Jornal Estado de Minas

PENSAR

Em 'Os sentidos do sujeito', Judith Butler promove diálogos filosóficos


Em “Regras para o parque humano”, o filósofo alemão Peter Sloterdijk nos lembra que os livros, como “observou certa vez o escritor Jean Paul, são cartas dirigidas a amigos”, frase que, em essência, explicita “a natureza e a função do humanismo: a comunicação propiciadora de amizade realizada a distância por meio da escrita”. Sloterdijk entende que, nos dias de hoje, “é apenas marginalmente que os meios literários, epistolares e humanistas servem às grandes sociedades modernas para a produção de suas sínteses políticas e culturais”.



Em sendo assim, um livro amplamente dialógico como “Os sentidos do sujeito”, da filósofa norte-americana Judith Butler, tem um número reduzido de destinatários, mas isso não nos impede de saudar seu lançamento no Brasil e discorrer um pouco a seu respeito.

O volume é constituído por ensaios escritos entre 1993 e 2012. Dada a já mencionada amplitude desses diálogos de Butler com a tradição filosófica, a editora Autêntica tomou a boa decisão de atribuir a tradução de cada texto a profissionais familiarizados com os diversos pensadores trazidos para a conversa. A equipe de tradutores, formada por Ana Luiza Gussen, Beatriz Zampieri, Gabriel Lisboa Ponciano, Kissel Goldblum, Luis Felipe Teixeira, Nathan Teixeira, Petra Bastone e Victor Galdino, foi coordenada por Carla Rodrigues.

Cronologia filosófica

A autora não organizou os textos pela ordem de publicação, dos mais antigos aos mais recentes, mas segundo uma cronologia filosófica. No decorrer do livro, Butler lida com Descartes, Malebranche, Espinosa, Kierkegaard e Fanon, entre outros, adotando uma eficiente postura crítico-interpretativa e propondo desdobramentos condizentes com o seu próprio percurso. Na introdução, ela fala sobre o que daria alguma unidade ao conjunto de ensaios: “quando falamos sobre a formação do sujeito, invariavelmente presumimos um limiar de suscetibilidade ou de impressionabilidade que (...) precede a formação de um ‘eu’ consciente e deliberado”, ou seja, “essa criatura que sou é afetada por algo que está fora de si mesma”, algo anterior que “ativa e informa o sujeito que sou”. Trata-se de uma “posição retrospectiva” e paradoxal, pois intenta “narrar alguma coisa sobre minha formação, que é anterior à minha própria capacidade narrativa, e que isso, de fato, é o que possibilita essa capacidade narrativa”.





Butler alerta contra qualquer extremismo causal, por mais que a ação não nos livre das nossas formações — e nisso ela se distancia do que chama de “existencialismo festivo”. Trata-se de um “contínuo processo formativo”, de uma “transitividade”, e “os contornos de uma relação ética” surgem desse “paradoxo da formação do sujeito”. Há algo incontornavelmente social nesses sentidos do sujeito, por mais que o conteúdo relacional seja marcado por antagonismos, disputas e rupturas.

No primeiro ensaio, “Como posso negar que estas mãos e este corpo sejam meus?”, a autora repensa a “gramática da pergunta” intrínseca às “Meditações” cartesianas e o extravasamento do corpo, que “escapa aos termos da pergunta pela qual é abordado”. No segundo, “Merleau-Ponty e o toque de Malebranche”, “o ‘toque’ em questão não é o ato singular de tocar, mas a condição em função da qual uma existência corpórea é assumida”. A partir das leituras de Maurice Merleau-Ponty sobre Nicolas Malebranche, chegamos a um movimento filosófico “mais fundamental”, no qual “se investiga o ponto de partida da própria senciência, a obscuridade e prioridade da sua condição animante”.

“O desejo de viver: a ‘Ética’ de Espinosa sob pressão”, o ensaio seguinte, fala sobre como essa ética sob pressão honraria “o desejo sem colapsar em uma defesa egomaníaca (...) da propriedade” e “a pulsão de morte sem deixar que ela apareça como violência”. No quarto texto, “Sentir o que é vivo no outro: o primeiro amor de Hegel”, Butler aborda um fragmento escrito pelo filósofo alemão na juventude, no qual busca “descobrir o que mantém o amor vivo e o que é vivo no amor” e aponta para como o amor, mesmo sendo singular, “precisa sempre tomar mais que uma forma singular”.





 “O desespero especulativo de Kierkegaard” é uma defesa da reflexão hegeliana frente às críticas nem sempre “justas” do dinamarquês, “que constrói sua noção de indivíduo nos limites mesmos do discurso especulativo a que procura se opor”. Aos interessados em se aprofundar no tema, sugiro o livro “Kierkegaard’s relation to Hegel reconsidered”, de Jon Stewart.

“A diferença sexual como uma questão ética: as alteridades da carne em Irigaray e Merleau-Ponty” trata da ambivalência e das contradições da leitura feminista de Merleau-Ponty feitas por Irigaray, inadvertidamente caracterizada pelo “entrelaçamento constitutivo” hermenêutico característico das “relações da carne”.

O derradeiro ensaio, “Violência, não violência: Sartre sobre Fanon”, analisa o prefácio de Sartre para “Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, no qual o francês reitera a tradição de não reconhecimento do outro ao tentar criticá-la, e investe em uma apologia da violência do colonizado “como a rota em direção à identidade, à agência, (...) à vida”. Contraposta a isso, está a posição do próprio Fanon, que pensa a criação de um “novo homem” ancorada na reflexividade e a “recorporificação do humanismo” como uma alternativa possível à violência, pois “não pode haver invenção de si sem o ‘você’”.





Por fim, algo a ser sublinhado no procedimento de Butler é que, em seu diálogo com outros pensadores, ela presta uma atenção especial à linguagem com que cada ideia é articulada. Não se trata de um mergulho filológico de ares heideggerianos, mas uma atenção cuidadosa à voz do outro. Essa observância é um dos elementos que enriquecem “Os sentidos do sujeito” e as correspondências que estabelece tão bem.

* André de Leones é escritor, autor de romances como "Eufrates" e "Abaixo do paraíso", entre outros

“Os sentidos do sujeito”
De Judith Butler
Coordenação de tradução de Carla Rodrigues
Autêntica Editora
256 páginas
R$ 59,80

TRECHO 

“Entregamos nossos corpos a todo mundo, para além mesmo do reino das relações sexuais: por meio do olhar, do toque. Você entrega seu corpo a mim, eu entrego o meu a você: existimos para o outro, enquanto corpo. Mas não existimos da mesma maneira enquanto consciência, enquanto ideias, ainda que ideias sejam modificações do corpo.
(...)

O ‘você’ pode muito bem tomar o lugar de ‘homem’ na busca pelo humano que está além do horizonte constituído do humanismo. Se há uma relação entre esse ‘você’ que busco conhecer, cujo gênero ainda não pode ser determinado, cuja nacionalidade não pode ser pressuposta e que me compele a renunciar à violência, então esse modo de endereçamento articula um desejo – não apenas um futuro não violento para a humanidade, mas também uma nova concepção do humano que tem, como precondição de sua criação, alguma forma de toque que não seja a violência.”

(Trecho do ensaio “Violência, não violência: Sartre sobre Fanon”, de Judith Butler)