessoa.”
“Kentukis”
• Samanta Schweblin
• Tradução de Livia Deorsola
• Fósforo
• 192 páginas
• R$ 64,90
*Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e coorganizou, entre outros, o volume “Falando com estranhos – O estrangeiro e a literatura brasileira” (7letras, 2016)